Confissão ao Senhor Padre Ricardo Tavares

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Marta Couto

Confissão ao Padre Ricardo Tavares
Sr. Padre,
Depois de (quase ler) o seu artigo, publicado a 5 de fevereiro, achei-me na necessidade, muito pouco comum na minha pessoa, de me confessar. Deixei macerar as ideias. Aqui vai, pater.
Padre, perdoe-me porque não sou frágil!
É de reconhecer que o meu género, por motivos apenas imputáveis aos homens, foi, ao longo dos séculos, vendo a sua figura associada com a fragilidade de que fala. Mas exemplos muitos existem de mulheres fabulosas que, ao longo da História, desdizem aquilo que o senhor Padre, como homem biológico, entende por predisposição genética. No entanto, a mesma História reza que os senhores nunca se sentiram à vontade de ser liderados ou, ao bem dizer das nossas gentes, “mandados” por mulheres e, consequentemente, muito se esforçaram por reduzi-la ao papel submisso de esposa, mãe e dona de casa, tal como o senhor Padre veladamente indica na sua preleção. Perdoe-me, Padre, se acho que olhar para a História e ver só o que convém não é o caminho mais correto a percorrer e considerar que essa suposta fragilidade não é nada mais que uma construção masculina que não corresponde, em nada, à verdade.
Padre, perdoe-me porque rejeito a sua oferta!
Nada, em nenhuma luta que se diga feminista, defende que a Mulher deve estar num patamar superior ao Homem. Nós não queremos ser princesas, rainhas, imperatrizes de rigorosamente nada. Queremos pagamento igual para trabalho igual. Queremos uma Lei da Paridade que o seja verdadeiramente e almejamos o dia em que essa Lei não será necessária. Queremos igualdade de oportunidades no mercado de trabalho. Queremos ver mais mulheres na política. Queremos ser tratadas com respeito e não entendidas como meras obrigações legais. Queremos ver os números da violência contra mulheres descer ao nível do zero. Não precisamos de plintos para nos empoleirarmos acima de ninguém. Muito menos procuramos qualquer reconhecimento das nossas “virtudes”. Por isso, perdoe-me porque não preciso nem quero o pedestal em que me quer enfiar.
Padre, perdoe-me porque não correspondo à sua noção de feminilidade!
As qualidades das Mulheres não se desenvolveram na ausência do homem que, muito “à macho”, ia para a caça buscar o rancho para o jantar. A Mulher mãe, que tratava da casa e de que o senhor Padre tão “carinhosamente” fala, fez o que teve que ser feito, como hoje ainda o faz. Se tivesse que pegar numa arma e ir matar para comer, também ia. Não foi porque o contexto não o exigia, não porque não fosse capaz. A imagem piedosa com que o senhor Padre pinta a mulher nada mais é do que uma conceção religiosa que é enfiada garganta abaixo das crianças na catequese e que se propaga para o resto da vida, fomentando as desigualdades que hoje tanto afetam as Mulheres. Eu tenho licença de uso e porte de arma, sei montar e desmontar uma espingarda ou um revólver e sei disparar diversos tipos de arma (para meros efeitos desportivos). Também sei fazer sopas e bolos. Trabalho sem problemas com ferramentas elétricas e quem pendurou as prateleiras todas da minha casa fui eu. Também sei lavar roupa e chão e manter uma casa e até já fiz pão, como o comum mortal, graças à Covid-19. Por isso, perdoe-me se para si eu não sou uma mulher “como deve ser” e se não preciso de homem nenhum para me orientar quando vou ao Leroy Merlin.
Padre, perdoe-me porque não tenho marido!
O “músculo”, lá em casa, sou eu. Fui eu que estudei e trabalhei para comprar uma casa, um carro, para pagar as minhas contas, para fazer as minhas compras, dar de comer aos meus cinco gatos e ajudar quem precisa, na medida do que consigo. Se o senhor acha que a mulher trabalha para criar músculo ao homem, lamento. A mulher trabalha para cumprir os seus objetivos (que diferem, e legitimamente, de mulher para mulher), não em função da flacidez muscular de ninguém. Perdoe-me, senhor Padre, se o meu foco na vida não é contribuir para o fitness de um homem. Mal consigo contribuir para o meu, muito menos para o deles.
Padre, perdoe-me porque perdi a paciência para ler o resto do seu artigo.
Sabes, senhor Padre, durante muitos anos afirmei que eu não era feminista. Achava que, se o fosse, estava a contribuir para se cavar um fosso ainda mais profundo entre os homens e as mulheres. A minha falta de informação e sensibilidade decorreu do facto de eu ter sido privilegiada com uma família que valoriza o papel das mulheres, o que fez com que eu não conhecesse o que se passava fora da minha “bolha”. Quando essa “bolha” rebentou e eu própria comecei a sofrer na pele os desafios constantes com que se depara uma jovem mulher face a um mundo em que os homens ainda se esforçam por afirmar o seu domínio face à “ameaça feminina”, fui acordando. Acordei para a realidade empresarial, onde as mulheres são assediadas pelos colegas, onde eu não fui exceção. Acordei para a realidade das poucas mulheres na política, onde vivi essa experiência em primeira mão. Acordei para os constantes desrespeitos e condescendência com que as mulheres são tratadas, todos os dias, por homens que, como o senhor Padre, acham que somos umas pobres coitadas frágeis, cujo habitat natural é o lar e que têm que aceitar como elogio as bocas foleiras que ouvimos. Isto – entre tantas outras experiências. Por isso é que hoje, senhor Padre, só lhe desejo que acorde também. Acorde das suas ideias pré-concebidas que em nada dignificam a Mulher e que me fizeram parar de ler o seu artigo antes de chegar ao fim. Na sua tentativa de elogiar a Mulher, falhou redondamente, em todos os aspetos, expondo tudo o que de errado está com a conceção que dela tem.
Pensando bem, e afinal de contas, não me perdoe coisa nenhuma, senhor padre. Não preciso do seu assentimento para nada daquilo que sou e daquilo em que acredito. Nem de si nem de homem nenhum. Passe bem e Deus lhe perdoe – porque claramente, não pensou bem no que escreveu. A Mulher é isso mesmo – Mulher. Humana. Basta isso.
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