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Alguns dos meus amigos comunistas têm-me fustigado por criticar aqui as palavras oficiais do PCP acerca da invasão não provocada da Ucrânia pela Rússia, as quais considero uma cobertura à criminosa agressão de Putin e, em última análise, um ato de cumplicidade para com ele. Replicam que a condenação do PCP está bem expressa nos comunicados do partido, a par da crítica às supostas responsabilidades do campo da UE/EUA/NATO.
Resolvi por isso fazer a hermenêutica das posições oficiais do PCP:
A 15 de fevereiro, parecendo antecipar que Putin ia invadir a Ucrânia mas se ficaria pelo Donbass (onde o Kremlin alimentava desde 2014 uma guerra separatista ilegal contra a integridade territorial ucraniana), o PCP fez um comunicado de justificação preventiva desse ato, dizendo em título: “Fim à escalada de confrontação dos EUA e da NATO contra a Rússia” (CULPA DA NATO). Tal como Putin, parecia que o PCP também estava à espera de uma ação de provocação que servisse de pretexto para a Rússia agredir a Ucrânia, dizendo por isso no comunicado: “O PCP alerta para o perigo de ações de provocação, incentivadas pelo apoio dos EUA e da NATO, contra as populações russófonas no Donbass e os seus direitos e aspirações” (CULPA DA NATO). Apesar de a massiva concentração de tropas e equipamento militar junto à fronteira com a Ucrânia indiciar a iminência da agressão russa, o PCP não emitia uma palavra de condenação de Putin, mas sim da outra parte: “O PCP condena a escalada de confrontação promovida pelos EUA e a NATO contra a Rússia […], uma séria ameaça à paz” (CULPA DA NATO). A seguir, vinha uma longa catilinária contra o governo ucraniano, democraticamente eleito (CULPA DA NATO).
A 22 de fevereiro, um dia após Putin ter reconhecido a “independência” das províncias separatistas do Donbass, também não era essa violação do direito internacional que o PCP condenava em novo comunicado: “A atual situação e seus desenvolvimentos recentes são inseparáveis de décadas de política de tensão e crescente confrontação dos EUA e da NATO contra a Federação Russa, nos planos militar, económico e político, em que avulta o contínuo alargamento da NATO e o sistemático avanço da instalação de meios e contingentes militares deste bloco político-militar cada vez mais próximo das fronteiras da Federação Russa” (CULPA DA NATO). Na verdade, Putin saía incólume do comunicado do PCP, porque “a decisão agora assumida pela Federação Russa não pode ser olhada à margem desta conjuntura e dos seus desenvolvimentos” (CULPA DA NATO). Claro que a conjuntura era responsabilidade de outrem: “A atual situação e seus desenvolvimentos recentes são inseparáveis de décadas de política de tensão e crescente confrontação dos EUA e da NATO contra a Federação Russa, nos planos militar, económico e político, em que avulta o contínuo alargamento da NATO e o sistemático avanço da instalação de meios e contingentes militares deste bloco político-militar cada vez mais próximo das fronteiras da Federação Russa” (CULPA DA NATO). O resto, era a conversa habitual sobre o “golpe de Estado de 2014” (falso, tratou-se de uma revolta popular, coisa que o PCP antigamente enaltecia) e a “imposição de um regime xenófobo e belicista” em Kyiv (CULPA DA NATO).
A 24 de fevereiro, dia do início da agressão russa à Ucrânia, veio outro comunicado: “O PCP expressa a sua profunda preocupação pelos graves desenvolvimentos na situação no Leste da Europa, envolvendo operações militares de grande envergadura da Rússia na Ucrânia [não uma invasão], muito para além da região do Donbass.” E os causadores eram exclusivamente quem não estava presente no terreno: “O PCP salienta que o agravamento da situação é indissociável da perigosa estratégia de tensão e confrontação promovida pelos EUA, a NATO e a UE contra a Rússia, que passa pelo contínuo alargamento da NATO e o reforço do seu dispositivo militar ofensivo junto às fronteiras daquele país, e em que insere a instrumentalização da Ucrânia, desde o golpe de Estado de 2014, com o recurso a grupos fascistas, e que levou à imposição de um regime xenófobo e belicista, cuja violenta ação é responsável pelo agravamento de fraturas e divisões naquele país” (CULPA DA NATO). É certo que, pela primeira vez, o comunicado criticava Putin por presidir a um país “capitalista” e por ter efetuado uma “grosseira deformação da notável solução que a União Soviética encontrou para a questão das nacionalidades”. Mas continuava a isentá-lo de culpas quanto à agressão à Ucrânia: “Importa, ao mesmo tempo, sublinhar que não é expectável que a Rússia, cujo povo conheceu na História colossais agressões, considere aceitável que seja incrementado junto às suas fronteiras um cerco militar por via de um ainda maior alargamento da NATO” (CULPA DA NATO).
Por fim, a 1 de março, para justificar o voto no Parlamento Europeu contra a resolução de condenação da invasão russa da Ucrânia, o PCP declarou em comunicado que “é necessário defender o diálogo e a paz, não o incremento da política e das medidas que estão na origem da escalada do conflito na Europa” (CULPA DA NATO). Claro que a resolução não servia, porque “ignora os atropelos aos princípios do direito internacional – dos quais tem uma visão seletiva, restritiva e instrumental – e as sucessivas decisões e provocações dos EUA, NATO e UE que levaram ao conflito na Ucrânia e precederam a intervenção militar da Rússia neste país; ignora o papel que EUA, NATO e UE tiveram no golpe de Estado de 2014 na Ucrânia, recorrendo a forças fascistas, que levou a profundas fraturas, perseguições e violência na Ucrânia e que se traduziu em 15 mil mortos neste país nos últimos sete anos” (tudo, como é bom de ver, CULPA DA NATO). Alguma condenação de Putin pelo arraso que, em violação das leis internacionais, estava a fazer na Ucrânia? Não contem com isso, porque a invasão foi apenas uma decorrência de outras malfeitorias: “O PCP condena o caminho de ingerência, de violência e de confrontação decorrente do golpe de Estado de 2014 promovido pelos EUA na Ucrânia, a que se seguiu a recente intervenção militar da Rússia [nunca uma invasão], e a que se acrescenta a intensificação da escalada belicista dos EUA, da NATO e da UE” (integralmente CULPA DA NATO). Quanto à resolução do PE, inseriu-se numa “política de instigação [CULPA DA NATO] do confronto que só levará ao agravamento do conflito, à perda de mais vidas humanas, a maior sofrimento, com dramáticas consequências para os povos da Ucrânia e da Rússia, para os povos da Europa” (CULPA DA NATO, portanto).
Em resumo, o PCP tem andado todos estes dias a branquear o repugnante ato de pirataria de Putin, sem lhe dirigir uma única palavra de condenação. Que querem que vos diga mais?
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