“Se hoje em dia as pessoas se interessam mais pelo patuá, é muito graças aos Dóci Papiaçám”
Os Dóci Papiaçám di Macau celebram 30 anos de existência.
O número redondo faz com que este ano, pela primeira vez, apresentem três espectáculos no Grande Auditório do Centro Cultural de Macau (CCM), no âmbito do Festival de Artes de Macau.
“Chachau-Lalau di Carnaval (Oh, Que Arraial!)” sobe ao palco nos dias 26, 27 e 28 de Maio.
Em entrevista ao PONTO FINAL, Miguel de Senna Fernandes recordou os primeiros anos dos Dóci, falou sobre o seu crescimento e destacou a importância do grupo para a preservação do patuá.
“Toda a gente sabe: isto é um espectáculo único”.
A frase é de
Miguel S Fernandes, fundador e encenador dos Dóci Papiaçám di Macau, grupo de teatro que há 30 anos tenta preservar a identidade sociocultural de Macau e põe o patuá em acção em cima do palco.
Em entrevista ao PONTO FINAL, Miguel de Senna Fernandes recordou a “coragem, atrevimento e ousadia” dos primeiros espectáculos em patuá.
Olhando para trás, o encenador considera que o que foi feito pelo grupo nas últimas três décadas foi “uma façanha” e não tem dúvidas:
“Se hoje em dia as pessoas se interessam mais pelo patuá, é muito graças aos Dóci Papiaçám”.
O 30.º aniversário dos Dóci Papiaçám di Macau é celebrado com a apresentação de três espectáculos no Grande Auditório do Centro Cultural de Macau (CCM), no âmbito do Festival de Artes de Macau.
O espectáculo, que este ano tem como título “Chachau-Lalau di Carnaval (Oh, Que Arraial!)”, sobe ao palco nos dias 26, 27 e 28 de Maio.
– Os Dóci Papiaçám di Macau fazem 30 anos. Foi difícil manter o interesse do público ao longo destas três décadas?
Foi sempre difícil, sempre com o coração nas mãos.
Há sempre o risco de não haver público.
As pessoas que vão para o palco precisam do público e sem esta dinâmica não há sucesso.
Não se engendra nenhuma arte performativa sem a intervenção e cumplicidade do público.
Ao longo deste tempo, tivemos a sorte de proporcionar boas gargalhadas, mas nada é garantido.
– O interesse da sociedade e da comunidade manteve-se sempre?
Só depois dos espectáculos é que podemos tirar conclusões sobre se houve interesse ou não.
Desta vez não sabemos se as pessoas estão interessadas ou não naquilo que nós vamos apresentar.
Durante estes 30 anos, tomámos alguma prudência em não ter favas contadas.
Eu, por natureza, desconfio sempre e nunca dou por certo aquilo que pode acontecer.
Já houve espectáculos que não foram um sucesso como nós estávamos à espera.
– Nota alguma diferença no interesse por parte de alguma comunidade em específico? Macaense, portuguesa, chinesa?
A comunidade macaense tem a sua sensibilidade, eles sabem o humor que está lá.
Depois temos a comunidade portuguesa, estes têm uma outra percepção das coisas e gostam de ir aos nossos espectáculos, são fãs.
Não sei se isso se vai reflectir ou não, mas houve muitas pessoas que saíram de Macau e eram fãs incondicionais dos Dóci Papiaçam.
Depois, naturalmente, há um interesse crescente da comunidade chinesa.
Eles ficam absolutamente maravilhados com a possibilidade de conseguirmos ter uma interacção de línguas e de culturas no mesmo palco.
É justamente isso que temos feito ao longo destas décadas.
O teatro patuá, além da língua, é uma plataforma de culturas de Macau – este é o reflexo que se quer para Macau.
Há sempre um pendor da cultura macaense, mas mesmo assim a comunidade chinesa está cada vez mais interessada.
No fundo, abraçaram esta ideia de que o teatro em patuá é cultura da RAEM.
Se eu assumo que a ópera chinesa ou o Dragão Embriagado fazem parte da minha cultura, porque é que eles não fariam o mesmo [com o patuá]?
Eu acho que esta ideia está a vingar.
Há também gente de Hong Kong que vem de propósito.
Mesmo em Hong Kong já se sabe que existe esta coisa do patuá, eles estão de sobreaviso e não me espanta que haja pessoas a querer vir ver.
Toda a gente sabe: isto é um espectáculo único.
– O que é que recorda da primeira actuação dos Dóci Papiaçám há 30 anos?
Carolice, pura e simplesmente.
Foi coragem, atrevimento e ousadia.
O Adé dos Santos Ferreira tinha falecido, e a ideia era continuar [com o teatro em patuá].
Não era fácil, mas mesmo assim quiseram ir por carolice.
Eu, na altura, era o mais novo de todos.
Coube-me a mim, por circunstâncias várias, escrever o primeiro guião.
Eu não percebia nada de teatro – não sei se já percebo.
Só sabia que no palco tinham de acontecer determinadas coisas numa certa sequência.
Sabia lá eu a teoria sobre escrever uma peça de teatro, não sabia nada.
O que interessava era pôr o espectáculo a funcionar.
Durante muitos anos foi assim – e continua a ser assim agora.
Durante muito tempo ansiava ter uma pessoa que me desse formação, alguém que me dissesse como é que as coisas devem ser feitas, mas esta figura nunca apareceu.
Por isso, tinha de fazer primeiro e depois ver a porcaria que tinha feito [risos].
– Foi por tentativa e erro?
E ao longo destes anos tem sido assim.
Foi assim que comecei a produzir as minhas músicas.
Sabia lá eu o que era o som, o que era a mistura, o que era a masterização.
Tive de aprender, fiz muita porcaria no meu computador, gastei dinheiro e tudo mais.
Agora, parece-me que tenho o som mais ou menos aceitável.
Para o grupo todo foi sempre assim.
Nós não temos nenhuma formação técnica.
Houve uma altura em que achámos que precisávamos de formação, mas tinham passado tantos anos…
A carolice tem de continuar e continuamos a ser os mesmos carolas – mas mais avisados agora.
– Há 30 anos achavam que iam ter a longevidade que têm tido?
Nunca pensámos nisso e ainda bem.
No início, nos primeiros dez anos, pensámos sempre: “Queira Deus que no próximo ano tenhamos esta oportunidade”.
A partir dos 15 anos sentimos que já estavam a contar connosco.
Fomos sempre por convite do Instituto Cultural, que foi o grande impulsionador do grupo.
Todos os presidentes tiveram sempre muito carinho pelo grupo.
– O IC deu sempre o apoio necessário para que o grupo apresentasse os seus espectáculos?
Deu sempre o apoio necessário.
O Governo de Macau, através do Instituto Cultural, teve sempre muito carinho.
Não tenho razões de queixa.
É o grande impulsionador do teatro.
O público foi sempre acompanhando e aumentando.
As coisas começaram a mudar, porque a forma do espectáculo passou a ser outra há 16 ou 17 anos.
Começámos a ter vídeos, por exemplo.
Os vídeos foram uma dimensão absolutamente brutal dos nossos espectáculos.
Pode não ter nada a ver com a peça, mas não é só a peça que está em causa, é o espectáculo todo.
Neste aspecto, o
Sergio [Perez] teve um papel importantíssimo.
Há pessoas que vão lá e não querem saber o que se passa no palco, estão é à espera dos vídeos.
– Regressando ao tema do teatro em patuá, sente que os Dóci Papiaçám são o último reduto na preservação do patuá? Carregam essa responsabilidade?
Há alguma responsabilidade.
O facto de sermos formalmente garantes do teatro em patuá em Macau – nós fomos nomeados entidade de salvaguarda – acarreta uma responsabilidade.
Por outro lado, a responsabilidade é de todos.
Era o que mais faltava que o patuá fosse só para nós.
Se os outros macaenses não quiserem saber sobre o patuá, não há problema nenhum, ninguém chora por isso.
Mas se havia alguma coisa que nós tínhamos de fazer, nós fizemo-lo.
O grupo, ao longo do tempo, evoluiu como acérrimo defensor de uma língua.
Nós estamos a cumprir dentro daquilo que podemos fazer.
Claro que daqui não saem manuais nenhuns, não há tratados sobre o patuá a sair deste grupo, não saem coisas académicas que servem para estar nas estantes, mas saem outras coisas.
Há uma coisa que não se pode ignorar: Nós colocamos a língua em interacção, enquanto os livros têm uma língua estática.
Nós colocamos a língua, pelo menos naqueles momentos em palco, a funcionar.
Demonstramos que essa língua funciona e é comunicável.
Só isto é de valor inestimável.
– Como é que olha para o futuro? Como é que se pode preservar uma língua que não é falada no dia-a-dia?
Tudo depende do interesse das pessoas.
O esperanto existe ou não existe?
Quem diz esperanto, diz latim.
Há filmes com diálogos em latim.
Mas no dia-a-dia alguém fala latim?
O patuá tem uma função diferente.
Quando se fala em patuá as pessoas dizem logo que é uma língua morta.
Há décadas que abandonámos a ideia de querer que toda a gente fale patuá.
Por amor de Deus, não é isto que está em causa.
Mas o patuá identifica a comunidade, dá-lhe um passado.
Isto acontece sob a forma de arte performativa, é uma língua de uma arte performativa.
O que nós fizemos durante os últimos 30 anos foi uma façanha.
Tendo uma vida mais simples possível, vivemos 30 anos.
Além do patuá, tentam também preservar a identidade sociocultural de Macau.
– Isso tem sido tarefa difícil, dado que nas últimas décadas – e especialmente nos últimos anos – se têm verificado muitas mudanças em Macau?
Não foi fácil e não está a ser fácil.
Muitas referências são outras.
Referências que nós tínhamos dado como certas já não existem.
Só isso modifica o horizonte das pessoas.
A nova geração não tem o passado que nós vivemos e isso dificulta porque muitos deles começaram, em pequenos, a estudar outras línguas.
Isso pode ter trazido alguma disparidade de entendimento da cultura macaense.
Na comunidade macaense, há opiniões várias sobre a identidade.
Há quem estude a identidade e há quem ache que isso é uma pura perda de tempo.
Nem todos olham para a cultura macaense da mesma forma.
Hoje em dia há uma disparidade logo à partida.
Há muitos que querem estudar a identidade macaense sob pontos de partida diferentes.
Isto não é o fim de nada, é uma etapa que temos de ultrapassar.
O Dóci Papiaçám é aquele grupo de carolas que todos os anos manda umas bocas no palco e faz rir, mas é muito mais do que isto.
Se hoje em dia as pessoas se interessam mais pelo patuá, é muito graças aos Dóci Papiaçám.
– Este é um espectáculo que tem satirizado a sociedade local, determinadas figuras e acontecimentos. Isso sempre foi bem aceite? Alguma vez sentiu que não podia abordar determinado assunto?
Até este momento, nunca houve ninguém que pusesse entraves.
Só houve uma ocasião, em 2006, e foi por causa de uma notícia de um jornal.
Fizemos uma paródia sobre o Bin Laden e o bando dele estava sediado nos túneis da Guia.
Deu celeuma porque vínhamos na sequência de uma polémica na Dinamarca, em que um cartunista caricaturou Alá.
Depois de gravarmos, aquilo saltou para um dos jornais aqui de Macau sem nós sabermos.
Acto contínuo, o gabinete do Instituto Cultural disse-nos que aquela não era a melhor altura:
“Não levem a mal, isto não é censura, não é absolutamente nada, mas não é a melhor altura”.
Em muito pouco tempo fizemos uma outra coisa completamente diferente e lá nos safámos.
Mas não, nunca houve nenhum entrave.
– Recentemente, o secretário para a Segurança, no âmbito da segurança nacional, falou em “segurança cultural” dizendo que é preciso implementar esse conceito em Macau. Isto não poderá levar a uma auto-censura da vossa parte e de outros grupos?
As pessoas conhecem o nosso estilo.
Nós sabemos como brincar, julgo eu.
Há certas situações-limite e nós não vamos além disso.
Em Macau, as pessoas são muito sérias, não sabem brincar e não têm sentido de humor.
A partir do momento em que se diz que haverá uma censura cultural e se fala em segurança cultural, acabou.
– Mas o secretário falou desse conceito…
A partir da altura em que não se puder brincar, a comédia é para quê?
Eu não tenho receio nenhum.
Durante 30 anos deu para ver o que nós andámos a fazer.
Se esta mesma actividade levar com restrições por causa de um conceito de segurança cultural, cujos limites nós desconhecemos, isso pode ditar o fim da comédia em Macau.
Será responsabilidade do próprio Governo ditar o que é que é cómico.
Eu estou em crer que o secretário não quer ir até aí.
Eu estou em crer que não é isso que se pretende.
Seria uma situação ridícula.
Nós fazemos a nossa parte e respeitamos sempre a sensibilidade das pessoas.
– Disse recentemente ao Jornal Tribuna de Macau que têm a intenção de exportar o formato do espectáculo para o interior da China e para Portugal. Já há algum contacto nesse sentido?
Houve sempre aquela pergunta: “Quando é que vocês vão ao Continente?”.
Não há nenhum convite formal, não existe corpo nenhum que justifique uma deslocação ao interior da China.
Para Portugal é diferente.
Não é que haja contactos, mas há público para isso.
Há muitos macaenses que estão lá, muita gente que viveu em Macau muitos anos e conhecem os Dóci Papiaçám.
Também há um crescente interesse de curiosos.
Ir para o Continente é uma questão de tempo.
Se não for no próximo ano, será daqui a uns anos.
– Nesse caso, o formato teria de se alterar um pouco, não?
Vai ter de ser diferente.
Uma das coisas básicas é entender o que se está a passar no palco.
A noção de língua veicular é uma coisa que não podemos desprezar.
Se tivermos de ir para o Continente, temos de encontrar algo que faça com que a história possa mover-se na mente das pessoas.
As pessoas precisam de ter noção do discorrer da história e isto tem muito a ver com a língua.
Estamos a falar de comédia e as pessoas precisam de entender as ‘punch lines’.
Teríamos de pensar numa estratégia.
– Este ano, a peça é apresentada em três dias. Porque é que isto acontece?
Isto foi uma gentileza do Instituto Cultural.
Como fazemos 30 anos, puseram-nos como espectáculo de encerramento – uma grande responsabilidade.
Por outro lado, é uma grande honra.
– Também é um sinal de que o interesse no espectáculo é cada vez maior, não é? Acha que vão encher três vezes o Grande Auditório do CCM?
Os Dóci Papiaçám foram sempre assim: quando achamos que vai acontecer alguma coisa, isso não acontece.
E aquilo que não esperávamos que acontecesse, acontece.
Vivemos sempre na contrariedade.
Eu não espero coisa nenhuma.
Se não encher, paciência.
Tenho dito sempre aos nossos actores: Primeiro, temos de gostar da nossa actuação e de nos divertir.
– Já estão a pensar na peça do próximo ano?
Este é um fechar de um capítulo.
No próximo ano haverá outro espectáculo, com certeza.
Nós temos evoluído muito.
Eu evoluí bastante no âmbito musical, pode haver mais música.
A música é universal e pode levar a sítios que nós não esperamos.
Continuo a ser um analfabeto no que toca a fazer música [risos], mas ‘the show must go on’.