Ilha a ilha, medo a medo, cresce a alma do arquipélago. História, tradição e modernidade cruzam-se de forma intensa nas nove terras do Atlântico que este domingo serão o centro das atenções do país político. Os Açores vão a votos
Em tempo de Literatura (Ficção e História), esta semana na minha página “Leituras do Atlântico” este belo livro de Nuno Costa Santos. Leitura simplesmente imperdível!
Como Um Marinheiro Eu Partirei
Uma viagem com Jacques Brel
Lê-se com sabor a um gin do Peter Café Sport “entre bandeiras e mensagens de todo o mundo”. Nuno Costa Santos, que conheço de outros livros e de outras, muitas outras, tarefas literárias, por esses Açores abaixo e por esse país fora, aqui surge-me como autor de um dos mais belos livros que li nos últimos tempos. Romance a duas vozes, num encadeamento fascinante de tempo e de personagens, este “Como um marinheiro eu partirei” é muito mais que “uma viagem com Jacques Brel”. É um monumento de memórias que firmam o universalismo de um artista e nos fazem mergulhar em mistérios de vida nos seus múltiplos palcos de encontros e desencontros, ilusões e frustrações, fugas e chegadas, mas sempre com uma cortina de açorianidade que Nuno Costa Santos derrama no leitor e que nos penetra como quem ouve a música ou lê os poemas de Brel.
Recordo-me de, neste “Atlântico Expresso”, há duas décadas ou mais, termos tido durante muito tempo uma rubrica semanal intitulada, “Espelho a Dois”… O mesmo tema visto por duas pessoas distintas. E foi deste “Espelho a Dois” que me lembrei muitas vezes, em diversas passagens deste belo livro, apenas centena e meia de páginas, com chancela Penguim Random House(Grupo Editorial).
Porque em todo este livro há Brel na biografia e na ficção, há Horta real, mística e mítica, de iates, luzes e sombras, angras e varadouros, nomes ressuscitados, diálogos inesperados e almas desnudadas. A de Brel e a de Nuno Costa Santos.
Cada capítulo é um quadro que nos transporta às mais recônditas angústias e questões. Recordo aqui aquele “Diálogo com o Vulcão”, ou o “Brevíssimo interlúdio sobre o medo”: Maravilhoso quando escreve: “um insone é uma ilha que não desliga as luzes à noite. Que tem sempre um farol aceso, um farol que não se apaga, por mais que o faroleiro mereça descanso. O farol faz incidir a luz sobre o medo. O medo de ser um marinheiro que não aceita a dor de ter partido”… E como cabe bem aqui a frase-chave, emblemática e mítica deste romance: “Um homem fuma um cigarro à proa de um iate, concentrado no som do mar e ocorre-lhe uma imagem como um salto de cachalote”.
Formidável a forma como nos explica os meandros deste livro. Sérgio Paixão, (a quem dedica esta soberba obra literária)… e o desvendar de tantos pormenores sobre Brel… E sobre a Horta para onde viajou, durante a investigação… “Conheci o Sérgio. O seu modo simples, directo, fraterno de ser, O seu olhar luzente sempre à beira da comoção”…
E depois, depois quedei-me na forma cheia de ternura como nos conta a História do Peter Café Sport, o mágico “território de amparo e camaradagem entre nacionalidades”… e de como de Azevedo ele passou a Peter, por arte e graça de um oficial inglês do RMS Lusitânia II, da Royal Navy”
A mim, como leitor, Nuno Costa Santos marca-me na surpresa e na grandeza das comparações e extrapolações, mesmo nas mais contrastantes situações (pag 45): “Olha para cima, e perante a beleza do céu, chega-lhe a memória de Deus.
O Deus que foi matando ao longo dos anos à medida que foi crescendo a sua revolta contra o “idealismo beato” da sua juventude.
O Deus da caridade que liquidou em debates nocturnos, depois dos espectáculos com o patrocínio de Jojo.
O Deus que o deixou no bueiro durante as suas sucessivas audições falhadas feitas no inverno de 1953-1954”.
Sem querer revelar nada do conteúdo deste livro – esta tarefa pertence e é dom sagrado do leitor – atrevo-me a dizer que aquele capítulo “O concerto” – (pgs 127-133) com aquele recorte do saudoso “o Telégrafo” ‘Jacques Brell está na Horta’, é das coisas mais comoventes que li nos últimos tempos…
Nuno Costa Santos encarna de forma soberba aqueles momentos reais do concerto em pleno Peter – “está ali um tipo que é capaz de ser um momento histórico para o Peter..”
E Brel – era 1974 – fugido dos palcos, pediu uma viola e cantou…
A forma como esta cena é descrita no romance, só ela já vale a leitura deste “Como um Marinheiro Eu Partirei”.
Nuno Costa Santos não precisa de qualquer apresentação. E muito menos de adjectivação no seu já longo e profícuo trabalho e eu seria a última pessoa capaz de o fazer, por me faltar voz e autoridade. Mas deixo aqui, o breve apontamento biográfico que acompanha esta edição: “É escritor e argumentista. Tem trabalhado em vários géneros. Autor de livros como “Céu Nublado com Boas Abertas” (romance) “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” (biografia), “A Mais Absurda das Religiões” (crónica) e de peças de teatro como “Mundo Distante”, “I Don´t Belong Here” e “Em Mudanças”.
No audiovisual, fez parte da equipa de programas como “ Zapping”, “Os Contemporâneos”, “Mal Amanhados — Os Novos Corsários das Ilhas”, a que aqui fizemos referência em “Leituras do Atlântico”.
A personagem melancómico que criou e protagoniza, teve diversas consagrações — do livro à rádio.
Assina colaborações em diferentes jornais e revistas e integra o painel do programa Novo Normal.
É dos fundadores da produtora Alga Viva, com sede nos Açores, dirige a revista literária Grotta e o Encontro Arquipélago de Escritores e também dirigiu a revista transeatlântico, da Companhia das Ilhas, da Ilha do Pico.
Em vários títulos e espaços culturais, este “Como um Marinheiro Eu partirei” tem recebido as mais entusiásticas críticas, mas tenho a certeza que o juízo que cada leitor dele possa fazer será a melhor referência e a mais desejada para o seu autor.
Creio que aquilo que Telmo Nunes, outro dos nossos escritores de mérito, escreveu no “Diário dos Açores” do passado dia 8 de Junho, sintetiza bem aquilo que sinto sobre esta obra: “Este é um livro de exceção, que merece ser amplamente lido pelas mais variadas geografias, mas particularmente nos Açores e pelos açorianos, já que é narrado um bom naco da sua história que, possivelmente, será desconhecido da maior parte das pessoas. Ademais, representa uma viagem emocionante que resulta de uma forma de estar e de “viver perigosamente”. É preciso ir ler, “é preciso ir ver”.
Desabafei com Nuno Costa Santos a minha falta de coragem para escrever sobre este livro… E perguntei-lhe: Que diria Jacques Brel se o lesse?
Ganhei coragem para escrever, mas a pergunta continua aqui: “Que diria Brel?”… Sem resposta, mas com este grande abraço para Nuno Costa Santos, grato por mais este belo marco literário!
Santos Narciso
Foto: Luís Monte, na apresentação do livro em Ponta Delgada
Identifico-me inteiramente com a sua leitura, Sr. Santos Narciso, e ainda estou a começar a ler. É uma obra em que, na “sinestesia” entre vozes, também podemos encontrar a nossa. Soberba apresentação de um livro também soberbo! Abraço.
«COMO UM MARINHEIRO EU PARTIREI – UMA VIAGEM COM JACQUES BREL»
Uma viagem aos últimos anos de vida de Brel, à sua passagem pela Horta, à fuga aos holofotes e a tudo o que de mais pernicioso a fama pode transportar: eis o primeiro ancoradouro e talvez o mais evidente dos vários que compõem este livro. Todavia, a riqueza literária não se esgota e vai robustecendo, à medida que se desenham outras escalas, sobretudo aquela que decorre num mapa interior, a viagem ao íntimo, até ao quadrante mais pessoal e mais oculto do narrador e para o qual nenhum azimute o poderá carrear. Neste âmbito e num registo emocionado, somos levados a recordar que escolher é deixar de fora, e que optar, para além de um risco, implica sempre uma perda.
Este é um livro de exceção, que merece ser amplamente lido pelas mais variadas geografias, mas particularmente nos Açores e pelos açorianos, já que é narrado um naco de história que, possivelmente, será desconhecido da maior parte das pessoas. Ademais, representa uma viagem emocionante que resulta de uma forma de estar e de “viver perigosamente”. É preciso ir ler, “é preciso ir ver”.
Nuno Costa Santos, «Como Um Marinheiro Eu Partirei – Uma Viagem Com Jacques Brel», Penguin, 2023
Um homem fuma um cigarro à proa de um iate, concentrado no som do mar.
Nuno Costa Santos,
Como Um Marinheiro Eu Partirei
A citação em forma de epígrafe aqui é a última frase de uma das mais brilhantes novelas publicada entre nós desde há muito, Como Um Marinheiro Eu Partirei: Uma Viagem Com Jackes Brel. Toda a obra literária de Nuno Costa Santos tem uma firme unidade temática, sem qualquer repetição nas suas variadas formas, desde os iniciais sketch de melancómico: ele a caminho de casa numa indistinta rua lisboeta com um saco plástico na mão numa representação de desamparo, a sobrevivência minimalista, ou de um quotidiano com pouco mais a fazer. Na sua ficção, desde Céu Nublado com Boas Abertas à sua poesia de Às Vezes É um Insecto Que faz Disparar o Alarme, ao seu teatro e crónicas de aqui e ali, entre outras representações públicas, tem sempre as artes como refúgio ou recurso, a música como referência preferencial, um escritor de meia-idade no século XXI em busca de um sentido para melhor se perceber a si próprio, e sobretudo as suas circunstâncias num mundo à deriva e filosoficamente num vácuo que lhe faz retroceder à história fluida e perplexa que o colocou nestes dias, seus e nossos. Entretanto, são poucos os escritores no nosso meio cuja obra se torna um jogo de espelhos, tal como a subentendemos em breves passos autobiográficos. Alguns dos livros de Nuno Costa Santos estão cheios de boas cumplicidades familiares, amizades espalhadas por toda a parte, uma atuação criativa que se contrapõe ao habitual ego doentio dos muitos que esperam palmas e pelo menos os seus quinze minutos de fama em qualquer contexto. Basta lembrar aqui que o anual encontro Arquipélago de Escritores, organizado por ele e pela sua companheira Sara Leal, desdobra-se por várias das nossas ilhas e é um generoso gesto de solidariedade e valorização de tantos outros autores.
Sei pouco da música de Jackes Brel, para além da canção Ne me quitte pas, e pouco mais da sua vida e carreira. Os meus anos de América foram particularmente desatentos à Europa, tirando a vida literária portuguesa e europeia em geral que tinha um lugar proeminente nas nossas faculdades. Só que a presente novela de Nuno Costa Santos é uma peça que naturalmente não requer mais saber sobre o grande artista. A sua condição existencial é precisamente o que nos transmite este livro, desta vez com os Açores (para além de Paris e Bruxelas, naturalmente) como geografia significante dos seus últimos anos quando decidiu interromper a sua carreira e fazer-se ao mar num veleiro chamado Ashoy, a caminho das ilhas Marquesas e a outras onde acabaria a viver e a fazer bem até à sua morte aos 49 anos de idade em 1978.
ComoUm Marinheiro Eu Partirei é feito dessa prosa híbrida que marca agora alguma da melhor literatura da contemporaneidade, todas as formas convergindo num só ato ficcional: à biografia junta-se a autobiografia, o narrador fala de si no encontro com o seu sujeito, o quotidiano de certo desespero artístico por entre a banalidade dos dias vazios e da luta pelo reconhecimento, o autor da escrita revê-se nos versos das letras e poemas musicados e tornados património universal. Para um leitor açoriano tudo isto é relevante, para além da estória de uma voz que muitos embalou na alegria e na tristeza generalizada dos tempos, o cantor ora em agonia no amor, ora na denuncia sem rancor da ordem das coisas que nos enrolam por perto ou à distância. Nuno Costa Santos revisita os passos e as gentes com quem Jackes Brel se encontrou na Horta. Cá temos a história do famoso Peter Sport Café à boca da doca como um centro da universalidade de nós todos – quer lá tenhamos tomado o seu gin, quer somente ter lido sobre. Aliás, a história do Peter’s faz parte da narrativa. A viagem de Jackes Brel é também um inteiro regresso a si próprio, tal como o de Nuno Costa Santos ao deixar Lisboa após ter vivido lá boa parte da sua vida, e eventualmente optar pelo seu regresso aos Açores, à bruma da sua tranquilidade, ao sol da sua infância, o amor fazendo-lhe trocar o Livramento em São Miguel pela Terceira, onde continua à beira da baía de Angra do Heroísmo. Brel sente as saudades dos seus mais próximos em Bruxelas e em Paris, e Nuno Costa Santos sente as saudades dos seus três filhos que ficaram na nossa capital, chamando-os com frequência ao conforto reencontrado na ilha e no amor. Ninguém esquece ninguém – mas partir, como diria o outro, é preciso, para nunca se deixar de chegar a nós próprios. O autor faz-nos acompanhar todos os passos de Jackes Brel durante os seus anos de luta e eventual triunfo nos palcos e nos estúdios de gravação, e depois no Faial após a morte do seu grande amigo e colaborador Jojo, onde aparecem também os primeiros sinais de uma vida em estágio final. Nomeia as personagens conhecidas e menos conhecidas que mantêm com o cantor algum contacto e convivência, e de seguida Nuno Costa Santos convoca a sua própria memória de andanças e relacionamentos casuais ou literários na ilha do vulcão dos Capelinhos, parte do seu território arquipelágico de nascença e destino. Jackes Brel e a sua música desperta-lhe uma outra visão da condição como ilhéu em constante viagem geográfica e emocional.
“Os dias – diz o narrador a propósito de si e dos seus filhos, que estão também predestinados às partidas e regressos, à sorte lusa nas ilhas como no continente – estão organizados com amor e método, a melhor forma de calendarizar uma temporada estival curta e que se quer intensa , vivida. Deixar o Verão à sua sorte, no seu talento maior de tornar mais lentas as horas e de estender a preguiça, mas também programar o que se quer fazer e como se quer fazer para dar ao Verão o Inverno de que precisa…
Além dos mergulhos no Calhau, houve passeios de barco a ilhéus e voltas de buggy. Mas o mais importante foi estarem aqui. Senti como que uma desdramatização da situação. Estou cá,, estão ali. Podem vir. Não é longe. Vão crescendo. Quem sabe, poderão passar temporadas aqui. Quem sabe, poderão namorar aqui.
Já conhecem o desenho do lugar onde o pai decidiu viver. É um começo. Um recomeço”. O autor quando já não é jovem, passe o trocadilho joyceano, no seu labirinto emocional, na sua perfeita consciência de que o passado nunca é passado, de que a sua arte não é mais do que um reflexo de uma vida ou vidas que não obedecem ao que pensamos destinar e seguir, apenas reagem às circunstâncias nunca programadas mas decisivas. Na palavra de um escritor ou na voz de um cantor, é só na geografia do coração que vivemos. Jackes Brel chega aos Açores fumando o cigarro da sua morte na proa de um veleiro. Só que está bem vivo entre quem encontra na terra nova a meio atlântico, recorda a garrafa e as mulheres do seu velho continente, faz-nos rir da ironia de nunca se desligar dos que na Bélgica e na França chamava de flamingants, e cuja língua dizia recusar a falar enquanto no seu país, e muito menos cantar: “O meu nome é Jackes Brel, repetiu em flamengo para uma plateia agora marítima. Vive la République/Vive les Belgiens/Merde pour les flamingants”. Reencontra no Faial – a ironia acompanha-nos a todos – alguns representantes dos seus “antepassados”, com destaque para um médico de aguda consciência social e de nome Decq Mota, tão do nosso conhecimento nas ilhas no Triângulo e no resto do arquipélago. Mais os Brum e os Goulart, o próprio nome da cidade da Horta decalcado e a lembrar os primeiros flamengos chefiados por Joss Van Herten, que lá chegaram no século da descoberta. “Amava o seu país – relembra-nos o autor – com a sua meteorologia humana e com o seu céu. Os belgas e a Bélgica – criticava-os mais dentro dos portões do que fora. Era também clássico nessa forma de lealdade”.
Como Um marinheiro Partirei: Uma Viagem Com Jackes Brel é mais uma prosa em poema, um poema em prosa, a autenticidade de um artista, e, para nós, de um agora inesquecível momento nos Açores, o resumo de uma vida imortalizada pelo seu desassossego de alma, pela sua voz, e ainda pelo seu fim a fazer bem a todos numa pequena e esquecida ilha do Pacífico. Nuno Costa Santos deixou tudo à curiosidade e ao prazer do texto a cada leitor. De resto, trata-se de uma edição que é um objeto de arte: em cor, textura de capa, tamanho perfeito para uma leitura que poderá ser de poucas horas, ilustrado com fotos desses momentos do artista na ilha. É para ser saboreado vagarosamente, a significação de cada passo a representar uma vida que pensávamos conhecer apenas pela letra-poesia, e em que, afinal, nos revemos, tal como me parece ser o caso de Nuno Costa Santos em primeiro lugar. Aliás, tem sido ele o autor, em livro ou por outros meios, de outras biografias dos que estavam num certo limbo do esquecimento, como Fernando Assis Pacheco, Ruy Belo, Rui Knopfli, e J. H. Santos Barros. Participou ainda no programa da RTP e depois em forma de livro, Mal-Amanhados – Os Novos Corsários das Ilhas, que lembraram os que não conhecíamos nos esconderijos dos Açores.
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Nuno Costa Santos, Como Um Marinheiro Eu Partirei: Uma Viagem Com Jackes Brel, Lisboa, Penguin Random House Grupo Editorial, 2023.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, 19 de maio de 2023.
“Ne me quitte pas”, pelo Zeca e pelo Maninho, no lançamento de “Como um marinheiro eu partirei, uma viagem com Jacques Brel”, de Nuno Costa Santos. Teria valido a pena só por este momento.
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