NAYOLA
Um Tempo de Guerra(s), Um Filme Com Arte
Ao ver “Nayola” há uns dias, filme recentemente estreado, fruto do engenho e da arte do cineasta português, José Miguel Ribeiro, não pude deixar de me lembrar de outro filme, também de animação e com a mesma temática, Angola em guerra. Há cinco anos estriava-se em Portugal um filme, misto de realismo e animação, intitulado “Mais um Dia de Vida – Angola 1975”, numa adaptação ao cinema do livro homónimo do polaco Ryszard Kapuscinski por Raúl de la Fuente. Vi este filme na noite de 10 para 11 de Novembro de 2018, data comemorativa da independência de Angola e data do enredo do filme. Coincidência apenas? Talvez não! É espantoso como estes dois filmes de animação sobre Angola, os mais referenciados e aplaudidos pela crítica, se construam a partir da destruição, se edifiquem artisticamente sobre a ruína das casas, se projectem plasticamente e oniricamente a partir do sofrimento dos homens que durante gerações viveram no palco da vida o mesmo drama colectivo.
“Nayola”, longa-metragem de animação portuguesa, do cineasta José Miguel Ribeiro, é baseado na peça de teatro, Caixa Negra, escrita a duas mãos pelo angolano, José Eduardo Agualusa, e pelo moçambicano, Mia Couto, com o objectivo de ser levada à cena em 2010. Os seus autores começaram por encerrar a história numa casa, José Ribeiro alargou o contexto, ampliando o espaço e a narrativa sobre as personagens. Trata-se de uma história de guerra e sofrimento, localizada em Angola e que tem como personagens centrais três mulheres de gerações diferentes da mesma família. No filme, o realizador harmoniza o cenário bélico e sofrido com a beleza que lhe é emprestada pela dimensão pictórica, de personagens que nos conquistam, a nós espectadores, pela sua aparência física e pela extensão metafísica que mergulha na filosofia animista bantu. E a animação ganha fôlego aqui, já que a espiritualidade que dela dimana é, por natureza, um campo aberto de liberdade e de espontaneidade, que não se limita às fronteiras do que é real. É um filme de animação notável, construído sobre a história de um mascarado (um chacal) que entra numa casa dum musseque luandense onde vivem duas mulheres, a avó e sua neta. De fora chegam-lhes (e a nós espectadores) tiros e vozes de militares ou polícias numa rusga. O “chacal” é um ente estranho, misto de pessoa e animal, que pouco fala e é um tanto ameaçador. Esta passagem do filme corresponde ao presente, um tempo ensanguentado por uma guerra fratricida que apesar de terminada se prolonga na autoridade excessiva do poder e nas marcas que deixou nas personagens. Nestas e em todos os angolanos. É uma guerra também contada do ponto de vista feminino: da avó, Lelena, que viveu a guerra colonial e, ficando no seu musseque de Luanda, sentiu a partida e a ausência do genro e da filha, perdidos na guerra civil; da filha Nayola (que dá o título ao filme), que se internou na guerra à procura do marido, não se conformando com a situação oficial de “desaparecido”; da neta, Iara, que vive num tempo mais próximo de nós, já fora da guerra civil, mas marcado de outra guerra, sem nome e quase sem rosto, mas que é, também, violento, de poder autoritário e corrupto. É a activista dos direitos humanos que não tem a vida facilitada por quem, no poder, a vê como inimiga.
Carregado de simbolismo, há um momento no filme, em que Nayola entra num edifício em ruínas e, acometida de um acesso de fúria que a desilusão amplia, pega numa barra de ferro perdida no chão, dirige-se para uns azulejos de evidente manufatura portuguesa, paradigma da visão colonial europeia, que vai destruindo até subsistir apenas a figura de uma mulher com o seu filho enlaçado, a de uma mulher angolana que representa a esperança no futuro. Mas esse futuro é mais uma vez adiado, quando vemos sua filha, Iara, pela força das circunstâncias, transformar-se numa jovem rapper que grava discos com músicas provocadoras, cujas letras “incendiárias” denunciam os cleptocratas e o vazio de justiça, levando-a a ser identificada e perseguida pelo regime de então.
As mulheres preenchem com o seu sofrimento, mas também com a sua resistência e coragem, este filme, que sendo sobre a guerra, é-o também sobre a esperança. E o momento dos azulejos é, também, a forma subtil de o realizador mostrar o quanto a representação se reinventa através do olhar e das circunstâncias… o olhar marcado por um “modo de ver”, que no seu caso, o do realizador, ao contrário de outros que fizeram filmes sobre África, não nos parece ser um olhar distante e redutor, afastando-se assim de estereótipos. O próprio realizador sublinha em entrevistas esta determinação, procurando ir a Angola para a conhecer de perto (2013), quando a empresa de produção, Praça Filmes, sediada em Montemor-o-Novo, recebe o primeiro financiamento do ICA para o desenvolvimento do projeto. Acompanhado de um argumentista e de uma produtora, Ribeiro vai até Angola, onde permanece por duas semanas. Mas não se fica por Luanda e depressa alcança o Sul, pronto a pisar o chão quente e as secas terras do Namibe onde a misteriosa weliwítschia pontua, fotografando-as, visitando ongandas e povoações, falando com os habitantes, num mergulho na realidade que, até ali, lhe era completamente estranha. Procura uma imagética e um conhecimento de povos sobre os quais só tinha ignorância, e enriquece-se de detalhes, de aromas e cores, da forma como as pessoas se movem, do ritmo, da diversidade visual das gentes angolanas. E todo este procedimento, este processo, desemboca em “Nayola” e transmite-lhe autenticidade. Esta é a primeira longa-metragem portuguesa de animação e custou 3 milhões e 200 mil euros, como nos é revelado pelo próprio realizador, que contou como coprodutores, para além dos portugueses, belgas, franceses e holandeses.
No filme foram aplicadas tecnologias que ainda não existiam à época, em Portugal e a coprodução permitiu, no campo da animação 3D, a formação “de animadores portugueses que nunca tinham trabalhado com aquela tecnologia”. Usar o 3D para o presente foi “tirar partido dos micromovimentos, das pequenas expressões […], tudo o que é trabalho do ator para nos dar a emoção”, pois o filme no presente é mais carregado de emoção. Já no passado é evidente a acção e, por isso mesmo, foi feito em 2D, digital, imagem a imagem, sendo aplicadas cores saturadas, fortes, já que “o passado é a guerra, e a guerra é sempre intensa.” Convém sublinhar que as diferentes tipologias de animação ajudam o espectador a viajar nos diferentes tempos da narrativa e da vivência das personagens.
Por tudo isto vale a pena ir ao cinema ver “Nayola”, pelo produto cinematográfico que é, pelo ambiente mágico em que o espectador mergulha, pelo objecto de arte que a todos absorve.