CRÓNICA DE ANTÓNIO BULCÃO

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CO(n)VID(ados)… a ler
Quinta-feira, 12 de março de 2020
Uma aluna assegura-me que o coronavírus estava previsto na Bíblia.
Não aprofundo o tema. Não conheço a Bíblia ao pormenor e a aluna pode ter razão.
Uma vez estiveram em minha casa umas senhoras que tinham testemunhado qualquer coisa, já que se identificaram como testemunhas. Também elas viam coisas na Bíblia. Tudo o que queriam provar estava na Bíblia.
E eu deixei-as produzir as suas alegações, enquanto sentenciava intimamente que, na próxima batidela na porta que me cheirasse a depoimentos testemunhais, havia de arranjar uma desculpa qualquer para não as receber, desculpa que até poderia encontrar na Bíblia, já que lá está tudo.
O fim do Mundo na minha sala de estar é que não queria outra vez.
No corredor do intervalo, outra aluna oferece-se para me desinfectar. Disse-lhe que já estava desinfectado, que ela poupasse o gel que tem num frasquinho transparente. Mas ela está decidida a desinfectar naquele intervalo, enchendo de gotas as palmas das mãos dos colegas mais próximos, que depois esfregam as mãos umas nas outras, com ar ufano de quem está livre de qualquer maleita até avançada idade.
Aprecio mais desinfeções que profecias.
Sexta-feira, 13 de março de 2020
Sexta-feira, 13. Passámos de alerta para contingência. Estaciono o carro no parque da escola e fico a ver um avião que se faz à pista das Lajes. Neste momento já sei que a escola vai fechar. Mas o aeroporto continua aberto. Contingências da vida…
Encontro um colega que já não vejo há muito tempo, porque se dedicou a funções sindicais. Dou-lhe um abraço, que ele recebe. Uma outra colega que está com ele avisa que estamos a violar as regras de prevenção de contágio. Só que tenho uma tendinite no cotovelo. Vai-me doer andar para aí a dar cotoveladas. Mas registo as cautelas da colega desconhecida. Se a conhecesse, não queria abraços…
Os alunos também já sabem que a escola vai fechar. Mas não estão felizes.
Ficam sempre felizes quando a escola fecha. Mas sentem que uma coisa é um furacão, que vem e vai-se embora, outra coisa é um vírus, que pode ficar. Estão assustados.
Faço a pedagogia nas aulas. Já a fazia, aliás, antes do alerta. Não são férias. Não se juntem na prainha. Protejam-se e aos seus. Amem-se pelo cotovelo.
À tarde, um episódio mostra que temos todos de ter muita calma.
O Presidente do Governo Regional vai fazer uma comunicação às 14h30m. A RTP-Açores organiza um programa de informação, enquanto o Presidente não aparece. Uma jornalista e três comentadores.
Todos dizem coisas muito acertadas. Que talvez seja melhor fechar os aeroportos. Que mais vale a saúde de um açoriano que um avião cheio de turistas. Que o nosso isolamento, tanta vez desvantajoso, desta vez é um céu, se for bem gerido.
Passa uma hora. Passam duas horas. O Presidente está atrasado e os comentadores continuam a dizer coisas certas. Uma delas sobre a importância dos meios de comunicação. Do papel que têm de cumprir para informar correctamente todos nós. Da Secretária da Saúde que só dirá asneiras, depois corrigidas pelo Director da mesma Saúde, que já saberá mais da poda. Dos comunicados desastrosos do Gabinete de Apoio à Comunicação Social…
Finalmente o Presidente chega. No ecrã, a sua imagem está instável, tremida. O som está fraco, com cortes.
A RTP-Açores certamente tratou atempadamente de tudo para que a comunicação fosse perfeita. Não tenho dúvidas disso. Os meios técnicos seriam os melhores. Mas a emissão foi péssima. Sem culpa de nenhum dos intervenientes, mas falhou.
A jornalista pede desculpa. Depois de falar tanto sobre a importância dos meios de comunicação social e do papel competente que deverão cumprir nesta crise de saúde pública, é uma pena que tenha falhado a transmissão do Presidente do Governo. Certamente não foi boicote. Todos os profissionais envolvidos na emissão televisiva quereriam que tivesse corrido bem e tudo fizeram para que assim fosse.
Mas, apesar disso, alguma coisa (grave) falhou. Todos os cuidados foram poucos.
A RTP-Açores pede desculpa por não termos conseguido ver e ouvir bem Vasco Cordeiro, numa matéria tão importante. E nós desculpamos.
Mas se a RTP-Açores falhou, dotada de profissionais competentes e a lidar com material técnico que dominam, é possível que falhe o Governo, algum hospital ou algum médico, a lidar estes com uma realidade desconhecida até há bem pouco tempo.
Vamos todos ter calma…
Domingo, 15 de março de 2020
Confirma-se o primeiro caso na Terceira. Sujeito a contra-análise.
António Bulcão
antoniobulcao59@gmail.com
(publicada hoje no Diário Insular)