A Mulher Coragem e a sua Liberdade na Escrita.
É descrita com um misto de sentimento que caracteriza a determinação de uma mulher com um pensamento à frente para a sua época.
É em si a liberdade e a libertação para as mulheres, quebrando a hipocrisia da sociedade.
No domingo assinalam-se 100 anos (nota: este artigo é de 2013) do nascimento de Deolinda da Conceição que, por mérito profissional, se tornou na primeira jornalista de Macau, trabalhando num universo dominado pelo sexo masculino.
Através da leitura dos seus contos é possível sentir a sensibilidade com que toca nos vários mundos que se cruzaram numa terra pequena.
Um cais onde a mãe é desprezada pelo conflito interior do filho, nessa angústia de viver a incerteza de ser parte de dois mundos que se tocam em Macau ou os passos que afastaram Sam Lei do lar “quando a guerra veio lançar as suas garras sangrentas” e a levaram a descobrir a firmeza da mulher que encerrava em si.
Nas páginas de Deolinda da Conceição cabe sobretudo a sensibilidade para o outro.
Sem precisar de malabarismos, a primeira jornalista de Macau não escreveu apenas contos de amor, mas sobre a sua verdade, à medida que foi despindo a pele de uma sociedade hipócrita, que pecava num silêncio capaz de esconder a beleza dos que ousavam ser livres.
Mas ela não conseguiu ficar indiferente à poesia do próximo, mesmo que os sons de cada verso às vezes fossem lágrimas ou gritos de superstição.
Nascida a 7 de Julho de 1913, na freguesia de São Lourenço, – há quase 100 anos – Deolinda do Carmo Salvado, viria a enfrentar uma época pouco justa para as convicções da mulher independente que crescia no seu íntimo.
E se nos seus contos o destino é um dos elementos dos enredos reais, ela escreveu o seu rumo abarcando o mundo.
Aos 18 anos casa em Cantão com Luís Gaspar Alves, um dos primeiros sinais “do seu carácter determinado”.
Partiu para Xangai já com um filho nos braços e depois do nascimento do segundo rebento teve a coragem de impor os seus sentimentos e divorciar-se.
Trilhou o caminho da guerra com uma doçura de mãe e as penas que sofreu viriam a transformar-se em felicidade quando entra no Jornal “Notícias de Macau”, onde é aceite por mérito, após ver castigada a coragem de se divorciar sendo-lhe retirados todos os cargos de docência que até então exercia.
“Casamento de jornalistas”, anuncia o Notícias de Macau a 19 de Maio de 1948, publicação que recebeu a festa desta união, na sua redacção, abrindo uma janela para um final feliz.
No conjunto de fotografias que recordam a sua mãe, António Conceição Júnior é ainda um menino que dá pela cintura dos pais.
Nascido em 1951 fruto da união de Deolinda e um “homem bonito” – porque num tempo marcado pelo domínio masculino, também havia homens livres de preconceitos – passou pouco tempo com a mãe, mas suficiente para dela guardar a natureza.
Dos cerca de seis anos de convivência as memórias não diria que são poucas, mas estão guardadas num recanto de saudade.
“As lembranças que tenho de minha Mãe são escassas, pois há muitos hiatos que surgem naturalmente com o desaparecimento prematuro de uma Mãe, quando se tem seis anos de idade.
Porém, todas as escassas memórias que tenho, são de uma infinita doçura”, revela-nos quando convidado a recordá-la.
Embora seja difícil falar sobre um tempo distante as palavras “Mãe construtiva, encorajadora” jorram-lhe naturalmente.
“São memórias que, sempre que as recordo, têm este sabor doce, de uma doçura temperada por uma inteligência capaz de entender um filho pequeno”, a quem soube estimular a sensibilidade “anunciando a liberdade que queria para ele”.
Generosidade em tempo de guerra
O universo desta mulher, descrita com a riqueza humana, foi-se construindo à volta do filho e da sociedade através das lembranças das pessoas que com ela conviveram e testemunharam o seu caminho.
Foram muitas aliás as que ainda quiseram prestar homenagem a esta mulher pioneira, através de textos, durante alguns eventos públicos.
Com “lágrimas dançando nos olhos” muitos falaram ao pequeno António de uma história de vida “que exemplifica bem que [sua mãe] era uma mulher de vontade férrea, mas igualmente Senhora em toda a sua extensão da palavra, que sempre assumiu sem grandes alardes todas as consequências de ser Mulher emancipada numa Macau demasiado pequena e paroquial”.
Num texto escrito por José (Adé) Dos Santos Ferreira, e o qual foi inserido na Fotobiografia de Deolinda da Conceição comemorativa dos 30 anos do seu falecimento – publicada pelo Instituto Cultural -, é sublinhado o seu contributo para o próximo.
“Com a chama do seu amor ainda a flamejar-lhe no coração, a inteligência a resplandecer-lhe no cérebro, a esposa e mãe carinhosa que sofreu porque amou com amor verdadeiro, a mulher instruída que marcou relevo no campo das letras, cedo se apartou de tudo e de todos, deixando angustiados não poucos corações”, escreveu o homem do patuá.
Adé, que conviveu com Deolinda da Conceição, descreve ainda a colega de trabalho como “dedicada aos amigos” e que “sabia também abrir o coração para compreender o infortúnio alheio”.
A viver numa altura em que a guerra deflagrou e se alastrou a Macau, Deolinda teve de enfrentar com dois filhos nos braços a vida num campo de refugiados em Hong Kong durante a invasão japonesa.
É debaixo do fogo, fome e corpos prontos a subir a outra dimensão que prova a sua força.
“Outra faceta desta personagem é ser uma pessoa trabalhadora e activa.
Sai do espaço doméstico ao qual está circunscrito e é professora, directora de uma Escola Portuguesa de refugiados de Hong Kong.
Fez parte da missão de protecção dos refugiados”, referiu ao JTM Helena Vale, conhecedora da obra de Deolinda da Conceição e que teve acesso à descrição desta mulher através das pessoas que com ela conviveram.
Naquele período Deolinda, antes dos seus 35 anos, “testemunhou muitos dramas pessoais”.
“Era muito atenta ao outro”, descreveu Helena Vale notando o seu percurso.
“Uma rapariga que sai de um meio pequeno e vai para Xangai contactou com muitas pessoas nessas áreas cosmopolitas, gente de muitas paragens o que a ajuda a ser o que ela é: aberta ao mundo”.
A vertente humana que a caracteriza acaba por transparecer, invariavelmente, para os inúmeros contos que escreveu e os quais foram publicados no “Notícias de Macau”, que funcionou nas instalações onde actualmente está a redacção do Jornal Tribuna de Macau.
Notícias de Macau, Portugal e a felicidade
É depois da crueza da sociedade lhe tirar tudo que Deolinda da Conceição acaba por conhecer uma nova fase da sua vida.
A perda de todos os cargos de docência não vergaram esta mulher aos padrões de uma sociedade fechada num eco surdo de si.
Continuou activa e o seu mérito acabaria por lhe garantir mais um acto pioneiro: tornar-se a primeira jornalista de Macau.
“Seguramente um dos aspectos que mais orgulho tenho, ainda antes de ter nascido, é o de minha Mãe ter assumido frontalmente o seu divórcio numa sociedade obscurantista, onde tal era um acto impensável”, realça António Conceição Júnior.
Mostrou que havia outro caminho e provou-o ficando desempregada e enfrentando os olhos de uma sociedade pacóvia, hipócrita e ignorante”, acrescenta.
Numa das fotografias disponibilizadas ao JTM pelo filho, Deolinda e o marido, António da Conceição, surgem a trabalhar frente a frente em 1947.
Teve nas suas mãos a direcção de um suplemento feminino e foi impondo a sua escrita através de pequenas histórias, escrevendo também as páginas da sua felicidade ao lado de um antigo colega de liceu, mas nunca conformada ou indiferente ao crescimento da sociedade.
“É convidada devido ao seu mérito profissional, mas também porque havia homens bonitos como o director do jornal que a convidara para fazer parte da equipa.
Trabalhava como secretária de redacção e depois deram-lhe o suplemento Feminino”, referiu Helena Vale.
Nesta altura “desdobra-se”: fazia crónicas de moda, de social e “era bastante contundente a expressar o seu pensamento”.
Era uma “mulher que ousava”.
Tomando conhecimento do seu talento “o jornal começou a publicar os seus contos e dar liberdade à sua criatividade”.
Quando “entra para o jornal há um reencontro com um antigo colega de liceu.
Acabou por se casar com ele no jornal”, tendo a participação dos colegas de redacção e directores da publicação que apadrinharam a união.
Num discurso que proferiu aquando de uma homenagem a Deolinda da Conceição, Patrício Guterres disse que ela em vida “acalentou dois grandes sonhos, que conseguiu ver concretizados antes de nos deixar para sempre: visitar Portugal e publicar um livro”.
“Em 1956 há a oportunidade de conhecer Portugal e como macaense nunca negou a sua matriz portuguesa”, afirma Helena Vale.
“Selecciona 27 contos e publica ‘A Cabaia’”.
Embora sem grandes conhecimentos naquele país “essa desconhecida vê prontamente aceite o seu livro de contos”, editado pela Livraria Francisco Franco.
Deolinda da Conceição, que se deslocou a Portugal na companhia do marido e do filho mais novo, dava mais um passo de determinação no seu percurso ao ver publicado o seu único livro.
Quando regressou de Portugal em 1957 foi internada no St. Paul’s Hospital de onde não sairia com vida.
Deixou uma obra e um exemplo de convicção.
“A Cabaia” e a libertação da mulher
Os seus contos “centram-se na mulher” e direcionam-se em “dois sentidos: no papel da mulher no fantástico chinês, com o peso da superstição e o realismo com a guerra, a loucura”, refere Helena Vale.
“São textos de uma riqueza humana que não precisa de se socorrer de malabarismos estéticos para a retratar.
É acima de tudo um livro ético”, expressa.
Folheando a mais recente edição do livro, datada de 2007 e publicada pelo Instituto Internacional, depressa se encontra esse toque sensível para o mundo dos outros.
Durante uma conversa com o JTM sobre a obra desta escritora considerada pioneira no estudo da condição da mulher, Helena Vale ilustra as características que lhe são atribuídas com alguns contos.
“A Esmola” é um dos que ainda faz piscar os olhos de tristeza e interrogação.
“(…) em altos brados, a mulher repetia em choro convulsivo: – ele deu-me uma esmola, ele deu-me uma esmola, em troca da vida que lhe dei!”, lê-se no final da história que tem como personagens uma mãe chinesa e o seu filho que resultou da união com um homem da cultura portuguesa.
“Retrata um rapaz que está no cais para partir para estudar fora e tem um complexo de ser diferente, mas questiona-se.
Há um casamento entre duas culturas e ele tem vergonha da mãe e quer fugir, mas no meio do cais, onde está a sociedade toda a despedir-se, a mãe grita-lhe [para lhe dizer adeus] e quando chega perto ele dá-lhe uma esmola para pensarem que ela era uma pedinte e não sua mãe”, relata Helena Vale.
Nas páginas que deixou escritas Deolinda da Conceição vai ao íntimo da sua comunidade tocando nos vários polos.
Além do drama que envolve a existência das pessoas, os contos evidenciam ainda os “dramas das mulheres chinesas que tinham uma capacidade surpreendente de suportar o sofrimento” e também da sua “capacidade de se libertarem”.
Aliás elas libertam-se nas suas linhas, como n’O Romance de Sam Lei.
Rapariga saída da terra dos pais conheceu um velho letrado que lhe pediu o coração ignorando que ele continuasse casado com outra mulher.
“Sam Lei sabia agora responder-lhe com desembaraço e acertadamente.
Os dois anos de vida na cidade tinham-lhe aberto os olhos, e não tardou a que a sua inteligência aprendesse aquilo que lhe tinha sido vedado quando vivia feliz e despreocupada em casa dos seus pais”, relata a autora.
Já numa crítica publicada no “Notícias de Macau”, pelo ensaísta e crítico literário João Gaspar Simões eram evidenciadas a simplicidade de estilo e a grandeza das histórias.
“Não há dúvida, porém, que os contos de Deolinda da Conceição, na simplicidade do seu estilo e na singeleza dos seus recursos narrativos – muitos deles são breves narrativas, sem diálogo nem acessórios de observação ou paisagem -, são qualquer coisa de invulgar no panorama da nossa literatura de ficção”, lê-se no texto disponibilizado online num site que a família lhe dedica.
“Humanos, comovidos, entre poéticos e lendários, se em muitos deles somos postos em contacto com uma China trucidada pela guerra e com um povo calcado aos pés do invasor, em não poucos também se nos entremostra a pureza misteriosa de uma maneira de ser que dá às mulheres a palma de sacrifício e aos homens essa enigmática presença (…)”.
Para o historiador Fernando Sales Lopes, a obra de Deolinda da Conceição “destruiu a barreira entre ‘nós e os outros’”.
“Havia uma terra com várias etnias mas todas faziam parte da mesma terra”, disse ao JTM ao notar que Deolinda foi “um exemplo”.
“Não foi um exemplo seguido em termos literários [porque houve poucas a escrever], mas foi-o para as mulheres de Macau que viram nela um símbolo de libertação”, acrescentou.
Torna-se consensual a coragem desta mulher, mas naquela época a valentia também lhe valeu inimizades.
“Não poderei contar este ou aquele episódio por testemunho directo porque não teria condições para isso, mas sei que por diversas vezes foi pressionada por pessoas ditas poderosas para escrever laudas a algo ou tratar de assunto mundano.
Invariavelmente o ‘não’ era delicado mas firme”, referiu por sua vez o filho António Conceição Júnior.
“A sua acção, que acabou por ser também parte de uma missão transformadora, era um veio da natureza.
“Era uma mulher coragem, com carácter forte que desde cedo o revelou.
Mesmo quando se fala que foi pioneira por ter trabalhado num meio reservado aos homens ela não colocava a questão do género.
Era mulher e tinha a consciência que a mulher ainda não tinha direito ao que deveria ter”, afirmou Helena Vale, realçando que em causa estava, acima de tudo, a condição humana.
Uma tese em que Deolinda se impôs
Concluída, com distinção, a tese de doutoramento de Inácia Morais – “Feminino na Literatura Macaense” – integra o estudo do papel e da obra de Deolinda da Conceição, mulher que se foi impondo na escrita da professora do Instituto Politécnico de Macau, também pioneira num estudo desta natureza.
Depois de ter como fonte principal os jornais em que Deolinda publicou os seus textos, Inácia Morais não tem dúvidas que “ela reinventou a linguagem no feminino”.
“Estabeleceu um discurso cujo estatuto já não era definido pela falácia do significado feminino”, explicou.
A professora de Literatura, que tem levado Deolinda até aos seus alunos, diz ter acesso a um universo enigmático através daquele escritora.
“Deolinda faz-me entrar neste pensamento: a linguagem das mulheres, com que nós funcionamos umas com as outras torna-se extremamente enigmática para os homens: o que eles chamam o enigma do feminino”, explicita ao salientar que para falar sobre estes temas é necessário ter conhecimento de causa.
“Os contos dela são obras de arqueologia.
Ela vai desenterrar o íntimo, as tradições, os rituais e os sentimentos da vida privada das mulheres, que antes estavam no secretismo oral – passavam-se entre mulheres, mas não entre as comunidades”, referiu.
“A nível literário as palavras dela tornam-se como um roteiro das mulheres de Macau (…)”, refere.
O caminho das suas letras é também parte da sua semelhança.
“Este percurso percorrido pelo olhar feminino é como ela: atento, sensual, feito de olhares, aromas, sabores, como a terra e como o rio, em que vários sentidos de Macau vão percorrendo o seu texto”, refere Inácia Morais sobre a literatura de Deolinda da Conceição, mulher que se foi impondo na tese e apaixonando a professora pela sua coragem numa sociedade marcada pelo machismo.
“Foi-se impondo na minha escrita e senti que quando estava a escrever ela estava a tomar conta da minha escrita”, disse ao notar que durante o trabalho que desenvolveu teve ainda a sensação que estava predestinada a escrever sobre esta pioneira.
Ao ser uma “mulher com uma definição de liberdade diferente para a sua época” teve a coragem de passar “lendas da tradição oral” para o escrito constituindo um importantíssimo recurso para “darmos conta de uma época que de outra maneira perderíamos” pelo menos através de uma voz que tocou numa sensibilidade que a sociedade oprimia.
E mesmo 100 anos depois do seu nascimento, que se comemoram no próximo domingo, Deolinda da Conceição continua a desafiar-nos.
“Deixou-nos a tarefa, como leitores, de descobriu através dos textos a sua vida, inexoravelmente silenciosa até que alguém lhe descubra o sentido”.
Fátima Almeida
Jornal Tribuna de Macau, 5 de Jukho de 2013.