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COMO DEVIA SER DADA A NOTÍCIA DE UM INCÊNDIO:
Deflagrou um incêndio em zona X, as chamas estão cada vez mais próximas de algumas casas e os bombeiros estão a fazer os possíveis para conter. Não há vítimas nem feridos a lamentar. Voltaremos a esta notícia quando houver alterações da situação.
COMO A NOTÍCIA É DADA:
Deflagrou um incêndio em zona X com proporções nunca antes vistas, dizem os locais, as chamas estão já a aquecer o jantar dentro de várias casas e os bombeiros estão desesperados a tentar apagar as labaredas com apenas duas bisnagas daquelas que têm uma bomba de ar para fazer pressão. Não há vítimas a lamentar, ainda, mas há dois feridos graves: duas octogenárias de buço chamuscado. Teme-se outra tragédia como a de Pedrogão Grande e a tensão no ar é quase tão espessa como o fumo que já cobre toda a região. Vamos passar para a nossa enviada especial no terreno, Judite de Sousa, que já se encontra junto de um cadáver. Judite?
– É verdade, estou aqui junto de um cadáver que foi consumido pelas chamas, um cenário dantesco, que é sempre o adjectivo que, segundo o código deontológico dos jornalistas, temos de usar sempre para estas situações de incêndios…
– Peço desculpa, eu não sou um cadáver.
– Ai que susto! Não é um cadáver, tem a certeza?! Está toda queimada!
– Olhe que não sou mesmo, sou a Ludomila.
– Ah, desculpe, é uma senhora idosa de cor negra, peço desculpa pela confusão.
– Não faz mal, mas olhe, tenho informações importantes sobre o que pode ter causado este incêndio…
– Deixe estar, não é necessário, vou então procurar um cadáver para poder concluir a minha peça mais tarde. Passo para ti, Rodrigo.
Bom, enquanto a Judite de Sousa tenta encontrar um cadáver, vamos tentar saber de quem é a culpa deste incêndio. Vamos passar ao nosso painel de especialistas em tudo, constituído por uma psicóloga banida da ordem, um advogado de divórcios e um doutorado em sociologia que trabalha no call center da MEO:
– Eu acho que é do aquecimento global porque vi nas redes sociais várias fotografias de termómetros de carros e parece que está mesmo calor – diz a psicóloga.
– A mim ninguém me tira da cabeça que isto é das beatas que mandam dos carros em andamento, especialmente se fumarem Marlboro – diz o advogado.
– É possível que sim, mas eu desconfio mais de fogo posto porque eu tenho um tio naquela zona que viu um drogado a sair da mata minutos antes do incêndio ter deflagrado – diz o gajo do call center da MEO.
Bom, foi a conversa muito elucidativa com o nosso painel de especialistas em tudo. Vamos agora passar para outro enviado especial que está a fazer perguntas a toda a gente que vê perto das chamas e do fumo. João, estás aí?
– Sim, Rodrigo, estou aqui com uma local, visivelmente abalada, ela vinha a correr e eu segurei-a por um braço, vamos ver o que ela tem a dizer. Para que é que leva esse garrafão de água?
– Olhe, é para tentar apagar as chamas.
– Então quer dizer que está a combater o fogo com os seus próprios meios?
– Parece que sim.
– Onde foi buscar essa água?
– Fui à fonte.
– Costuma ir a essa fonte muitas vezes?
– Sim, vou lá muitas vezes refrescar-me em dias de calor.
– E que calor está hoje, não é verdade?
– Está sim senhor, mas se calhar agora vou indo que as chamas já estão mesmo a chegar perto da minha mãe que está acamada há cinco anos.
– Sim? Olhe, gostava de ir às tardes da Júlia contar a sua história?
– Gostava, desde que me paguem as despesas da viagem.
– Pronto, então depois se a sua mãe morrer queimada ligue-nos. Passo para ti, Rodrigo.
Muito interessante, ainda dizem que a única coisa de jeito que já saiu de uma destas entrevistas foi aquele senhor do “tenho uma consulta às cinco”. O jornalismo que interessa é aqui, na sua televisão preferida. Temos agora bonitas imagens, captadas por drones que foram bem caros, das chamas e de toda a área ardida que vamos passar ao som de uma música para chorar enquanto eu recito um poema da minha autoria chamado “Chama por mim”.
Seguem-se mil imagens em loop, durante dias, debates e contabilização da área ardida, fazendo escala com campos de futebol para as pessoas terem noção do tamanho. Por falar nisso, não tarda começa o campeonato e isto dos incêndios já não interessa nada.
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