cenas da cidade 1971

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e.29. cenas de cidade, set 24, 1971

1.

por vezes vemos faces curiosas, rugas e cãs a assomarem às janelas, enquanto dentro do elétrico nº 214 vamos percorrendo as ruas e imaginado com fértil imaginação esse catálogo de pessoas idosas, sem filhos, viúvas (a grande maioria pela forma como vestem), fechadas num mundo a que chamam casa, limitando-se a esperar com paciência o dia em que deixarão de ser.

até lá matar-se-ão aos poucos com o sopro de vida que ainda respiram enquanto se amedrontam com o que se passa cá fora. outras haverá solteiras, há muito habituadas a partilharem a solidão com inofensivos animais domésticos, vítimas de carinho e amor excessivos não extensivos a outro ser humano. sempre que passo por essas personagens velhas de olhar triste e vago, começo a imaginar quantas histórias não teriam ali para me contar, histórias de amor, de famílias felizes que nunca chegaram a ser, mas contento-me – como membro da sociedade protetora dos animais – que nunca tenham sido.

enquanto pachorrentamente o elétrico vai percorrendo esta cidade velha, olho os jardins plenos de viço e calmamente passeio pelas sombras sob as quais se abrigam jovens enamorados, amantes com medo que o mundo acabe já, para quem mais ninguém conta num egoísmo de corpos que se encontram.

mais adiante, à soleira de uma porta (prédio escurecido pela idade e pelas rendas fixas) numa irreverência profunda de bocas duas bocas unem-se num beijo prolongado enquanto as mãos – distraídas – buscam um pretenso porto de abrigo.

lá fora passam carregadores numa qualquer estiva, gente e mais de trabalho árduo, que param e comentam, afastando-se lentamente com anseios de escândalo bailando nos olhos lúbricos. para os que insistem em ficar especados às portas há sempre uma ou outra careta grotesca do par. mais adiante nessa mesma rua há uma construção, cinzenta, pouco acolhedora onde se asilam sonhos desfeitos de pessoas cujo fim chegou antes da data marcada, muito antes, muito antes da morte.

nesse albergue de fome e frio as almas que esperam morrem lentamente de miséria, sem coragem para enfrentarem a esmola e a incerteza do dia-a-dia. para eles e elas a esperança é vã e a assistência social à terceira idade é um mito sob o qual nem abrigar-se podem.

3.

foi neste albergue que muitos anos passados, reconheci o par do portal com as mãos enrugadas, a pele mal segurando o peso dos ainda magros ossos, olhos ainda não-apagados sobre bocas murchas, e as caretas que neles notei já não eram de escárnio nem de sofrimento, mas de um longo e resignado amor na pobreza.

por vê-los assim e por ainda acreditar no amor decidi não mais andar neste elétrico.