crónica de ANTÓNIO BULCÃO

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Tirori, tirori
A malta não espera, a malta tem raça, a malta acelera, a malta ultrapassa, viola à socapa, fintando sanções, a malta derrapa, gosta de peões, peões mas com rodas, no meio de poeiras, prós outros, com pernas, só nas passadeiras, mesmo assim cuidado, se houver distração, não vi o coitado, lá foi o peão, sou Fangio, sou Senna, em todas as frentes, não há lugar? temos pena, vou parar, não façam cena, no lugar dos deficientes …
Se há código que a malta gosta de violar, é o da estrada. O penal tem crimes lá dentro, o civil indemnizações, o administrativo demoras. O código da estrada, tá bem que pode dar multas, perdas de pontos, no extremo até cadeia. Mas a probabilidade de sermos apanhados cede a maior parte das vezes à incivilidade, à estupidez, ao desejo de adrenalina e ao puro comodismo.
Está lá, gritando na ponta do poste, o sinal de proibição de estacionamento. Mas a malta estaciona. A não ser que haja polícia perto, a malta não quer saber. Cresce o número dos “tou-me a cagar”. Aumenta a percentagem dos “que se f…”. A malta não quer saber se o passeio é para pessoas, muitas delas velhas, com bengalas e andarilhos. Tenho de deixar o filho pequeno no colégio, não há lugar para estacionar, pois lá meto as rodas no passeio, os inválidos que vão para a estrada, tenham paciência, já estou atrasado para o emprego.
A malta bebe e depois conduz, isso de se conduzir não beba é para os tolos, que não sabem as ruas seguras para quem está bêbedo ou não têm amigos polícias que os avisem quando vai haver operações stop e onde estarão as fardas. Se alguma coisa falhar, há desculpas. O casamento do amigo de infância, o baptizado do afilhado, o remédio para o meu bebé que está com 40 graus de febre. Quando se está com os copos, a justificação é sempre uma emergência, quando nos metem o balão na boca e os números que aparecem no ecrã são maiores que os esperados pelo aflito soprador.
A malta cumpre a lei não pelo respeito que ela merece, mas pelo medo de sermos apanhados a violá-la. Se fôssemos todos civilizados e respeitadores, não haveria necessidade de termos código da estrada. Mas, se tal código não existisse, seria um caos, o trânsito, multiplicar-se-iam os acidentes e os velórios. Sempre que pegamos num carro, sabemos interiormente que não devemos dar origem a notícias que já não possamos ler. Só que, já na estrada, o pé de chumbo pesa mais que o cérebro.
As mortes que já vi, por pura estupidez. Os amigos que já enterrei, por negligência grosseira. Os julgamentos em que já vesti a toga, para sumários por condução sem habilitação legal, ou sob influência do álcool, ou por homicídios negligentes. A malta adora manobras perigosas. Ultrapassamos em curvas, excedemos velocidades, distraímo-nos com telemóveis, estacionamos a ocupar dois lugares ou em espaços reservados a deficientes, isto é tudo nosso…
Se somos assim, como portugueses, não nos podemos admirar que os ministros de Estado também abusem. Que não dêem ordens para os motoristas regularem a velocidade, que não saiam do carro que acabou de matar uma pessoa, que a investigação seja uma coisa escondida e matreira, que venha o 1º ministro gritar ser uma vergonha que se queira fazer política com isto.
A SIC fez um trabalho de investigação para ver quantos carros de ministros circulam em velocidade excessiva. Apanhou a viatura de Pedro Nuno Santos a 200 km/hora, e o ministro das infraestruturas e habitação, que muitos apontam como sucessor de Costa, justificou-se com compromissos de agenda. O interesse público, segundo o governante, por vezes exige que se violem certas regras. Quando, pensava eu, o maior interesse público é que se cumpra a Lei. Sobretudo pelos ministros. Acossado pelos jornalistas, Pedro Nuno Santos atira um argumento final: para a SIC saber que ele excede velocidade, também a SIC a terá excedido… Tipicamente portuga. Eu violo, mas tu também, por isso… bico calado.
Vem de uma boa escola. É público que Mário Soares, em 2012, apanhado num carro também a 200 km/hora, terá dito ao GNR, que agia no âmbito das suas competências e no cumprimento dos seus deveres, “o Estado é que vai pagar a multa”. E foi com sorte, o policial. Porque, se Soares fosse ainda Presidente da República, talvez tivesse levado com um “desapareça, senhor guarda”.
Por vezes os pais e os filhos da democracia têm a arrogância de pôr em causa o Estado de Direito… Outros interesses mais altos se levantam!
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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