CIDADANIA À LA CARTE

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Cidadania à la carte.
Querer instituir o direito de veto de cada encarregado sobre os currículos da escola pública é bizarro.
É natural, e até louvável, que os pais tenham opiniões sobre o que é leccionado nas escolas, mas isso não lhes dá poder para retirar do cardápio escolar o que não lhes agrada.
Esta semana, a corrida às praias desenterrou da areia um caso adormecido: o casal de Famalicão que proíbe os filhos de ir às aulas de Cidadania.
Três anos passados, o Ministério Público levanta a hipótese de que os dois jovens estejam a ser alvo de maus-tratos psicológicos.
Prossegue o braço-de-ferro entre o Estado e os pais que reivindicam o direito a uma educação pública à la carte.
Recapitulemos os factos: em 2018 e 2019, dois alunos do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco, em Vila Nova de Famalicão, faltaram a todas as aulas de Cidadania e Desenvolvimento, por decisão dos pais.
Num procedimento normal, chumbariam o ano por faltas, mas a família alegou “objeção de consciência” por considerar que os módulos abordados na disciplina, como a Igualdade de Género ou a Sexualidade, eram inadequados.
A escola enviou o caso para o Ministério da Educação, que propôs aos alunos um plano de trabalhos alternativo, para que pudessem passar de ano sem descartar totalmente a disciplina – obrigatória em todo o País, considerada essencial no currículo escolar.
Os pais recusaram.
Os alunos chumbaram por faltas.
Polémica.
O caso está em tribunal desde então.
Os alunos continuam a ter aulas e a passar de ano, enquanto aguardam o desfecho.
A disciplina Cidadania e Desenvolvimento compõe-se dos seguintes módulos:
Direitos Humanos (que incluem os direitos da criança, o combate ao discurso de ódio e ao tráfico de seres humanos);
Interculturalidade;
Educação Ambiental;
Desenvolvimento Sustentável;
Saúde (onde se fala de saúde mental, alimentação, dependências, prevenção da violência);
Sexualidade (onde se abordam os direitos sexuais e a parentalidade responsável);
Instituições e Participação Democrática;
Literacia Financeira;
Segurança Rodoviária;
Empreendedorismo;
Bem-Estar Animal;
Voluntariado;
Segurança, Defesa e Paz.
A polémica deu origem a um abaixo-assinado de quase 100 personalidades, apoiando o direito dos pais à objeção de consciência no caso de não quererem que os filhos frequentem a disciplina.
Foi assinada pelo Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, bem como por Pedro Passos Coelho e Cavaco Silva.
É triste que o caso tenha, há muito, ultrapassado a discussão sobre os direitos destes alunos.
Curiosamente, divulgaram-se há dias os últimos rankings escolares: um sistema anacrónico e inútil de hierarquização das escolas, que compara a Escola da Beira com a beira da Escola.
Sendo esse um tema com pano para mangas, friso que o necessário abandono desta tabela para um sistema de classificação multidimensional, que considere o contexto das escolas e o de quem as frequenta, expõe uma vez mais a centralidade do papel do Estado na proteção do direito das crianças a uma educação de qualidade, que desacentue as desigualdades – e não o seu contrário.
Observada com admiração pelos organismos internacionais, a evolução vertiginosa dos níveis de escolaridade em Portugal nas últimas décadas deve-se ao papel do Estado, que impôs e veio estendendo a escolaridade obrigatória – decisão sempre contestada por muitos pais, incapazes de avaliar a importância das aulas.
Os resultados falam por si.
Ora, se os encarregados de educação são os principais responsáveis pelas crianças e adolescentes, o Estado tem um papel determinante na sua educação formal – e o dever de proteger o seu direito à educação pública, em condições de igualdade.
O currículo é o mesmo para todos, por muito que um pai tenha uma posição muito forte sobre o Teorema de Pitágoras, a Teoria da Evolução das Espécies ou a Guerra Colonial.
Querer instituir o direito de veto de cada encarregado sobre os currículos da escola pública é bizarro.
É natural, e até louvável, que os pais tenham opiniões sobre o que é leccionado nas escolas – e que são livres de partilhar com os filhos, à mesa do jantar, de as discutir e até contrariar se for o caso.
Isso não lhes dá poder para retirar do cardápio escolar o que não lhes agrada.
Porque as crianças têm direitos.
Deixando a avaliação das alegações do Ministério Público para os técnicos competentes, lamento que o futuro escolar e académico de dois jovens cidadãos portugueses já esteja em cheque, usado como arma de arremesso numa deriva ideológica dos pais.
Um caso que devia ser sobre o direito à educação e os currículos escolares, sobre a utilidade e pertinência desta disciplina, tornou-se numa batalha política – fenómeno pouco surpreendente, aliás, nos tempos que vivemos, onde as máximas da “escolha” e da “liberdade” tanto são invocadas por quem não as compreendeu bem.
Quem sabe, fizeram falta umas aulas de Cidadania.
O Estado não é proprietário das crianças.
Os pais também não são.
Henrique Costa Santos.
Revista Visão, 11 de Julho de 2022.
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