Díli, 03 out 2023 (Lusa) – Os nove meses em Timor-Leste, no período quente de 1974-75, deixaram marcas em Nuno Lemos Pires, filho do último governador português do território, cuja intensidade se comprovou agora, no regresso ao país 48 anos depois.
Diretor-geral de Política de Defesa Nacional no Ministério da Defesa português, Nuno Lemos Pires está em Díli para uma visita oficial, mas que é também um regresso à infância, às memórias “absolutamente magníficas” que perduram e que terminam com a dor de uma partida à pressa.
“Ter de sair é algo que custa sempre. Foi um momento triste, saímos num momento difícil, num navio de carga, o MacDili. Fomos como refugiados para a Austrália. Tenho recordações absolutamente magnificas de Timor, mas de certeza que o momento de saída não foi o momento mais feliz”, recordou em entrevista à Lusa em Díli.
“Foi um momento muito triste. Sentia e via a frustração do meu pai a tentar controlar aqui as coisas, a sentir-se muito sozinho no que conseguia aqui a fazer, mas sempre com muita vontade de resolver o problema”, explicou.
Nuno Lemos Pires chegou com a família a Díli no natal de 1974, com Portugal em ebulição e Timor-Leste a entrar num dos períodos mais complexos da sua história, um processo que acabaria por incluir uma curta guerra civil, a declaração unilateral da independência e, posteriormente, o início da sangrenta invasão indonésia.
O pai, Mário Lemos Pires, tinha sido nomeado governador a 18 de novembro de 1974. Seria o último governador de Timor português.
Então com 10 anos – que “já dá para ter consciência” – Nuno Lemos Pires terminou a quarta classe em Díli e até “já sonhava com o liceu”, onde nunca acabaria por entrar, depois de um intenso período de nove meses que marcaram para sempre a vida da sua família.
Durante décadas, a ação de Mário Lemos Pires tem sido alvo de debates intensos.
A sua retirada para Ataúro, a 27 de agosto de 1975, com Timor-Leste em plena guerra civil – acabaria por sair oficialmente de Timor-Leste a 23 de setembro desse ano -, suscita debates ainda hoje.
De um lado os que apontam o contexto da época, a falta de instruções claras de uma Lisboa a viver o seu verão quente, do outro as críticas dos que consideram que a saída Díli pode ter tido consequências no desfecho do que viria a acontecer depois no território.
“Fazer simplificações na história é sempre complicado. Tenho uma admiração e um respeito enorme pelo meu pai. Acho que fez humanamente tudo o que era possível e acho que esteve certo. Li tudo, vi tudo e falei com muita gente ao longo destes anos”.
“Era muito importante que Portugal não tomasse partido por nenhuma das partes, mantivesse um papel de neutralidade, e a capacidade de diálogo entre as partes”, sublinhou.
Perante a crescente conflitualidade entre as duas forças políticas, União Democrática Timorense (UDT) e Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin), Portugal, vinca, não poderia perder a neutralidade.
Se a perdesse, “Portugal poderia passar a ser confundido com um dos lados e dar razão à indonésia e outros países” que queriam justificar a invasão.
“Acho que essa foi a força do meu pai. Dizer não, eu não me envolvo na luta direta e estou aqui para garantir as condições para que haja diálogo e haja outra a vez possibilidade de conversação. A saída para Ataúro é isso. É uma saída autorizada pelo Presidente de Portugal, Costa Gomes, pensada. Não foi precipitada, foi com muito tempo e tranquila. E o objetivo era a partir dali conseguir bases políticas para haver conversações e apoio internacional”, salientou.
Lemos Pires afirmou que o pai “fez tudo o que podia, sempre assumiu todas as suas responsabilidades, nunca as passou a ninguém, e viveu com a calma interior de quem fez o melhor que podia”.
E vinca até que a ação do pai, “ao ter respeitado escrupulosamente os princípios previstos da autodeterminação devida ao povo”, pode ter contribuído para fortalecer os laços entre Timor-Leste e Portugal, reforçando a identidade dessa relação.
“Estávamos em pleno verão de 1975. Portugal estava aflito com uma ponte área de Angola, uma quase guerra civil em Portugal e sim, o meu pai foi efetivamente abandonado aqui. Não recebia instruções, não recebia apoio, não tinha forças aqui”, notou.
“Mas o meu pai, naquela altura, não era o militar, era o governador. Era o comandante em chefe, mas aqui o comandante chefe não se pode sobrepor ao governador e o governador tem de ter a noção política de que naquele momento o não intervir é mais importante do que intervir”, vincou.
Lemos Pires diz que a ação do pai mostrou lucidez e coragem, especialmente porque evitou combates entre portugueses e timorenses.
“Foi um momento de lucidez. E também sem sangue, sem ter aqui portugueses a disparar contra timorenses. Saímos daqui sem haver combate entre portugueses e timorenses e é por isso que somos tão irmãos. A decisão de não intervir para manter a neutralidade e para evitar conflitos entre timorenses e portugueses”, disse.
“E com muita coragem. É muito mais fácil dizer, vou ao combate, do que dizer eu fico. Colocou o seu papel político de governador acima do de comandante-chefe, e decidiu não intervir”, acrescentou.
É com estas memórias que, 48 anos depois, regressa a Díli, para uma visita onde analisará com as autoridades timorenses a nova fase de cooperação portuguesa com Timor-Leste no setor da defesa.
“A sensação quando uma pessoa aqui chega é de que se entrou numa terra, numa nação de gente digna, que dá um exemplo ao mundo pela sua unicidade, por conseguir transmitir a ideia de viver numa democracia, entre valores e ideias”, disse Lemos Pires, numa palestra, em Díli, sobre o contexto da segurança global.
“Sinto-me em casa. Toda a vida pensei em Timor-Leste”, reconheceu.