Óbito | Julieta Nobre de Carvalho, a esposa do Governador que viveu numa Macau em tumulto.
Falecida no passado dia 1 de Fevereiro, em Lisboa, aos 103 anos de idade, Julieta Nobre de Carvalho esteve em Macau ao lado do marido, o Governador Nobre de Carvalho, numa altura de grande tensão, em virtude do movimento “1,2,3”, ocorrido em Dezembro de 1966.
Tendo presidido à Obra das Mães, Julieta Nobre de Carvalho é o exemplo da grande presença pública assumida pelas mulheres dos Governadores portugueses na altura.
Julieta Nobre de Carvalho, esposa do antigo Governador Nobre de Carvalho, viveu em Macau entre 1966 e 1974, vivenciando de perto um dos períodos mais conturbados da sua história.
Falecida no passado dia 1 de Fevereiro, aos 103 anos, Julieta, mais do que ser uma simples esposa do Governador, marcando presença em eventos sociais, teve de lidar de perto com os acontecimentos do “1,2,3”, a expressão da Revolução Cultural no território, que já se fazia notar quando o casal Nobre de Carvalho chegou a Hong Kong sem quaisquer directrizes de Lisboa sobre como lidar com o caso.
Julieta Nobre de Carvalho deixou vários testemunhos sobre estes meses de tensão que quase deitaram a perder a Administração portuguesa de Macau.
Em 1996 falou com o jornalista José Pedro Castanheira sobre o “1,2,3” para o livro “Os 58 dias que abalaram Macau”.
Nele se lê que o casal Nobre de Carvalho chegou a Hong Kong às 11h30 do dia 25 de Novembro de 1966, “vindo de Manila, num avião da Philippines Airlines”, tendo sido recebidos no aeroporto de Kai Tak pelo então cônsul de Portugal em Hong Kong, António Rodrigues Nunes, e pelo então Governador de Hong Kong, David Trench.
Num almoço de boas-vindas oferecido por David Trench, o casal Nobre de Carvalho depressa percebe que tem em mãos um caso bicudo, de ordem diplomática e política, para resolver, sem que dele tivesse prévio conhecimento.
David Trench, escreve Castanheira, “procura saber do colega português quais as instruções que traz de Lisboa para resolver o problema criado na ilha da Taipa”.
Nobre de Carvalho de nada sabia.
“Até então ninguém nos tinha falado nada da trapalhada.
Só no hydrofoil é que soubemos verdadeiramente que o caldo estava entornado.
Fomos apanhados completamente de surpresa”, contou Julieta Nobre de Carvalho ao jornalista.
O seu marido tomou posse como Governador de Macau a 11 de Outubro de 1966, sendo obrigado a lidar com o caso “1,2,3” logo no início de Dezembro.
Os tempos foram de grande tensão, com Nobre de Carvalho a ser obrigado a gerir os tumultos nas ruas, a dialogar com os líderes da comunidade chinesa, nomeadamente Ma Man Kei e Ho Yin, e a responder às reivindicações de parte da comunidade chinesa que levou para as ruas de Macau, e para os jornais, a ideologia de Mao Tse-tung.
No final, numa decisão quase solitária, Nobre de Carvalho cedeu nas exigências e soube manter a presença portuguesa no pequeno território.
De frisar que, à época, Portugal, governado pelo regime do Estado Novo, não tinha relações diplomáticas com a República Popular da China, comunista.
Fernando Lima, ex-jornalista e assessor, foi director do antigo Centro de Informação e Turismo entre 1974 e 1976, mas quando chegou a Macau para ocupar o cargo já o casal Nobre de Carvalho tinha deixado o território, no rescaldo do 25 de Abril de 1974 que atribui o cargo de Governador ao General Garcia Leandro.
Fernando Lima considera que Julieta Nobre de Carvalho foi “a confidente do marido” num momento tão difícil da sua carreira, tendo estado “sempre presente nos principais acontecimentos”.
“É um nome de referência em relação a um certo período de Macau, tendo vivido toda a angústia e ansiedade do marido, que se viu obrigado a resolver aquele assunto depois de ter ido para Macau sem instruções”, acrescentou.
Nobre de Carvalho soube resolver “uma situação que parecia de ruptura” e, “para muita gente, foi o homem que salvou Macau”, recorda Fernando Lima, que entende que o Governador “foi sempre respeitado pelos chineses” devido a esse facto.
Fernando Lima só conheceu, de forma breve, Julieta Nobre de Carvalho aquando da realização da série televisiva “Macau entre dois mundos”, transmitida em 1999 pela RTP e que deu, mais tarde, origem a um livro.
Num dos episódios, “Anos de Agitação – Parte II”, Julieta Nobre de Carvalho confessa que, na viagem de Hong Kong para Macau, à chegada, o marido lhe confidenciou que “ia ter problemas em Macau”.
Sobre o “1,2,3”, disse ainda: “No período em que houve o recolher obrigatório, estivemos no edifício militar, mas foi uma questão de três dias.”
Na Macau de hoje são poucos os sinais que restam da passagem de Julieta Nobre de Carvalho pelo território.
O mais visível será o edifício de habitação pública que ganhou o seu nome, tendo sido inaugurado em meados da década de 70 na avenida Artur Tamagnini Barbosa, na zona norte da península.
Rita Santos, conselheira do Conselho das Comunidades Portuguesas, morava numa casa social do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP), situada perto do novo complexo de habitação pública.
Ao HM, diz recordar-se “muito bem” da inauguração do edifício e de Julieta Nobre de Carvalho, “uma senhora muito simpática, que andava sempre bem vestida, com o cabelo bem arranjado e que conversava muito comigo nas actividades sociais”.
“Eu e as minhas irmãs, bem como os vizinhos, fomos ver a inauguração do edifício onde alguns colegas meus do liceu chegaram a viver.
A dona Julieta saiu de um carro grande de cor preta, do Governo, com um sorriso bonito, acenando para o público.
Como eu estava perto da porta principal, ela aproximou-se de mim e perguntou-me como eu estava.
Eu só lhe disse que ela estava muito bonita”, recordou.
Julieta Nobre de Carvalho marcava, assim, presença em diversos eventos sociais, com e sem o marido.
Exemplo disso foi a recepção oferecida pelo Consulado do Japão às autoridades portuguesas no restaurante “Portas do Sol”, no Hotel Lisboa, a 5 de Julho de 1973.
As imagens a preto e branco, sem som, hoje disponíveis online na plataforma RTP Arquivos, mostram a presença simpática e formal do casal Nobre de Carvalho.
Outro exemplo da actividade social de Julieta Nobre de Carvalho, faz-se com a sua presença, a 14 de Março de 1973, na inauguração da loja de antiguidades “Armazém Velho”, que à data funcionava nas arcadas do edifício do Hotel Lisboa.
A esposa do Governador esteve também, sozinha, na festa do Centro de Reabilitação de Cegos da Santa Casa da Misericórdia, a 21 de Janeiro de 1973, um evento dedicado aos utentes da instituição.
No blogue “Nenotavaiconta”, onde são partilhados diversos episódios da história de Macau, recorda-se o momento em que, a 9 de Dezembro de 1970, Julieta Nobre de Carvalho inaugurou uma exposição de trabalhos de ergoterapia feitos pelos pacientes do Centro Hospitalar Conde de São Januário.
Julieta Nobre de Carvalho esteve ainda presente na inauguração de “Uma Exposição de Pintura, Arte e Beneficência”, a 30 de Março de 1974, patente no átrio da então Escola Comercial, hoje Escola Portuguesa de Macau.
Julieta Nobre de Carvalho esteve presente “dados os fins assistenciais a que se destinava o produto da venda dos quadros que se viesse a realizar”, lê-se no blogue.
Mas a esposa do antigo Governador foi mais do que uma mera “corta-fitas”, tendo presidido à direcção da Obra das Mães.
Foi com esse trabalho que tentou “congregar as ‘senhoras’ da sociedade macaense para que pudessem contribuir mais para essa organização, de ajuda aos mais necessitados”, aponta Fernando Lima.
João Guedes, jornalista e autor de diversas publicações sobre a história de Macau, destaca o facto de a presidência da “Obra das Mães”, entidade fundada em 1959, estar, habitualmente, destinada às mulheres dos Governadores.
Era uma associação que “tinha como missão a promoção de actividades relacionadas com a educação familiar, a qualidade de vida, o apoio às mães e acções de caridade”, congregando “as elites femininas de Macau e assumindo, por vezes, a dinamização de alguns projectos do Governo, sempre que, para a sua realização, se mostrava necessário envolver a sociedade civil no seu pendor feminino.”
Rita Santos ia, no dia oito de cada mês, à Obra das Mães buscar bens essenciais com as irmãs mais velhas.
“Em alturas de celebração das quadras festivas, ela estava presente na Obra das Mães e entregava os bens a todas as famílias.
Quando chegava a minha vez ela dizia ‘Menina Rita, espero que os bens possam ajudar a sua família’.
Isto porque, na altura, éramos 12 pessoas”.
João Guedes fala ainda de outras actividades ligadas à Igreja católica desenvolvidas por Julieta Nobre de Carvalho, numa altura em que “a comunidade chinesa vivia, em grande medida, apartada da portuguesa”.
A esposa do Governador apresentava “uma imagem de simpatia”, mas que se “confinava praticamente à população lusófona”.
Acima de tudo, Julieta Nobre de Carvalho foi o exemplo de presença pública que as mulheres dos Governadores portugueses assumiam, não se limitando a ficar na sombra.
Postura bem diferente face às esposas dos Chefes do Executivo da era RAEM.
“Essa é uma característica da cultura chinesa.
As mulheres dos Governadores tiveram sempre um papel de apoio à acção social, com a preocupação de dar força às organizações locais viradas para esse apoio social e para o bem-estar da população.
Hoje mal conhecemos as mulheres dos Chefes do Executivo, que têm uma presença muito discreta.
Entende-se que a política é para ser feita pela pessoa que tem a autoridade.
Só aparece a mulher do Presidente Xi Jinping [Peng Liyuan] porque este tem uma presença internacional e ela própria é uma figura conhecida na China”, destacou Fernando Lima.