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as 3 línguas de Gibraltar

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As três línguas de Gibraltar

Marco Neves

Apr 11

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Foto de Michal Mrozek em Unsplash

Restos de impérios

Ao escoar-se pelo ralo, o Império Britânico foi deixando umas pingas na banheira — umas ilhas aqui, umas extravagâncias acolá (como o facto de a Jamaica ter um rei extraordinariamente parecido com o ex-príncipe Carlos), umas bases militares a complicar Chipre. Aqui bem perto temos um desses restos: Gibraltar, cidade britânica ao sol andaluz, uma colónia na Europa, um pedaço de território que os espanhóis querem para si e que os ingleses (desconfio) não se importariam de lhes dar não fosse dar-se o caso de os habitantes quererem continuar a ter o mesmo rei que os jamaicanos.

Aquele pedaço de Península Ibérica já é colónia desde o início do século XVIII, por cedência perpétua de Espanha no final da Guerra da Sucessão. A cedência foi perpétua, mas Espanha não perdeu a esperança de receber de volta o presente. A pequena fronteira chegou a ser completamente encerrada. Isolando-os, Espanha pensou que conseguiria convencer os habitantes do Peñón a mudar de rei. Não resultou.

Uma cidade governada pela Grã-Bretanha encostada a Espanha que teve de viver isolada muito tempo — sem surpresas, o território é quase independente. Os espanhóis não a podem governar e os ingleses, desde que fiquem com espaço para marinheiros e afins, não querem propriamente saber o que fazem os habitantes da mais famosa Rock do mundo.

O território tornou-se, assim, num país em miniatura, o que tem o seu encanto (se ignorarmos algumas manigâncias fiscais). Lembra-me aqueles barcos dentro de garrafas ou cidades dentro de globos de neve. São objectos que parecem reduzir a complexidade do mundo a algo que conseguimos abarcar com a mão. Também Gibraltar parece ter tudo ali, concentrado, como um país de brincadeira ou inventado por um romancista para cenário de um policial — ou talvez um país-modelo, para uma criança aprender na escola. Há a Casa do Governador, a Estação de Correios, o Parlamento, o Teleférico, o Aeroporto, a Praia…

Continentes e países

Subimos no teleférico e, chegados ao cimo da Rocha, olhamos para sul. Vemos dois continentes, um mar e um oceano. Estamos em cima de uma das Colunas de Hércules; do outro lado, vemos a outra coluna, Ceuta, pedaço de Espanha que Marrocos quer (os dois lados do estreito são espinhas geopolíticas). Desde sempre que estas duas cidades andaram a trocar de mãos. Gibraltar — o Monte de Tarik — marcou o início da conquista muçulmana da Península; Ceuta marcou o início da tentativa de conquista portuguesa do Norte de África (mais tarde, ficou espanhola quando o resto do reino escolheu D. João IV para rei). Entre as duas colunas, passaram no rodopio da história, sem ordem, romanos, americanos, fenícios, russos, gregos, portugueses — e hoje muitos cargueiros chineses.

Voltemo-nos para norte. Olhando para a cidade, lá de cima, podemos olhar para o mapa e compará-lo com o território. A cidade está à esquerda. À direita, umas quantas praias — um algarve para gibraltinos — e a costa andaluza até ao horizonte.

Macacos e línguas

Olhámos para sul, olhámos para norte. Se olharmos para os pés, encontramos um macaco a roubar-nos o telemóvel. Os macacos de Gibraltar confundem-nos: estamos tão habituados a ver os seus companheiros em jardins zoológicos ou à distância prudente da televisão que ficamos convencidos de que aqueles serão sossegados como os outros. Não: são animais selvagens, que não se coíbem de roubar o que podem e, depois, sentar-se no parapeito a observar os primos humanos a construir cidades, países e fronteiras lá em baixo.

Os macacos e os seres humanos partilham muita coisa, incluindo uma predilecção pelo sentido da visão. Gostamos muito de ver! Nós, no entanto, pegámos no sentido da audição e usámo-lo para criar aquilo que nos torna humanos: as línguas.

Pois, em Gibraltar, que línguas encontramos?

Nas placas, quase tudo está em inglês, a única língua usada oficialmente. Se andarmos pelas ruas, ouvimos muito castelhano, com sotaque mais ou menos andaluz. Também ouvimos inglês — e ouvimos até pessoas que falam inglês padrão e castelhano andaluz, numa mistura curiosíssima que prova como falar ou não o padrão não é questão de maior ou menor capacidade linguística.

Se estivermos muito atentos, talvez ainda oiçamos alguém a falar llanito, o particular idioma de Gibraltar, criado pelo contacto entre inglês e castelhano, com pepitas de maltês, genovês, português e até uma ou outra palavra de hebraico. Por baixo do peso do inglês e do castelhano, o llanito está hoje a desaparecer, mas é uma das marcas da identidade de Gibraltar.

O llanito não é uma simples mistura de palavras das duas línguas — tem uma estrutura própria e usos sistemáticos. É uma verdadeira língua criada por contacto. Não vai acontecer, mas é possível imaginar um mundo em que o llanito se torna uma língua padronizada, usada por milhões. Afinal, se virmos bem, o próprio inglês é uma língua construída por contacto entre o inglês antigo, o nórdico dos viquingues e, depois, o francês normando (e isto já é simplificar muito a história).

Já houve tentativas de criar uma ortografia do llanito. Nesta página, encontramos textos como este:

Er Llanito ê un Iberou Ròumants làngwij ke tiene’r Westen Andalûh komo lingwìstik beis. Ouva lô s’anyô ête lingwìstik beis s’a vîto ìnfluentst polô làngwijez ke històrikli s’an avlàu n’Hivertà (Henovêh, Haketìa, etc). Nlô s’ùrtimô 70/80 anyô er Llanito s’a vîto strongli ìnfluentst pol’Inglêh Vritàniko tanto à un lèksikol komo à un gramàtikol lèvol.

O texto começa: “O llanito é uma língua ibero-romance que tem o andaluz ocidental como base linguística.” Deixo o resto como exercício de tradução para quem quiser…

A tempestade das línguas

Enquanto falar de uma só terra, o llanito é também um caso saliente de um fenómeno universal. Em todos os lugares do mundo, o uso das línguas é único. Gibraltar é especial por juntar duas línguas muito conhecidas e por ser um território separado dos vizinhos por uma fronteira; aqui, as línguas misturam-se como num tubo de ensaio. No entanto, todas as terras misturam as palavras à sua maneira, embora com menos fronteiras. Aliás, cada família, cada bairro, cada turma, cada grupo de amigos têm a sua forma particular de falar… Podemos até aproximar o nosso microscópio linguístico até perceber que cada pessoa tem uma mistura única de vocabulário, pronúncia, sintaxe — os linguistas usam o termo idiolecto: a língua tal como é usada por um indivíduo.

Do borbulhar da língua na rua, nascem depois os padrões, construções artificiais, para uso geral, que acabaram por ganhar tanta força que hoje esmagam muitas das particularidades regionais. No entanto, mesmo neste mundo onde os padrões são tão importantes, todas as línguas mantêm variação — que é particularmente visível (ou audível) em terras como Gibraltar, pelo efeito multiplicador do contacto entre idiomas diferentes.

A linguagem humana está sempre sujeita a forças centrípetas, como os padrões, o sistema educativo, o prestígio social de certas palavras ou construções, e a forças centrífugas, como a criatividade individual, o contacto entre línguas e o prestígio oculto das palavras que usamos só entre nós.

O llanito tem palavras de muitos lugares. A língua desfaz-nos, no fundo, a ilusão com que começámos. Terras como Gibraltar são tudo menos cidades dentro de globos de neve: por mais fronteiras que se criem, ali foram parar pessoas e palavras de muitos lugares, numa mistura que torna a cidade particularmente interessante.

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Programa pioneiro de habitação permite comprar casa por pouco mais de um euro – Portal IOL

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Um novo sistema de habitação, criado em Inglaterra, está a permitir que pessoas venham a ser proprietárias de casas e apartamentos por apenas uma libra

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Diagnosticados com cancro terminal 12 bombeiros que combateram incêndio na Torre Grenfell, em Londres – Mundo – Correio da Manhã

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Também acidentes Vasculares Cerebrais (AVC), doenças cardíacas e insuficiência renal foram detetados em pessoas envolvidas no incidente de 2017.

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‘I was alone. Abandoned. With only a hundred million in the bank’ – Spare, digested by John Crace | Books | The Guardian

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Prince Harry’s memoir is the UK’s fastest-selling nonfiction book ever. Too busy to read it? All the love, rancour, drugs and petty fights are here

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Palace of Westminster renovations cost UK citizens millions | Sky News Australia

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Source: Palace of Westminster renovations cost UK citizens millions | Sky News Australia

 

https://www.skynews.com.au/world-news/united-kingdom/palace-of-westminster-renovations-cost-uk-citizens-millions/video/4cad2cda551499d2c3c9713e86b09074

Quase metade dos britânicos quer que Harry perca os títulos reais após série da Netflix – Famosos – Correio da Manhã

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Série de seis episódios fez com que apenas 7% dos inquiridos ficasse com uma imagem positiva do casal.

Source: Quase metade dos britânicos quer que Harry perca os títulos reais após série da Netflix – Famosos – Correio da Manhã

RISHI SUNAK QUANTO DURARÃ?

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Rishi Sunak acabou hoje.
Não há uma alma democrática que não questione a legitimidade deste homem.
O mais jovem desde Lord Liverpool (1812), que tinha acabado de fazer 42 anos, o mais rico desde Rosebury (1894), que era casado com uma Rotschild, o mais baixo desde Churchill (1940), que tinha menos dois centímetros, o primeiro oriundo de uma minoria étnica desde Disraeli (1868), de ascendência sefardita, e o primeiro não-caucasiano desde que o cargo existe (1721), Rishi Sunak é um primeiro-ministro do Reino Unido que exala excecionalidade.
Tão novo que não tinha idade para votar na última grande derrota conservadora, quando Blair subiu ao pela poder primeira vez, em 1997.
Tão rico que a fortuna estimada da sua família duplica a do Rei Carlos III, também recém-chegado.
A sua ascensão meteórica ‒ de deputado a ministro das Finanças de Boris, de seu chanceler a seu carrasco, de derrotado na sucessão a líder nomeado sobre pressão ‒ culminou hoje num dos mais inacreditáveis comebacks políticos de que há memória.
O feito, que tem mérito seu e maior demérito de Liz Truss, gozou um curto estado de graça.
Não há um partido da oposição que não exija eleições antecipadas.
Não há uma alma democrática que não questione a legitimidade deste homem, que não abriu a boca durante os caóticos 45 dias de Truss, que não deu uma única entrevista ao recandidatar-se ao lugar, que foi rejeitado pelos militantes do seu partido há menos de dois meses e que chega a Downing Street sem ser submetido aos votos de absolutamente ninguém: nem dos seus deputados, nem das suas bases partidárias, nem do seu povo.
Ter um primeiro-ministro indicado por nomeação ao fim de 12 anos de poder, quatro chefes de governo e dois referendos seria impensável em qualquer partido minimamente consciente.
Os tories, uma das forças políticas mais antigas e bem-sucedidas na história europeia, estão visivelmente órfãos dessa consciência.
As urnas vingar-se-ão.
E não será bonito.
Desde 2016, ano em que votaram para saírem da União Europeia, os britânicos tiveram o mesmo número de primeiros-ministros que haviam tido nos 37 anos anteriores.
A disrupção do Brexit ofereceu sucessos eleitorais maciços aos conservadores.
Agora, essa instabilidade é a maior adversária de um país que enfrenta uma crise de inflação, energia e estagnação económica.
A house divided cannot stand…
Hoje, nos conservadores, há mais rivais do que aliados, mais calculismo do que interesse nacional, mais divisão do que união ‒ e isso sente-se a léguas.
Ao longo do dia, Sunak não convidou os melhores governantes para o seu cabinet.
Limitou-se a escolher aqueles que lhe asseguram as melhores hipóteses de sobreviver até às sondagens saírem da casa dos sub-20%.
Suella Braverman, de volta ao Ministério do Interior seis dias depois de se demitir por mau manuseamento de informações confidenciais;
Michael Gove, de regresso ao governo dois meses após anunciar a sua reforma de funções ministeriais;
Penny Mordaunt, mantida como líder parlamentar, sendo-lhe recusada uma promoção.
Gavin Williamson, que ficou ministro sem pasta simplesmente por já não haver mais pastas para distribuir na compra de apoios.
O Reino Unido conheceu esta terça-feira de tarde a sua quinta ministra da Educação em quatro meses.
Maior exemplo da irracionalidade de todo este processo não há.
As três traições de Rishi
Entalado entre a esquerda que não lhe tolera a ostentação e a direita que não lhe perdoa a etnia, entre a City que não abdica de um fisco anglo-saxónico e os cidadãos que não desistem de um Estado Social europeu, sobra-lhe espaço para fazer exatamente o quê?
Quase nada.
Rishi Sunak é hoje líder de um governo esgotado, de uma maioria parlamentar que já não representa quem votou nela e de um partido que é tudo o que ele não é: velho, radical e ávido de Estado.
O Sunak liberal, aberto ao mundo, moderno, herdeiro do “conservadorismo de compaixão” de Cameron, cruza-se frequentemente com o Sunak que tem de convencer a massa eleitoral que votou Brexit por razões identitárias, nacionalistas e pouco esclarecidas.
O choque entre ambos ocorreu repetidamente na corrida para a liderança durante o verão: a sua campanha publicou vídeos com trituradoras de papel a desfazerem legislação europeia e não negou a possibilidade de reproduzir em Inglaterra os campos de detenção para migrantes implementados na Austrália.
Qual dos dois Sunaks prevalecerá no número 10?
Não se sabe.
Mas os seus silêncios, a brevidade das suas intervenções e a quase artificialidade da sua persona política têm um objetivo claro: evitar que esse choque se torne demasiado evidente.
Sunak, apesar disso, está entregue à inevitabilidade de três traições: ao seu partido, que o preteriu há sete semanas; ao programa do seu partido, impraticável três anos depois de valer uma maioria a Boris; e ao seu cargo, conspurcado pela sua total falta de legitimidade democrática.
De boas intenções está o Partido Conservador cheio
Sunak, que não é alheio a nada disto, tentou acautelá-lo no seu primeiro discurso de primeiro-ministro.
De forma inteligente, procurou apoderar-se das bandeiras que Boris Johnson apresentou em 2019 (“mais dinheiro para o SNS, mais escolas e mais hospitais”) e defender a ideia de que a maioria absoluta desse ano “não é de um homem só” ‒ ou seja, que também é dele.
Ao fim de dois parágrafos, porém, Sunak já embatia com Sunak.
Receando repetir a alienação de Truss, o novo PM alertou para os tempos difíceis que aí vêm e para as decisões que terá de tomar.
O problema é mesmo esse.
O programa eleitoral de 2019 não serve para responder à recessão de 2023.
Ou Sunak o assume, o que colocaria o seu mandato em causa.
Ou Sunak o esconde, o que arruinaria a sua credibilidade.
Hoje, conseguiu escapar a ambas.
Mas esse é um dilema que não se pode evitar para sempre.
He’ll be back, too
É um erro presumir que alguém será um bom-primeiro-ministro por ter mais integridade do que Boris e mais competência do que Liz Truss.
Numa democracia saudável, esse padrão é o mínimo, não o ideal.
Com oito horas de vida como primeiro-ministro, o sr. Sunak é um ponto de interrogação de hipóteses exclusivamente desfavoráveis.
Creio que podemos concordar: alguém que não conseguiu ganhar uma eleição a Liz Truss ‒ a PM mais breve da história do Reino Unido ‒ dificilmente vencerá uma eleição a Keir Starmer.
Este governo está morto e à espera que venham recolher o corpo.
Aos 42 anos, porém, é cedo para declarar o óbito de Rishi Sunak enquanto protagonista.
A política britânica é pródiga em ressurreições.
Gigantes como Churchill e Harold Wilson perderam eleições e voltaram a ganhá-las.
Veremos se Sunak resiste a uma noite que promete ser longa na oposição, quando lá chegar.
E se há Partido Conservador que valha a pena liderar depois de os britânicos fazerem o que já deveriam ter sido chamados a fazer há muito tempo.
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2 comments
  • Vicente Monteiro

    O brexit deu espaço a várias excrescências, mais ou menos democráticas. Mas os conservadores têm evitado de forma hábil o escrutínio em eleições. E se, de repente, após eleições, surge algum líder trabalhista que resolva recolocar o Reino Unido na rota…

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    • 9 h
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  • Francisco Leandro

    Agora sim que o Covid já não é uma questão aí estão as consequências do Brexit alimentadas pela guerra na Ucrânia em todo o seu esplendor…
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    • 5 h