como o sotaque pode custar-lhe menos salário

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O mercado de trabalho é cada vez mais global, mas o preconceito linguístico continua a ser uma realidade para muitos profissionais.

Estudo das universidades de Chicago e Munique conclui que a pronúncia de um candidato pode conduzir a uma penalização de 20% no salário. Em Portugal, os recrutadores negam a relação, mas a prática mostra que o preconceito linguístico existe.

[in “Expresso” diário, transcrito a seguir, com a devida vénia à jornalista Cátia Mateus, a autora do texto]

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Sotaque pode penalizá-lo no salário

O preconceito linguístico é um problema real. Pode assumir várias formas, é um fator de desigualdade quer social quer laboral e tem impactos económicos. Um estudo agora divulgado pelo National Bureau of Economic Research, o departamento americano de estudos económicos, conduzido conjuntamente por investigadores das universidades de Chicago (Estados Unidos) e de Munique (Alemanha), demonstra-o.

Os investigadores, que tentaram quantificar o custo deste preconceito em termos laborais na Alemanha, concluíram que profissionais com pronúncias regionais muito marcadas ganham, em regra, menos 20% do que os seus pares com a pronúncia-padrão da região. Uma disparidade salarial que, argumentam, é discriminatória e que está em linha com a verificada entre homens e mulheres. Em Portugal os recrutadores negam que o preconceito linguístico seja um problema. Mas a prática mostra que a questão não é assim tão linear.

Preconceitos contra certas pronúncias regionais ou até sotaques estrangeiros são comuns em todo o mundo. No Reino Unido, o sotaque da classe trabalhadora de Birmingham não é bem-visto. No Brasil, os sotaques nordestinos são considerados socialmente inferiores. A própria França tem intensificado o debate sobre se a ‘glotofobia’ — termo usado para descrever a discriminação baseada na pronúncia, sotaque ou dicção — deve ou não ser criminalizada. O debate intensificou-se no ano passado quando Jean-Luc Mélechon, ex-candidato presidencial ridicularizou publicamente, na região de Toulouse, uma jornalista questionando se algum dos outros jornalistas presentes tinha alguma outra pergunta a fazer “em francês mais ou menos compreensível”, remetendo para a pronúncia-padrão, a parisiense.

Em 2019, segundo as contas da Organização das Nações Unidas, 272 milhões de pessoas viviam fora do seu país de origem. Mas esta maior exposição a diferentes padrões linguísticos e sotaques, fruto de um mercado de trabalho global, não nos tornou mais tolerantes com a diferença.

SALÁRIOS INDEXADOS AO SOTAQUE

Qual é afinal a razão para que num país como a Alemanha o valor do salário surja ‘indexado’ à pronúncia dos profissionais? Segundo os investigadores, a resposta tem mais a ver com o estigma do que com a pronúncia ou sotaque propriamente ditos.

“Os trabalhadores com sotaque muito marcado enfrentam mais preconceitos de colegas e clientes, sendo-lhe mais difícil realizarem o seu trabalho com eficiência”, foi um dos argumentos validados pelos investigadores junto dos empregadores para justificar a diferença salarial. Outro foi o de que os trabalhadores com sotaque ou pronúncia fora da norma procuram empregos que envolvam menos relacionamento interpessoal e, geralmente, mais mal pagos.

O estudo realizado na Alemanha está em linha com outros que estabeleceram uma relação direta entre a linguagem e a discriminação laboral, com impacto na carreira e subsistência dos profissionais (ver texto pág. ao lado). Em Portugal não há, até à data, evidência científica que meça um impacto semelhante. Não é possível, por exemplo, aferir se para a mesma função há diferença salarial entre um engenheiro madeirense, um açoriano, um lisboeta, um portuense ou um alentejano.

Em 2019, 272 milhões de pessoas viviam fora do seu país. Muitos não cumpriam a norma linguística local

E os vários recrutadores contactados pelo Expresso recusam mesmo que a pronúncia ou o sotaque tenham qualquer impacto em processos de recrutamento, tanto mais que a discriminação laboral, qualquer que seja a sua forma, é crime. “Eventuais diferenças salariais podem acontecer fruto do histórico de cada profissional, da eventual margem de negociação existente ou de skills [competências] altamente diferenciadoras que um candidato possa ter” e nunca, explica, Sílvia Nunes, diretora da Michael Page, de questões como o sotaque. Carlos Sezões, sócio da empresa de recrutamento de quadros de topo Stanton Chase, defende que as competências de comunicação são essenciais aos gestores de topo e críticas para a sua capacidade de liderança e influência, mas diz que nunca detetou “qualquer discriminação” por parte das empresas nas centenas de candidatos que já analisou, “com pronúncias mais e menos marcantes”. Amândio da Fonseca, presidente do Conselho de Administração do Grupo Egor também recusa a relação: “Em Portugal não são rejeitados, nem socialmente nem em processos de recrutamento, candidatos pelo seu sotaque, mas sim por ausência de qualificação ou [no caso de cidadãos estrangeiros] por falta de legalização para trabalhar no país.” Porém, embora o requisito da pronúncia não seja expresso, não refuta que ele “possa estar presente na decisão final do cliente”.

Daniela Martins de Lima tem uma visão diferente. Filha de mãe portuguesa e pai brasileiro com raízes portuguesas, nasceu prematura em Portugal, durante as férias dos pais. Licenciou-se em Comunicação Social no Brasil, onde viveu e trabalhou até aos 28 anos. A vontade de alargar horizontes profissionais trouxe-a de novo a Portugal, mas o resultado não foi o esperado. “Estou cá há dez anos, tive vários empregos e nunca consegui um qualificado, muito menos na minha área”, diz.

Foi rececionista, trabalhou em cafés, foi auxiliar numa escola, está agora num call center. Esbarrou inúmeras vezes na entrevista. “Cheguei a ver o ar de espanto das pessoas quando percebiam que eu afinal era brasileira porque pelo meu currículo, como nasci cá e tenho nome português, não era percetível”, explica. Em alguns casos foi-lhe dito “frontalmente” que apesar do excelente currículo “precisavam de alguém que falasse português de Portugal”.

E se é verdade que a discriminação laboral é punida por lei, não é menos verdade que segundo os últimos dados da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, relativos a 2018, 4,7% das queixas reportadas referiam-se a situações de discriminação laboral. Numa década, 20% das queixas foram sobre questões laborais.

EFEITOS ADVERSOS SÃO VISÍVEIS

Para o sociolinguista e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Hugo Cardoso, casos como o de Daniela não causam espanto: “Não me parece improvável que também aqui se observe o efeito adverso de um comportamento linguístico não-padrão no mundo laboral.” O investigador dá como exemplo o panorama dos meios de comunicação social de âmbito nacional que implicam oralidade: “Independentemente da origem geográfica, quantos dos profissionais têm características marcadamente não-padrão no seu modo de falar?”

Um cenário que a terapeuta da fala Isabel Guimarães reconhece. Há 15 anos que ajuda profissionais e empresas a eliminarem “ruído de linguagem” e não tem dúvidas de que “a pronúncia é relevante no contexto profissional”. Prova disso é que a procura de apoio pelos profissionais “mais do que triplicou nos últimos anos”. A exposição dos profissionais à questão da linguagem “depende muito da sua posição na hierarquia, mas também do grau de ruído que a pronúncia ou sotaque geram na comunicação”.

“Um diretor de uma multinacional que tenha de comunicar em contextos globais, tem de fazer passar uma mensagem clara. É profissionalmente penalizador se a sua pronúncia for um foco de ruído na mensagem e há necessidade de corrigir isso”, exemplifica. Isabel Guimarães recorda mesmo que há profissões — como os controladores de tráfego aéreo — onde uma pronúncia que gere ruído à comunicação “é um impeditivo real para o exercício da profissão por questões de segurança”.

O investigador americano Michael Kraus, que também tem estudado estas temáticas, reforça que apesar de a maioria dos recrutadores negarem o impacto do discurso e da linguagem na conceção do perfil socioeconómico dos candidatos, recusando que este sirva de baliza de contratação, esta é uma prática real que “limita a mobilidade económica e perpetua as desigualdades laborais” sendo “urgente eliminá-la se quisermos avançar para um modelo de sociedade mais justa e equilibrada”.

PODE A TECNOLOGIA SER UM PROBLEMA?

O uso da inteligência artificial (IA) e de sistemas de reconhecimento de voz surge como uma tendência emergente no recrutamento do futuro. E se é verdade que uma das maiores vantagens que lhe são apontadas é a eliminação do fator “opinião pessoal” do recrutador (e dos preconceitos que possa ter) do processo, não é menos verdade que a prática já demonstrou que a tecnologia pode também ela ser discriminatória, dependendo da forma como seja programada.

O algoritmo da Amazon que eliminou do processo de recrutamento todas as mulheres porque “presumiu” que a empresa recrutava, preferencialmente, homens é disso um exemplo. Ora, numa altura em que as empresas começam a possibilitar a pesquisa de emprego e candidatura por voz — a McDonald’s já o faz — e as entrevistas conduzidas por robôs e depois sujeitas a um primeiro processo de triagem automatizado ganham escala, a relevância da linguagem e de aspetos relacionados com sotaque, pronúncia ou dicção tornam-se mais relevantes.

Podemos garantir que a máquina não selecionará preferencialmente candidatos com um padrão de linguagem idêntico ao que já predomina na empresa, colocando em causa a diversidade e a igualdade de oportunidades? Não, no seu atual estágio de desenvolvimento, ainda não. E é por isso que Amândio da Fonseca, presidente do Grupo Egor, recorda que “a capacidade da IA para, na fase atual de desenvolvimento, avaliar emoções e tomar decisões de recrutamento é hoje contestada com veemência pelos cientistas mais respeitados”.

Carreira. Estudo das universidades de Chicago e Munique conclui que a pronúncia de um candidato pode conduzir a uma penalização de 20% no salário. Em Portugal, os recrutadores negam a relação, mas a prática mostra que o preconceito linguístico existe

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Carreira. Estudo das universidades de Chicago e Munique conclui que a pronúncia de um candidato pode conduzir a uma penalização de 20% no salário. Em Portugal, os recrutadores negam a relação, mas a prática mostra que o preconceito linguístico existe
Carreira. Estudo das universidades de Chicago e Munique conclui que a pronúncia de um candidato pode conduzir a uma penalização de 20% no salário. Em Portugal, os recrutadores negam a relação, mas a prática mostra que o preconceito linguístico existe