nelson évora e a xenofobia

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POSTAL DO DIA
Eu não esqueço o que Nelson Évora já tinha feito a Pichardo
1.
Nélson Évora já tinha feito o que fez.
Já insultara Pedro Paulo Pichardo uma, duas e três vezes.
Podia ter refletido sobre a qualidade das suas vísceras.
Podia ter recebido conselhos de pessoas que lhe quisessem bem, gente que certamente lhe terá dito que só perderia com aquelas críticas tão desajustadas.
Perderia credibilidade.
Perderia apoios.
Perderia sobretudo o seu lugar na história – que assim fica amputado porque existirá sempre esta sombra de despeito e aparente inveja, uma pena quando se desbarata assim um capital de credibilidade.
2.
O ego tem destas coisas.
Turva o discernimento.
Quem está grávido de si próprio carrega o ridículo e a grandeza – uma fronteira que é demasiadamente estreita.
O ego de Nélson Évora traiu-o.
E expôs-se ao ridículo.
A diferença é que desta vez Pichardo não aguentou e respondeu, o que não acontecera até aqui.
3.
Talvez o atual campeão olímpico, mundial e europeu tenha acreditado que a sua naturalização fosse o último argumento que Nelson Évora pudesse apresentar.
Talvez tenha acreditado que o seu rival fosse a última pessoa que imaginaria poder tratá-lo como estrangeiro na terra que decidira ser a sua terra.
É que Nelson Évora era um atleta amado em Portugal, mas nascido num outro país.
E ainda por cima partilhavam a mesma especialidade do atletismo, mais do que qualquer outro poderia e deveria existir um dever ético e de solidariedade.
Mas não.
Évora trata mal Pichardo há seis anos.
Entre 2017 e 2023 somaram-se as vezes em que atacou o rival que foi pulverizando todos os seus recordes e títulos.
Em várias competições foi arregimentando apoios entre outros atletas e tentando aparentemente isolar Pichardo.
E nos últimos Jogos Olímpicos foi uma vergonha.
Recordam-se?
Depois de se ter qualificado para a final num apuramento deveras dramático, Évora declarou que um dia talvez Pichardo pudesse aprender com a vida.
Declarações feitas antes de uma final que poderia dar uma medalha de ouro a Portugal – o que felizmente viria a acontecer.
E na final eu não me esqueço que Nelson Évora fez claque pelo adversário do seu próprio colega de seleção.
O país viu, mas fizemos todos por esquecer.
As recentes declarações de Nelson Évora reavivaram-nos a memória.
4.
Ninguém lhe pode tirar os títulos ou apagar a sua bonita história.
A sua capacidade de superação, o seu estoicismo, a notável vitória olímpica.
Mas é demasiado mau para ser verdade o que tornou a dizer sobre o seu companheiro de profissão.
Demasiadamente mau pelo que revela de arrogância e de xenofobia.
Para já não falar do pior de tudo, do enorme perigo destas declarações revelarem e potenciarem discursos perigosamente populistas.
Uma raiva, talvez um ódio, que não se explica facilmente.
Uma pena, uma tristeza.
LO
(da página do Facebook de Luís Osório).
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RACISMO PORTUGUÊS

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De vez em quando arrisco.
Depois saio doente.
Entrei na caixa de comentários das notícias sobre o incêndio da Mouraria.
Num deles, um grunho diz que se não têm condições para viver aqui vão para a terra deles. Outra pergunta se já devolveram a roupa ao hospital.
Fui até França.
Fins de 60, inícios de 70.
Os bidonville cheios de portugueses. Os meus pais, depois de muita procura, numa casinha com uma cozinha, um quarto e uma retrete no quintal.
Uma escada comum. Dum lado os meus pais, do outro, no rés de chão a senhoria italiana, fugida da guerra, no primeiro andar, em cima da Madame Molinari, só com um quarto e uso da retrete do quintal, um outro imigrante português.
Como não tinha cozinha, grande parte dos dias era a minha mãe que lhe fazia comida.
Quando arranjar uma casa a sério trago a minha mulher, dizia. Um dia disse aos meus pais que tinha arranjado “casa “com o cunhado. Ia viver com mais gente mas tinha cozinha e não precisava de estar sempre a incomodar.
Foi.
Enquanto lá esteve, quando eu lá ia passar as férias, viviam cinco pessoas na casa pequenina. A minha mãe pôs uma cortina no quarto para pôr um divã para mim. Eu já era quase adolescente.
No divã, antes de adormecer, eu esticava um bocadinho o braço e tocava do braço do meu pai…
Duas ou três vezes fui com eles ver o meu tio, ao bidonville onde vivia.
Por defesa, acho, não o consigo descrever.
Só me lembro que, na porta ao lado, havia dois meninos, mais novos que eu a brincar. Em português.
Talvez seja esta a nossa maior derrota.
Não ter conseguido transmitir as memórias das nossas vidas.
Talvez, sei lá, se tivéssemos conseguido transmitir os portugueses a ir às “pubelas” buscar os casacos que os franceses deitavam fora e que lhes serviriam para tentar aquecer no Inverno a seguir, hoje não houvesse comentários desprezíveis de racismo, de xenofobia mas, sobretudo, de desumanidade, sobre homens e mulheres embrulhados em lençóis de hospital para aguentar o frio.
Não sei.
Não sei como podemos vencer isto.
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