História desconhecida de Portugal: os escravos açorianos no Brasil
É um dos episódios mais negros da história de Portugal. Fugindo da miséria, atraídos por falsas promessas, muitos açorianos acabaram escravizados no Brasil.
“Todos nós sabemos que está saindo uma imensidade de cidadãos portugueses para o Brasil; que vão ali ser vendidos, e ser escravos dos brasileiros, substituindo o lugar dos negros; e então ao passo que todas as nações da Europa estão empenhadas em evitar o tráfico da escravatura negra, parece-me que mais direito temos de tratar de evitar o tráfico da escravatura branca; da escravatura de cidadãos portugueses”. Em discurso às Cortes portuguesas, em 1840, o deputado Sá Nogueira expressava a preocupação pública com um pernicioso fenómeno que atingia particularmente as ilhas açorianas: a emigração ilegal de milhares de colonos com destino ao Império do Brasil.
Açores
Desde pelo menos o século XVII, o arquipélago dos Açores – composto por nove ilhas situadas no oceano Atlântico norte – fornecia colonos para o povoamento de algumas regiões do território brasileiro, como Santa Catarina e o Rio Grande do Sul. Se esta emigração inicial era dirigida e organizada pela Coroa, ao longo do século XIX, especialmente após a independência do Brasil, tornou-se uma emigração livre e espontânea, ou seja, os açorianos partiam em busca de melhores condições de vida.
Açores
Nos Açores, a miséria dos camponeses e dos pescadores era avultada, empurrando milhares de indivíduos para outras paragens. As dificuldades tornavam-se ainda mais agudas com as graves catástrofes naturais que atingiam as ilhas, como terremotos e temporais, seguidas de crises de subsistência. Além disso, muitos jovens compartilhavam de uma visceral aversão ao cumprimento do serviço militar.
Açores
Ao fugir ilegalmente – sem passaporte e à mercê de intermediários, os “engajadores” – os açorianos acabavam por deparar-se com novas formas de miséria, de dependência e de exploração. As viagens, nos veleiros, eram muito longas e penosas, sobretudo para os passageiros clandestinos. Estes amontoavam-se ao relento, fustigados pelas intempéries ou pelo sol escaldante, ou aglomeravam-se em pequenos espaços imundos nos porões, sem arejamento ou condições de higiene. Durante dois meses ou mais, sofriam a falta de alimentos e de água potável – o que, tudo somado, motivava doenças graves, por vezes fatais.
Ilha Terceira, Açores
Iam presos a um contrato que, sendo lucrativo para os intermediários, representava uma autêntica armadilha para os emigrantes. Os fazendeiros pagavam o preço da viagem adiantado, e este era convertido numa dívida (muitas vezes inflacionada) a ser descontada do futuro ordenado dos colonos. Na prática, eles se tornavam propriedade dos fazendeiros e, em sua maioria, nunca mais regressavam à terra natal, sujeitando-se a desumanas condições de vida e de trabalho – chegando a não ter outra remuneração além da comida. Salvo raras excepções, eram analfabetos e, por isso, enganados mais facilmente: não sabiam contar, não conheciam a moeda e acabavam por ficar vinculados ao patrão durante longos anos, ou mesmo por toda a vida.
Açores
Quando se tratava de grupos numerosos, com cem ou mais passageiros ilegais, as partidas efectuavam-se na calada da noite, propícia também à prática do contrabando. Se os grupos eram pequenos, embarcavam de madrugada. A geografia insular facilitava: escolhiam-se baías, enseadas, rochedos isolados, de acesso difícil e sem qualquer tipo de iluminação, para partir em pequenas embarcações pesqueiras cujos mestres lucravam com isto. Os navios, com capitães que acobertavam o tráfico, velejavam perto das ilhas, recebendo os emigrantes em alto mar. Autoridades e a imprensa denunciavam o uso de enormes fogueiras nas montanhas para sinalizar à tripulação dos veleiros a partida de mais uma embarcação carregada de emigrantes clandestinos. Houve ainda notícias sobre jovens que iam a bordo de navios legais despedir-se de familiares e que acabavam por se esconder, partindo sem documentos ou bagagem.
Açores – Javier Garcia
Não é possível contabilizar o número de pessoas que se arriscavam na emigração ilegal, mas apenas entre 1855 e 1859 o cônsul português no Rio de Janeiro detectou a entrada de 1.203 passageiros clandestinos contra 452 legais, todos oriundos dos Açores. A cidade era a porta de entrada da maioria dos açorianos. Alguns ficavam na cidade ou nos arredores, muitos outros iam para fazendas no interior. Em menor número, seguiam para São Paulo e Santos, e ainda menos para Bahia e Pernambuco. A proibição do tráfico negreiro, em 1850, aumentara a necessidade de mão de obra no Brasil. Era imperativo angariar imigrantes que garantissem a exploração da terra e o incremento económico do país. Ainda que nem todas as autoridades tivessem má intenção, na realidade deixavam ocorrer inúmeras ilegalidades, chegando a ponto de permitir que os recém-chegados não fossem obrigados a comparecer nos respectivos consulados.
Foto: Rick Wilhelmsen
O fenómeno da emigração ilegal, associado ao grave esvaziamento demográfico do território português, tornou-se tema central de debates parlamentares e de editoriais e artigos da imprensa, acentuando um discurso dramático que enfatizava as “desgraças” a que se sujeitavam os emigrantes, mas que tendia a ignorar as verdadeiras razões daqueles que procuravam partir. “Os moços robustos e válidos empregam-se no serviço de carroças e vacarias, e nestas a maior parte deles são açorianos. Vivem quase sempre na imundice, dormem em cortiços, sem ar nem luz, e aí as doenças, as epidemias e as mortes”, relatava uma carta recebida do Rio de Janeiro, publicada, em 1876, no periódico açoriano O Picoense.
Açores
A expressão “escravatura branca” surgiu provavelmente na década de 1830 – ao que parece usada, pela primeira vez, pelo secretário de Estado José Maria Campelo – visando designar o tráfico de emigrantes, em especial do norte de Portugal e das ilhas da Madeira e dos Açores. A emigração clandestina era alvo de críticas e gerava indignação, mas havia poucos meios para combatê-la. Nem as autoridades portuguesas atuavam com eficácia para reprimi-la, nem as autoridades brasileiras se empenhavam em combater os abusos dos senhores sobre a mão de obra imigrante, que vinha substituir os escravos devido às restrições impostas ao tráfico negreiro.
Lagoa das Sete Cidades – Açores
Apesar do alarmismo exacerbado de certa imprensa local, a preocupação de muitos jornalistas açorianos era a de denunciar os navios que se envolviam no “tráfico de gente branca” – como o célebre patacho Arrogante, que em 1854 suscitou intensos debates parlamentares – e os horrores sofridos pelos emigrantes clandestinos, de modo a desmotivar os que ficavam nas ilhas destas perigosas aventuras. A imagem do brasileiro de “torna-viagem”, ou seja, do retornado emigrante enriquecido, era tida como prejudicial, pois estimularia novas fugas. Estes, na realidade, eram uma minoria que não espelhava a sorte dos açorianos no Brasil.
Açores
Por tudo isso, e não obstante as dificuldades reconhecidas pela imprensa, fazia-se necessária uma imediata actuação por parte das autoridades de forma a combater ou a mitigar os flagelos decorrentes da emigração clandestina. Sugeria-se a promulgação de leis, a fiscalização das embarcações, o controle sobre a hierarquia das autoridades, acções de sensibilização e de propaganda, conforme já faziam alguns jornais. O combate à emigração clandestina e à “escravatura branca” tornava-se um verdadeiro desígnio nacional português.
Angra do Heroísmo
Apesar dos sucessivos governos promulgarem abundante legislação nas décadas de 1840, 1850 e 1860, visando controlar e reprimir o fenómeno, muitas das medidas não foram eficazes. As pessoas continuaram a contornar as leis, partindo sem se apresentarem às autoridades para requerer passaporte, o que no meio insular não era difícil. O desejo de uma vida mais próspera as impedia de se acautelarem contra as falsas promessas dos engajadores, que se beneficiavam da negligência das autoridades. A falta de meios para uma fiscalização eficaz e a longa distância entre Portugal, os Açores e o Brasil agravavam ainda mais os já complexos factores que levavam à emigração clandestina.
Parque Terra Nostra
Ainda no final do século XIX, a emigração clandestina e as práticas fraudulentas a ela associada continuavam a preocupar as autoridades portuguesas, ainda que a expressão “escravatura branca” fosse menos utilizada. Embora muitos governantes e deputados defendessem que a emigração portuguesa devia ser canalizada para as colónias de África, os açorianos continuavam a rumar para outras paragens, como o Brasil, o Havaí e os Estados Unidos.
Susana Serpa Silva é professora da Universidade dos Açores e coordenadora do livro Um Passaporte para a Terra Prometida (Cepese / Fronteira do Caos Editores, 2011).
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