LUTO – MORREU O HISTORIADOR JOSÉ MATTOSO
Foi um dos maiores medievalistas portugueses, professor e diretor da Torre do Tombo. Viveu em Timor, estudou na Bélgica. Nasceu em Leiria, em 1933. Sofria há vários anos da doença de Parkinson
Luciana Leiderfarb
Jornalista/Expresso
O historiador, na altura com 88 anos, tinha lançado meses antes um livro pela Temas e Debates, a editora onde tem a obra publicada. Chamava-se “A História Contemplativa” (Temas e Debates) e era uma coleção de ensaios escritos entre 1996 e 2013. Neles, refletia sobre o ofício e a metodologia do historiador, além das temáticas que desde sempre lhe interessaram. Assim, ao mesmo tempo que explicava como o seu trabalho equivale ao “movimento da Humanidade sujeita ao tempo”, por sua vez desdobrado em “História vivida” e “História escrita” – “o que o Homem fez desapareceu com o tempo, mas foi re-representado, isto é, ‘tornado presente’ pelo que contou, pelo que escreveu e pelo que criou” -, debruçava-se sobre “a religião dos alentejanos”, “a leitura e a escrita na cultura monástica medieval”, “Portugal no reino de Leão” ou o que é ser um medievalista (como ele). Uma ânsia de definir e definir-se percorre o livro, tão atual ainda que os textos pertençam a essa saga escrita que com o tempo moldamos e nos molda.
José Mattoso, que morreu este domingo vítima de Parkinson, escolheu a História por ser uma narrativa, a nossa. A que contamos sobre nós mesmos. Antes disso, tinha optado pela vida monástica, passando 20 anos na Abadia de Singeverga, em Santo Tirso. Mas essas duas vias não estavam desligadas: “Não sou historiador por opção profissional, mas para ser fiel à vocação monástica, na medida das minhas capacidades”, disse ao Expresso há dois anos. Diferenças entre os seus ideias e a prática – entre a vida ativa de um monge e a contemplação que ele procurava para si – levaram-no a sair de Singeverga, passando a alternar períodos de reclusão voluntária em aldeias ou povoados isolados com outros de docência e atarefada investigação.
Os historiadores José Mattoso, Rui Rocha e A. H. de Oliveira Marques, antes de uma reunião aberta a não maçons realizada em Lisboa em 1979
Os historiadores José Mattoso, Rui Rocha e A. H. de Oliveira Marques, antes de uma reunião aberta a não maçons realizada em Lisboa em 1979Foto Rui Ochoa
O monge beneditino
Nascido em Leiria a 22 de janeiro de 1933, veio de um meio conservador e católico. O pai, professor, ex-seminarista e admirador de Salazar tinha estudado Direito em Coimbra, era professor de liceu e ficou conhecido pelos compêndios de História de Portugal que viria a escrever. O filho herdou o pendor religioso, de que deu conta logo aos oito anos, depois de ler uma biografia de S. Francisco de Assis. Mas acabaria por escolher outro tipo de sacerdócio e, enquanto era monge beneditino, licenciou-se em História na Universidade de Lovaina, doutorando-se depois em história medieval com a tese “Le Monachisme ibérique et Cluny: les monastéres du diocése de Porto de l’an mille à 1200”.
Em finais dos anos 1960 e inícios da década de 70, José Mattoso assume uma mudança de rumo: abandona os votos religiosos. Havia uma “incompatibilidade com o teor de vida” seguido no mosteiro, explicaria ele. “Nessa altura ganhavam relevo as experiências de evangelização nos meios pobres da América Latina apoiados por bispos e religiosos de mentalidade não clerical, como Hélder Câmara, Óscar Romero, Leonardo Boff e outros. Decidi casar-me e, com a minha mulher, pôr-me ao serviço de um bispo que nos aceitasse. Fizemos alguns contactos nesse sentido, mas um dos bispos a quem escrevemos aconselhou-nos a adiar a decisão durante algum tempo, para nos adaptarmos à vida laica.” Entretanto, aceitou um convite da professora Virgínia Rau, da Faculdade de Letras de Lisboa, para preencher uma vaga de professor convidado de História Medieval. Se o ensino universitário lhe deu um sustento, Mattoso continuaria ligado à fraternidade secular dos Irmãozinhos de Charles de Foucauld.
Nos anos 1980, após tornar-se professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, publicou obras importantes. Além de “A nobreza Medieval Portuguesa – A Família e o Poder” (Estampa), de 1981, e de “Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa” (INCM), lançado um ano depois, em 1985 seria a vez de “O Essencial sobre a Formação da Nacionalidade” (INCM) e, acima de tudo, “Identificação de um País – Ensaio sobre as Origens de Portugal” (Temas e Debates), livro importantíssimo e original que nasce da insatisfação de “não encontrar na historiografia portuguesa respostas para muitas interrogações que a moderna ciência histórica não pode deixar de colocar.”
Logo na introdução, o historiador diz ao que vem e para onde orientou o seu empreendimento: “A minha curiosidade orientou-se especialmente para os homens concretos, a sua maneira de viver e de pensar. As instituições, as estruturas, as formações sociais e económicas interessaram-me, sobretudo na medida em que os podem revelar. Mas o que mais me atrai no passado medieval é a mentalidade: como é que os homens viam o mundo e se organizavam para tentarem dominar a realidade, nessa época tão diferente da nossa? (…) Mais do que exaltar a pátria, interessa-me o relacionamento dos portugueses uns com os outros.” Noutra passagem, observa: “A resposta do passado medieval, pelo menos a que ouvi, foi esta: Portugal é irredutível e simultaneamente uno e múltiplo. A História convida-nos a viver com as incomodidades daí decorrentes e a tentar tirar delas algum partido.”
Em 1988, José Mattoso foi presidente do Instituto Português de Arquivos, área à qual regressaria como diretor da Torre do Tombo entre 1996 e 1998, e na temporada em que residiu em Díli, Timor-Leste, entre 1999 e 2006, após obter a reforma antecipada como professor universitário. Ali trabalhou na recuperação do arquivos Nacional e da Resistência, ao mesmo tempo que lecionou no Seminário Maior e colaborou com o ISMAIK – Instituto Secular de Irmãos e IrmãsUnidos em Cristo. “Não me sinto bem em público. Procurei sempre ser discreto nos cargos que desempenhei. Não olho para a minha própria história, a não ser do ponto de vista da minha relação com Deus”, disse ao Expreso em 2021.
Ainda nos anos 1990, surgem volumes como “A Identidade Nacional” e “Portugal – O Sabor da Terra” (Temas e Debates), este último subtitulado “um retrato histórico e geográfico por regiões”, feito em parceria com a geógrafa Suzanne Daveau e o fotógrafo Duarte Belo. Em 1999, dá à estampa o ensaio “A função da História no mundo de hoje”, tema que o ocuparia noutros livros, como no mais recente, de 2020, “A História Contemplativa” (Temas e Debates), onde resume a sua metodologia e explica o seu pensamento, “positivo e não positivista”: “A História devia ser considerada na perspetiva totalizante da visão contemplativa, e não apenas na perspetiva analítica que preside à crítica da veracidade.” Dito de outra forma, “um aprendiz de historiador deveria olhar para o passado da Humanidade numa atitude ‘contemplativa’, ou seja, ver a realidade de um ponto fixo a partir do qual pudesse abranger todo o passado, e inserir nele tudo aquilo que o tempo eliminou, mas do qual deixou rastos”.
A História de Portugal
José Mattoso teve uma produção prolífica, publicando acima de 30 livros. Coordenou uma “História de Portugal” e a “História da Vida Privada em Portugal”. Além de catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, exerceu a atividade docente noutras instituições, como a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e o Instituto Superior Técnica. Fora das fronteiras, foi professor e conferencista nas universidades de Paris (Sorbonne), Bordeaux, Poitiers, Santander, Santiago de Compostela, Sevilha, Oviedo e Roma. Foi também depositário de vários prémios relevantes, e foi o primeiro a receber o Prémio Pessoa, em 1987. Em 1992, foi-lhe outorgado o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada. O seu olhar sobre Portugal manteve-se agudo até ao fim: em 2021, na sua última entrevista, disse que Portugal “continua a ser um país rural” em que a “distribuição da riqueza é muito desigual”. Nessa oportunidade, afirmou que, para ele, a História estava em segundo plano. “O mais importante é a relação com Deus.”