confúcio e eu

YIN, YANG, CONFUCIONISMO, CRÓNICA 96-98, 26 ABRIL – 16 MAIO 2011

 

Mero aprendiz de feiticeiro, jovem desenfreado na segunda aventura de liberdade, sem as peias constrangedoras da sociedade patriarcal em que cresci, estava disposto a gozar ao máximo o que a vida me pudesse proporcionar. O hedonismo era, sem sombra de dúvida, a filosofia que me guiava. Demasiadas restrições, proibições, tradições invioláveis e tabus haviam regido a vida de infante e adolescente. Liberto das peias castradoras da sociedade ocidental e da família arreigada a tradições seculares, ia crescer numa errância própria da era das descobertas. A aprendizagem sem noções premeditadas, nem destinos certos, mas irremediavelmente, coartado pelos princípios e noções basilares recebidas de meus pais no tocante à inviolabilidade e perenidade da família. descobri que a vida não era como o yin e yang, entre o branco e o negro, era matizada por uma infinidade de cinzentos.

A minha era composta por duas forças complementares, havia um equilíbrio dinâmico (signo Balança) que, tal como no princípio da dualidade de yin e yang, surgia o movimento e mutação, a que não me queria opor. Se uma era ativa, diurna, luminosa, quente, a outra era passiva, noturna, escura, fria. Era um ocidental em ambiente estranho e hostil, em busca de equilíbrio e identidade, tal como os macaenses, Forças contraditórias me impeliam e sustinham.

De Kung-Fu-Tzu (Confúcio) partilhava preocupações com a política e pedagogia. O valor do estudo, disciplina, ordem, consciência política e trabalho são lemas que o confucionismo impôs à civilização chinesa e se mantêm. Não são religião, nem credo mas determinações rituais de caráter social, que permitem a liberdade de crença em qualquer sistema metafísico ou religioso que não vá contra as regras de respeito mútuo e etiqueta pessoal. Curiosamente, a analogia entre os valores confucionistas e os meus, deixaram aberta a via de compreensão.

À época faltavam-me muitos anos para entender, na globalidade, o significado do dito “Mesmo nas situações mais pobres uma pessoa que vive corretamente será feliz. Coisas mal adquiridas nunca trarão felicidade” que se tornaria meu arquétipo após os quarenta e cinco anos.

A vida em Macau (1976-83) tinha o enorme chamamento materialista. As inovações tecnológicas que chegavam (antes da Europa e EUA) eram demasiado atraentes para as recusar. Os meus jovens anos não eram conducentes à prática de reflexão, centravam-se num hedonismo de gratificação instantânea de sentidos e sentimentos. Queria ser feliz, não sabia como e o dinheiro ajudava. Ia tentar e confiar na proverbial sorte para o atingir.

Não me considerava um nativo do ocidente com uma visão oriental do mundo, como citei ao Prof. Lei Heong Iok, do Politécnico (abril 2011), ao explicar como interpretava o interesse da China pela lusofonia. Conseguia transmutar a mente para um ponto de vista oriental, olvidando a lógica do pensamento ocidental, delimitando razões e ações, imbuído de um pensamento confucionista. Sem o imediatismo ocidental que busca a satisfação apressada.

É difícil de explicar, mas segui basicamente o método de esquecer as premissas em que cresci e colocar-me na mente do outro, imaginar o quando, como e porquê das suas atitudes, tentar antecipá-las e usar as mesmas, se possível em proveito próprio, como forma de me precaver contra inopinadas surpresas. Nem sempre era fácil ou possível, e nem sempre levava aos resultados esperados, mas iria permitir-me, mais tarde, atingir o equilíbrio cultural entre as noções originais da minha educação e as aprendizagens orientais que cultivara nas décadas de vivência na Australásia e no Império do Meio. Isso adviria naturalmente.

Nem me apercebi de como me tornara tão diferente dos familiares e amigos que não entendiam a mudança de nome e nacionalidade. Jamais interpretariam corretamente a mudança de paradigmas pelos quais me passei a reger. A verdade é que a mudança, inicial e erroneamente localizada em Timor, se deu em Macau no confronto entre as noções e princípios da educação judaico-cristã e os mundos desconhecidos de que Marco Polo falava e ora eu conhecia. Depois de viver seis anos, mais o que aprendera com expatriados chineses, macaenses e de Hong Kong na Austrália, e 14 anos casado com uma macaense, tudo despertara em mim uma forma nova de encarar a vida, o presente e o futuro. Adotei uma visão mais oriental da vida.

A religião chinesa não é como o judaísmo ou o islamismo, são muitas religiões e filosofias, como o confucionismo e o taoismo. Confúcio [551-479 a.C.) não pretendia fundar uma religião, mas propiciar instrução moral e ensinar as pessoas a viver bem, de acordo com os valores de dever, cortesia, sabedoria e generosidade. Uma das mais importantes era “os filhos deviam honrar e respeitar os pais, em vida e após a morte”. Sábios posteriores [Mêncio (372-289 a.C.) e Zhu Xi (1130-1200)] transformaram as suas ideias num sistema religioso.

O Tao é mais do que um caminho, a fonte de tudo. Os taoistas aspiram à união com as forças da natureza, livrando-se de preocupações e apego ao mundo material para concentrar-se no caminho, alcançando equilíbrio e harmonia na vida e conquistando a paz que vem da compreensão. Diz-se dos que atingem o objetivo que serão imortais após a morte física.

Como terceira religião (que não o é) o budismo penetrou na China no início da era cristã, atingindo o apogeu na dinastia T’ang (618-907). Ao oferecer uma análise da natureza transitória e sofredora da vida, oferece um caminho de libertação, introduzindo a possibilidade de que os ancestrais estejam a ser atormentados no inferno. Rituais para adquirir e transferir méritos aos mortos tornam-se importantes, pela execução correta de funerais, ou outros.

A religião popular é uma quarta via. Os chineses não sentem que devam aceitar determinada religião ou filosofia e rejeitar as demais. Escolhem a mais proveitosa, no lar, na vida pública ou nos ritos de passagem. A ideia de transcendente não se aplica aos chineses. O pensamento é imanente, tudo está, em potência, esperando ser desperto. A transcendência só existe no budismo, que acredita na libertação completa da matéria. Sei-o com experiência e retrospeção.

Inferi que a razão por que Macau não dispusera de um capítulo, devotadamente dedicado, nos anteriores volumes da ChrónicAçores, se devia ao facto de que a conjugação dos fios da meada só se tornara possível ao regressar após trinta anos de ausência. Macau fora um capítulo em aberto, a história por contar, uma estória em busca de desenlace. Por vezes, só o tempo permite analisar, de forma fria sem emoções, a relevância de factos passados.