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. CONVERSAS DO ALÉM – CRÓNICA 119 – 24 JULHO 2012
Há tempos fiquei menente[1] quando me disseram que um falecido, na vizinha Lombinha da Maia, pedira para ser enterrado com o seu inseparável telemóvel. O homem sem pitafe[2] algum viera da Amerca[3], da antiga Calafona[4], e queria estar contactável mesmo para lá do grande túnel luminoso.
Qual não foi o meu espanto, num alpardusco[5] de camarça[6], ao transitar pelo cemitério já encerrado a visitas, e ver três pessoas do lado de fora das grades do cemitério falando com alguém e usando os telemóveis bem encostados ao ouvido. Uma delas, tinha uma mão nas grades e na outra segurava o aparelho. Não tinha tarelo[7] nenhum. Não querendo ser lambeta[8], interroguei-me
“Estaria a falar com o falecido, que nascera empelicado[9]?
Será que o finado atendeu do lado de lá dentro do seu caixão de mogno envolto na “Stars and Stripes” à prova de leiva[10] ou continuaria na sua eterna Madorna[11]?
Teria acendido um palhito[12]para ver quem lhe ligava?
De que falariam?
Que mexericos trocavam?
Lamentar-se-iam da falta que lhes fazia ou estariam a queixar-se da carestia de vida?
Que palavras trocariam que não tivessem já comunicado?
Que faltara dizer?
Estariam a queixar-se da sorte caipora[13] dos herdeiros ou a culpá-los pela caltraçada[14] criada pelo inexistente testamento? Teriam sido vizinhos de ao pé da porta[15]?
Falariam do gado alfeiro[16] sem touro de cobrição?
Talvez dum derriço duma filha numa constante arredouça[17], às fiúzes[18] do namorado da cidade? Eu ia ficar a nove.[19]
Tratando-se de gente rural podia augurar que os vaqueiros se preocupassem mais com subsídios e vacas. Não devem escalar grandes cumes culturais ou espirituais. Pressuponho ser esse o jaez da conversação. Não creio que pedissem aconselhamento para as legislativas dali a seis semanas nem tampouco lamentassem a falta delas. Quem sabe que lastimavam? Falariam de mordomos, impérios e festas que isso, sim, seria assunto da maior relevância local, que o melhor da festa é esperar por ela, mas mais apropriado para se discutir à mesa, sem ninguém a atramoçar[20] com uns calzins[21] de abafado[22] até se ficar meio piteiro[23].
Uma pessoa interroga-se sobre a possibilidade de duração infinita das baterias do aparelho no esquife. Seria a solução para escritores e outros que se separam dos leitores sem tempo de dizerem um último adeus, escreverem a última frase de um livro, acenarem com um novo projeto ou retificarem qualquer coisinha.
Seria a forma inédita de poderem continuar a comunicar com aqueles que ficam facilmente órfãos de autores que os acompanharam nesta digressão terrena.
Admiro-me que as companhias de telecomunicação não tenham inventado uma bateria de longa duração que não precise de ser carregada debaixo de terra e permita acesso ilimitado, a troco de uma conveniente taxa vitalícia, aos que os deixaram já no meio duma amizade, dum amor, duma relação, duma paixão. Seria, decerto, um êxito comercial se viesse com a possibilidade de personalização do aparelho. Quem sabe o que se evitaria de dores incompletas, de saudades por mitigar, de conversas inacabadas? Novos planos poderiam surgir em operadoras de telemóveis. Um tema a merecer estudos futuros…[24]”
[1] Menente, espantado, estupefacto (São Miguel)
[2] Pitafe, defeito, atribuído quer a pessoas, quer a objetos. Nódoa na reputação.
[3] Amerca, corruptela de América, ou Nova Inglaterra por oposição ao outro grande polo de emigração, a Califórnia
[4] Calafona, Califórnia, na estropiação dos emigrantes de antigamente
[5] Alpardusco, o mesmo que alpardo, crepúsculo, lusco-fusco (São Miguel)
[6] Camarça, tempo húmido (São Miguel)
[7] Tarelo, juízo, tino (São Miguel)
[8] Lambeta, intrometido (São Jorge)
[9] Empelicado diz-se de pessoa afortunada, usado na frase nascer empelicado (Terceira)
[10] Leiva, musgo Sphagnum. No Corvo musgo, nas Flores musgão, no Faial tufos. Calluna vulgaris, usada em S. Miguel na preparação do solo das estufas dos ananases.
[11] Madorna, sono leve, sonolência, torpor
[12] Palhito, o mesmo que fósforo (Terceira)
[13] Caipora, de qualidade inferior, reles. Sorte caipora: que pouca sorte, sorte maldita (São Miguel)
[14] Caltraçada, confusão, mixórdia, trapalhada
[15] Vizinho do pé da porta, que mora nas redondezas de uma casa (São Miguel)
[16] Alfeiro, gado que não dá leite, a vaca que não apanhou boi, e não dá leite. Gado alfeiro sem touro de cobrição (in Cristóvão de Aguiar)
[17] Arredouça, confusão, desordem
[18] Fiúzes (São Miguel) ou às fiúzas de, à custa de, viver à custa de outrem (Terceira)
[19] Ficar a nove, não entender nada do que ouviu.
[20] Atramoçar, aborrecer, interferir com, maçar (in Cristóvão de Aguiar) (São Miguel)
[21] Calzins, pequeno copo, geralmente destinado a beber aguardente ou bebidas finas
[22] Abafado, costa norte de S. Miguel, a abundância de pomares e a produção frutícola excedentária é frequentemente aproveitada para licores, vinhos abafados e compotas. Nos abafados, com elevado teor alcoólico a fermentação é interrompida através da adição de aguardente, permanecendo doce (o açúcar da uva não se transformou em álcool) é o vinho do Porto dos Açores, sem corantes ou conservantes.
[23] Piteiro, aquele que bebe muito (Terceira, Flores)
[24] revisto por e dedicado ao Dr. Soares de Barcelos (Dicionário dos Falares dos Açores (ed. Almedina 2008), por me fazer sentir menos estrangeiro (faleceu em outº 2018)