Celtas, mentiras e Viriato – Jornal Mapa

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Todo o passado tem o seu modo de usar. A história não é um campo isento e à sua interpretação podem ser aplicadas as mais diversas fórmulas, consoante o modo como queremos ver o nosso passado, para sustentar as escolhas ideológicas do nosso presente. Nessa medida, o chamado Celtismo é para o ocidente europeu a matriz fundacional a partir da qual se ergueu, desde a Antiguidade grega e romana, o olhar diferenciador entre o civilizado, superior, e esse «Outro» céltico, inferior e bárbaro. Mais tarde, variações diversas a esta dicotomia implicariam uma visão oposta, uma noção romântica de «celta» que viria a estar na base da construção dos nacionalismos: a alteridade da resistência rude, primitiva, evocando imortais tempos de povos e heróis patriotas contra as hegemonias de Roma, do inimigo externo. O eterno pano de fundo das afirmações nacionalistas, sejam elas extremadas à direita ou à esquerda, tecido num fio narrativo anti-sistémico e de forte atractivo «espiritual», veio igualmente a albergar as propostas alternativas à modernidade capitalista, da new age de ficção naturista do «bom selvagem» ao regresso à rudeza pagã da vida entre os montes. Por fim, o Celtismo encenou a marca identitária de uma primordial construção supra-nacional europeia: resgatada ora pela União Europeia, ora pela emergente corrente da extrema-direita identitária de uma Europa branca e não-miscigenada. Por tudo isto, os Celtas são um nada inocente e sólido edifício da nossa memória colectiva.Tudo isto nos foi ensinado na escola, através da figura de Viriato, pai fundador da epopeia nacionalista lusa. Tudo isto nos foi apresentado como entretenimento, no cinema, na literatura, nos festivais celtas, em espectáculos musicais e nas feiras históricas descartáveis; inscrito em tatuagens nos nossos corpos; imerso nas nossas memórias; mercantilizado até à exaustão. Um atractivo e eficaz chamamento que se resume a uma impostura, uma sucessão de mentiras. A acumulação de «modos de ver» a história segundo uma narrativa fabricada por quem dita, pode e manda; ou recuperada no discurso de quem se opõe e resistes em prescindir da essência do celtismo: a narrativa do passado legitimador do Poder; ou, ainda, uma justificação ancestral de um passado que nos guie num sentimento de pertença e de identidade colectiva.O ponto-chave da questão do Celtismo é que este emerge de um discurso identitário que vinca a valoração e sobreposição ao «Outro»Para questionar a narrativa celta, não basta denegrir o celtismo popular, uma vez que o direito à construção das memórias não pode, nem será nunca, apanágio das academias. Tão pouco podemos considerar o celtismo como «mentira» sem explicar o que daí advém. A única certeza é que toda a análise histórica, conscientemente ou não, cria, desmonta ou reestrutura as imagens do passado, servindo, como dizia o historiador Eric Hobsbawm, não o fim da investigação especializada, mas a esfera pública do homem como ser político. Como refere Gonzalo Ruiz Zapatero, da Universidade Complutense de Madrid, um dos arqueólogos que mais têm reflectido sobre a historiografia dos celtas e sobre o «uso público» do passado nas sociedades contemporâneas, a academia, de tom aborrecido, nada pode perante as «esferas de informação popular da história. E, em quase todas elas, as imagens, as representações icónicas são fundamentais» e «nunca chegam a desaparecer de todo». Constatação que não deverá desarmar uma historiografia crítica que, pensando o passado, ajude a compreender melhor o presente para que nele se possa actuar. Clarificando «que não há uma resposta única e verdadeira», com a consciência «de que a historia contribuiu – e deve fazê-lo – para o desenvolvimento das identidades relacionais dos indivíduos».O olhar crítico deste artigo segue a preocupação acima exposta, aflorando quem foram os celtas, ou Viriato e os lusitanos, para nos centrarmos na «sociologia céltica» e nas raízes do celtismo como alicerce de nacionalismos, regionalismos e independentismos. Este é, assim, um olhar sobre o «modo de usar» o conceito de «celta», cuja fórmula simples e popular, segundo Silvia Alfayé, da Universidade de Zaragoza, alberga a ideia «de uma Europa céltica que encobre e alimenta uma ideologia xenófoba e fascista que encontrou no celta o herói das suas essências pátrias, implacável na luta contra o multiculturalismo, a mistura racial e o judaico-cristanismo». Esta ideologia corre assim a par, e tira proveito, de outros mais irrefutáveis e legítimos anseios da nossa modernidade que também recorrem ao celtismo moderno «para reconectar com dimensões espirituais perdidas de cada um, para articular modos-de-estar-no-mundo alternativos, para expressar identidades e sentimentos de pertença, construir utopias, legitimar reivindicações políticas, reactivar uma natureza mágica, desfrutar do ócio, vender produtos e atrair o turismo».Celtas: quem foram afinal?O nome keltoi foi dado pelos gregos da Antiguidade ao conjunto de povos da Europa Central e Ocidenta

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