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Drª Maria de Fátima Borges deixa-nos com um exemplo de açoriana e de intelectual
Há poucos dias enviei-lhe pelo Facebook uma mensagem a desejar-lhe um feliz ano de 2020. Na simpática resposta, a agradecer e a retribuir, a minha antiga professora universitária e amiga de há muitos anos informou-me, surpreendentemente, que estava “hospitalizada depois de uma operação” e que esperava ter “alta na próxima semana”.
Quando eu pensava que ela estava em franca recuperação, para regressar à sua “casa-museu” na cidade da Ribeira Grande, para junto dos seus muitos livros, do seu bem cuidado jardim e do seu adorado gato persa “Filipe”, sou agora confrontado com a triste notícia do seu falecimento.
Ainda recentemente publicou a obra “Vai Chover Amanhã”, que poderá sugerir ou indiciar a quem não a leu uma ideia – digamos assim – de alguma tristeza ou de um certo desencanto. Depois de ler – com o maior gosto e não menor prazer! – esta obra literária, composta de crónicas e contos, digo que o optimismo, o humor e a vivacidade de espírito acompanham todas as prosas, também marcadas, pelo menos algumas, por um notório sentimento de saudade, principalmente de familiares já desaparecidos.
Além disso, a natureza e o mar acompanham essa obra, como elementos estruturantes e marcantes da personalidade da autora, que nasceu na freguesia de Nossa Senhora da Conceição, no concelho de Ribeira Grande. Completou os seus estudos secundários em Ponta Delgada. Em 1961 ingressou na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que depois deixou por contingências da vida, para em 1976 ingressar na Universidade dos Açores, onde obteve a licenciatura em Estudos Portugueses e Ingleses. Durante vários anos, foi Assistente Convidada da Universidade dos Açores, onde lecionou a cadeira de Cultura Portuguesa, no âmbito do Departamento de Línguas e Literaturas. Também foi funcionária no sector bancário.
Além da obra “Vai Chover Amanhã”, foi e é autora do livro de contos “A Cor Ciclame e os Desertos”, editado em 1989. Produziu, igualmente, poesia. Esta autora está incluída, referenciada e estudada em várias antologias.
Estava e continuo a estar ligado à drª Maria de Fátima Borges por uma amizade muito antiga: primeiramente, através das nossas famílias, que se relacionam há longas décadas; depois, porque fui seu aluno – e com muito gosto e maior proveito académico! – na Universidade dos Açores; finalmente, mantivemos contacto através do Facebook, encontrando-me eu no Continente e ela na ilha de São Miguel, na sua “casa-museu”, na Ribeira Grande, cheia de móveis antigos e outras relíquias de família, sendo que o próprio edifício é também muito antigo, guarda recordações de várias gerações e certamente foi uma fonte de inspiração e um local apropriado para a criação literária.
A drª Maria de Fátima Borges, um exemplo de açoriana e de intelectual, sempre recatada mas sempre brilhante, deu um inestimável contributo para a literatura açoriana, literatura de significação açoriana ou literatura portuguesa produzida nos Açores, conforme a perspectiva de cada um. Vai fazer muita falta!
nota do editor deste blogue.
HÁ ANOS AQUANDO DA PUBLICAÇÃO DAS ANTOLOGIAS DA AICL ela foi escolhida para figurar (a única mulher nessa antologia de autores açorianos contemporâneos).Pessoa de trato afável, de uma humildade extrema, evitava os holofotes e recusou sempre ser homenageada nos nossos colóquios da lusofonia.
Lamenta-se que tenha sido injustamente esquecida pelos seus pares e que a sua obra não seja mais divulgada pela sua excecional qualidade, como se pode comprovar neste pequeno extrato dessa antologia
…” Vai chover amanhã
Se não tudo, pelo menos grande parte do que nos foi acontecendo se desvirtua de cada vez que a lembrança desta ou daquela situação nos entretém. Por muito fidedignas que, num primeiro momento, julguemos ser as versões de acontecimentos antigos que a nós próprios contamos, depressa começamos a desconfiar de que os diluímos, efabulando pormenores e intenções por desforra ou desfrute, embora a maior parte das vezes sem darmos conta de qualquer razão, se é que tem que haver alguma. Não sendo fiáveis, as
evocações expandem ou cerceiam aquilo de que se alimentam, ignorando escrúpulos de rigor e tomando o alvedrio por justeza.
Por isso não vou jurar que a rua fosse tão estreita como agora me parece e que as casas apresentassem a circunspecção decadente que me leva a julgar mais mofinos os seus habitantes. Poucos, de resto, porque boa parte dessa rua, de ambos os lados, era constituída por muros de pedra solta, uns mais altos do que outros, que delimitavam quintais onde tudo se cultivava, desde a melancia ao tremoço. No nosso, não. O espaço mal chegava para os araçazeiros que não davam trabalho, as obrigatórias hidrângeas e aquela árvore de altos ramos orvalhados de flores vermelhas que, em caindo, incendiavam o chão.
-Não as pises – repetia, como se fosse necessário.
Ao domingo, com a mãe ao piano, a vizinha aprendiz de canto entoava trechos conhecidos, esforçando-se por iludir, com notável persistência e escasso proveito, a incompatibilidade da sua voz com os sons mais graves. Do seu não muito vasto repertório, ainda penso que ouço o insistente queixume de um dos Scarlatti:
“O cessate di piagar mi
O lasciate mi morir”
que, naquela altura, me incomodava como uma espécie de premonição cuja eficácia me recusava admitir tanto quanto me permitia supor que resultasse, considerando o que fui sendo e continuaria a ser até ao momento final, àquele sem retorno que, no fundo, desde o princípio, se suspeita que irá chegar. Nunca se soube ao certo de onde tinham vindo aquelas duas criaturas. A maledicência local insinuou razões duvidosas sobre a ausência de um marido que se supôs militar, chegando mais tarde a suspeitar-se de que não tivesse existido como tal. Saíam de casa sempre juntas. A sua maneira de vestir, demasiado festiva em cores e modelos e o modo como a todos dirigiam dissimulados sorrisos e saudações dengosas foram interpretados como sinais de comportamentos anteriores mais soltos do que os que se tinham em boa conta numa terra de licenças secretas e arremedos precavidos. Ao princípio, mais na mãe do que na filha, fora este descomedimento, chamemos-lhe assim, tomado por donas de casa como assédio e por maridos e filhos mais velhos como novidade suscitadora de curiosidades e complacências. O tempo encarregar-se-ia de demonstrar as para alguns temidas e para outros ansiadas conclusões.
Passados tantos anos aqui estamos, por acaso sentados ao lado um do outro nesta sala de espera, condenados (ou não) a permanecer numa proximidade até há pouco tempo improvável, posto que imaginadamente possível, porque, na verdade, em tudo se tem que acreditar, por muito estranho que, de repente, se considere. …”