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Autódromo do Estoril vai ser vendido – Motorcycle Sports

O autódromo foi a casa do Grande Prémio de Portugal de Fórmula 1 entre 1984 até 1996 e foi riscado do calendário das provas de Moto3, Moto2 e MotoGP em 2012. Na próxima temporada, o  Autódromo Internacional do Algarve vai acolher a segunda etapa dos mundiais entre os fins de semana de 22 a 24 de março.

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FERNANDO MAMEDE PROVA DE V IDA

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PROVA DE VIDA – FERNANDO MAMEDE:
O ALENTEJANO MAIS RÁPIDO DO MUNDO
Não fiques em terreno plano.
Não subas muito alto.
O mais belo olhar sobre o mundo
Está a meia encosta.
Friedrich Nietzsche,
A Gaia Ciência, 1882
Até há minutos, ignorância minha, desconhecia em absoluto quem eram o Éme e a Moxila, um power couple formado por João Marcelo e Mariana Pita que no início deste ano, parece, lançou a música Estocolmo 1984, em cujo refrão se canta, miando:
“Vai Mamede, vai!”
Todo o estádio a cantar
enquanto a mente me trai:
“Vai Mamede, vai Mamede,
vai Mamede, vai!”
O mais enternecedor de tudo é que, no YouTube, onde ouvi estes trinados, destaca-se uma mensagem de @patriciamamede, que diz só isto, entre corações e emojis gratos: “Muita Gratidão em nome do meu pai, Fernando Mamede”. E nós, que ali a lemos, ficamos logo com vontade de lhe agradecer – e muito – este seu gesto de devoção e amor filial por um homem tão especial, Fernando Eugénio Pacheco Mamede, que viu a luz em Beja no dia de Todos os Santos de 1951, na casa paterna da Rua da Casa Pia, sendo o filho único de Joaquim, alfaiate, e de Custódia, doméstica.
Talvez a Patrícia não saiba, mas eu digo-lhe, que, no início da carreira, o seu pai corria de sapatilhas, e que os primeiros sapatos de picos que teve, essenciais à sua prática, pagou-os do próprio bolso, com os escassos tostões que tinha, e vieram da Socidel, de Lisboa, enviados pelo correio. E talvez também não saiba que, noutra fase da carreira, chegaram a oferecer-lhe 750 contos para correr pelo Benfica, mas ele, que à época ganhava uns 300 contos pelo Sporting, disse que não e não, recusou por amor ao clube e à camisola, numa atitude que hoje parece de um outro tempo, até quiçá doutro planeta, sobretudo quando o que agora por aí vemos são artistas-desportistas, já de si multibilionários, irem manchar o currículo e a honra jogando em terras onde se decapitam pessoas, entre outras barbáries máximas.
Por certo saberá Patrícia que o seu pai, atleta das corridas, homem veloz como poucos, “o alentejano mais rápido do mundo”, cometeu a proeza bizarra de chegar atrasado – mais de uma hora! – ao casamento com Alzira (rectius, Alzira da Conceição Ponte Brás), agendado para o dia 5 de Setembro de 1971 na Igreja de São José, em Lisboa, perto da Rua do Passadiço, onde ele morava, pelo singelo e prosaico motivo de que a sua família, vinda do Alentejo, tinha um pavor – comum às gentes da província de outrora -, o de trazer o automóvel para o centro da capital tenebrosa, e, por isso, optou por deixar o carro em Cacilhas, depois vir de barco a Lisboa, depois de táxi até à igreja, sequência em teoria perfeita, mas na prática, claro está, propensa a delongas e imprevistos. Fernando, naturalmente, aguardou a chegada retardada do seu pai, já então vitimado por um AVC, e da mãe, que avalizou o enlace após ter recebido informações seguras sobre o bom porte de Alzira, colega do filho no Departamento de Contabilidade do Sporting (esclareça-se, porém, e ao contrário do que disseram certas más-línguas, que não foi Fernando quem a trouxe para o clube, para onde Alzira entrou por uma outra história prosaica, bem lusitana: quem na altura chefiava a Contabilidade leonina acumulava com um cargo de direcção na Caixa Geral de Depósitos, onde era secretariado por uma rapariga de Algoz, Município de Silves, a mesma terra de Alzira; de resto, era para vir a irmã de Alzira para Lisboa, mas esta já estava tão farta da pasmaceira do Algarve que conseguiu viajar ela para a capital, onde desaguou em 1968). Fernando tinha então 19 anos, Alzira mais cinco do que ele e, como moravam ambos em quartos alugados, namoravam nos bancos dos jardins ou no escuro dos cinemas, lugares que, à época, tinham uma importância erótica de que hoje nem nos lembramos.
Após esperarem pela família do noivo, com o professor Moniz Pereira a acalmar as hostes com gracejos, dizendo que Fernando só tinha ido fazer uma corrida até ao Estádio de Alvalade e voltava já, o copo d”água decorreria num restaurante hoje desaparecido, mas que era frequentado pela equipa de futebol do Sporting antes dos jogos e, como tal, amigo no orçamento. A lua-de-mel foi passada, imagine-se, na Feira Popular de Lisboa, depois de os noivos terem levado os pais de Fernando até Cacilhas, com regresso a Beja no próprio dia. O novo casal foi viver para uns prédios acabados de construir na Calçada de Carriche, mas era tanto o barulho dos carros no sobe-que-sobe a ladeira que Fernando e Alzira tiveram de mudar o quarto para as traseiras de casa, para poderem descansar. A renda mensal, 2100 escudos, correspondia por inteiro ao ordenado dele no Sporting. O resto logo se via.
Fernando chegou a estar mobilizado para Moçambique, com um medo tremendo de pegar em armas ou, pior ainda, de perder a vida, mas o Sporting e a Federação pagaram 15 mil escudos a outro para ir em seu lugar.
Depois veio a tropa, Fernando chegou a estar mobilizado para Moçambique, com um medo tremendo de pegar em armas ou, pior ainda, de perder a vida, mas o Sporting e a Federação pagaram 15 mil escudos a outro para ir em seu lugar, e ele pôde permanecer no quartel em Lisboa, com um horário catita – das 14.00 às 17.00 horas – que lhe dava tempo para trabalhar e treinar no clube, e realizar ao fim do mês um ordenado simpático, cinco contos de réis. Quando se deu o 25 de Abril, confessa, nem percebeu o sucedido, pois ignorava sequer que existiam presos políticos em Portugal, isto apesar de regularmente ir entregar correspondência ao edifício da PIDE-DGS, na Rua António Maria Cardoso. “Passei ao lado do regime”, diz ele, como também diz, logo a seguir, “passei ao lado da revolução, embora naturalmente muito atento e interessado em saber o que se passava. Nunca entrei em qualquer manifestação, porque não tinha grande consciência política” (cf. Jorge Vicente, Fernando Mamede: “O Recordista”, 2.ª ed., Sete Caminhos, 2005, p. 54).
Mamede, um homem que gostava de ordem, paz e sossego, ficou incomodado com a súbita confusão revolucionária que se instalou no seu escritório da tropa, no edifício do Estado-Maior do Exército. Passou à disponibilidade em Abril de 1975, no calor do PREC, e do serviço militar guardou o trauma das explosões: um dia, recorda, estava a treinar em Alvalade, ouviu um estrondo e atirou-se para o chão por instinto, deixando os colegas a tombar de riso.
O medo, aliás, parece ter sido uma constante da sua vida, coisa que Fernando não tem pejo em assumir: quando nasceu a sua filha, em 15 de Novembro de 1973 (um dia depois de ele ter visto George Best a jogar em Alvalade, num Portugal-Irlanda), deixou a mulher em Santa Maria e fugiu dali, com pavor de hospitais. Só no dia seguinte, quando lhe ligaram para o trabalho, soube que tudo correra bem. Atribui o pânico de médicos e hospitais a uma grave doença que teve em criança, e que deixou marcas para todo o sempre: com apenas 3 anos, um problema pulmonar quase lhe ia tirando a vida, com a junta médica que o acompanhou a não chegar a conclusão alguma. Fernando acabou por ser salvo in extremis pelo lendário dr. Pinheiro, a que em Beja chamavam “Nossa Senhora de Fátima” e que se destacaria, anos mais tarde, por ter autopsiado Catarina Eufémia, concluindo que, ao contrário do que rezava o mito, esta não se encontrava grávida.
Ao fazer a retrospectiva da sua existência, Fernando Eugénio Mamede confessa que a maior ambição profissional que teve não foi ser atleta a tempo inteiro, aureolado de glória, mas conseguir um emprego estável num banco ou numa seguradora. Tendo frequentado o Curso de Comércio, que interrompeu no 2.º ano, concretizou o seu sonho e entrou em 1980 para os quadros do Crédito Predial Português. Não por cunha do dr. Lourenço Bernardo, esclarece, mas por mérito e talento próprios, coisa de que não duvidamos. Deixou o trabalho em Alvalade, onde esteve na Contabilidade e, depois, no remanso do arquivo do Departamento de Futebol, e foi integrado na secção de Organização do Crédito Predial Português, por onde passavam todos os comunicados internos do banco. As suas funções consistiam em expedir o correio para as delegações e balcões, além de tirar fotocópias. Refere ele: “Finalmente, atingira mais um objectivo a que me propusera quando deixei Beja – encontrar um emprego estável, que pudesse ser uma salvaguarda de qualquer eventualidade que me pudesse acontecer” (ob. cit., itálico acrescentado).
Três anos depois, em Dezembro de 1983, abriu na Avenida de Roma a loja Mamede Sport, de artigos de desporto, com a preciosa ajuda de António Montez, representante da marca Asics Tiger, que lhe adiantou metade do dinheiro para comprar a loja. “Quando tiveres o dinheiro todo, a loja será só tua”, disse-lhe Montez. Responde Mamede: “E assim foi, saindo-me do pêlo entre Setembro de 1983 e 1984, com as vitórias nas provas de cross e de pista a serem suficientes para conseguir os 6000 contos que faltavam para adquirir a loja”, sita naquela que era, di-lo ele, “uma segunda Baixa lisboeta”, “a zona onde a fina flor lisboeta realizava as suas compras”. Alzira largou a Contabilidade do Sporting, ele passava na loja sempre que podia, ornaram o estabelecimento com as suas muitas taças e troféus. “A loja deu para se sustentar a ela própria, objectivo primordial nos meus últimos anos como atleta”, e depois arrendou-a, “recebendo o dinheiro da renda que é um auxílio precioso para irmos vivendo”.
Por vezes, muitas vezes, esquecemos que o Estado-Providência, além das prestações sociais e dos benefícios que foi dando, teve uma dimensão imaterial colossal, um efeito psicológico de que pouco se fala, ao libertar milhões de pessoas do pavor do imprevisto, do eterno e terrível medo de “qualquer eventualidade que me pudesse acontecer”, como diz Mamede, fosse pela perda do emprego e do salário ou fosse, sobretudo e acima de tudo, por uma doença grave e súbita. Fernando conheceu-a em criança, quando, para proteger os pulmões, deixou de ir à praia e passou a fazer férias no campo, nos pinhais de Fóia-Monchique ou do Barranco Velho, na serra algarvia; como a conheceu mais tarde, e de modo bem impressivo, com a doença e morte do seu pai, falecido precocemente e novíssimo, com 48 anos, em Novembro de 1972. Antes disso, Joaquim tivera uma trombose repentina, que o filho descreve assim: “O meu pai estava a trabalhar no seu atelier de alfaiate e teve um acidente vascular cerebral. Caiu para o lado e nunca mais falou. Julgo que foi pelo excesso de esforço, onde, entre muitas outras actividades, tinha a função de trabalhar com um ferro de engomar muito pesado e a carvão. Ficou inutilizado para o trabalho e também para a sua vida comum, o que nos trouxe vários problemas para o sustento da casa.” Em resultado disso, recebeu uma pensão de invalidez de… quatro escudos por mês.
Hoje, à distância de mais de 50 anos, é difícil alcançar sequer o que a morte e a doença então significavam: mais do que a perda de um ente querido, elas equivaliam, com frequência, à desestruturação completa de um núcleo familiar inteiro, até porque, e para agravar as coisas, a distribuição rígida de papéis de género – Joaquim, alfaiate; Custódia, doméstica – dificultava ou mesmo impedia que um dos membros do casal fosse substituído pelo outro (o que, de caminho, também explica a escassez dos divórcios). Quando morria a mulher ou o marido, sobretudo este, era uma tragédia para todos, muito maior do que hoje. Sem o amparo do Estado, vivia-se em terror permanente.
Não admira, pois, que, à glória dos estádios e das medalhas, a mãe Custódia sempre tivesse preferido a segurança de um emprego e de um curso. “Porque é que te meteste nisto?”, perguntava-lhe ela, sobretudo quando Fernando se via envolvido nas polémicas do desporto. “Nunca reconheceu que fiz a opção correcta, ainda hoje lamentando-se de eu nunca ter tirado um Curso Superior…”, referiu o filho em 2004.
Mamede não terá sido um atleta a contragosto, mas, sem entrar em psicologismos, é fácil perceber que a sua carreira no desporto foi toda feita contra a necessidade de segurança que tanto sentia, e que lhe era dada por um emprego e por um casamento estáveis, pela figura tutelar do professor Moniz Pereira (um “segundo pai”, nas suas palavras), pela tranquilidade do trabalho a tratar de arquivo e a tirar fotocópias, pela garantia de uma pequena loja que, não dando lucros astronómicos, sempre se pagava a si própria, cumprindo no essencial.
Fernando Mamede tem sido recordado como um desistente, fardo e cruz que carregará até ao fim dos seus dias, falando-se até, na psicologia de café, do “complexo Fernando Mamede”, o trauma e sina que levam muitos, à beira da vitória e da meta, a saírem da corrida, largando um triunfo certo. Muito haverá a dizer sobre isto, começando, desde logo, pelo seguinte: antes de o retratarem como um falhado, vejam-lhe o palmarés, extenso de muitas páginas, iniciadas com duas vitórias nos Jogos da Mocidade Portuguesa, em 1968, e terminadas duas décadas depois, como Campeão Nacional de Clubes de Pista, Campeão Nacional de Clubes em Corta-Mato, Campeão da Taça dos Clubes Campeões Europeus de Corta-Mato. Ao todo, ficai sabendo, foram 44 internacionalizações como sénior, três internacionalizações como júnior, presença em três Jogos Olímpicos, 14 títulos nacionais de pista, 15 títulos colectivos de pista, 12 triunfos por equipas da Taça dos Clubes Campeões Europeus de Corta-Mato, seis vitórias individuais no Campeonato Nacional de Corta-Mato, 16 participações no Campeonato do Mundo de Corta-Mato, uma Medalha de Bronze colectiva no Campeonato Mundial de Corta-Mato, uma Medalha de Bronze individual no Campeonato Mundial de Corta-Mato. Recordes, mais do que muitos: um Mundial, três da Europa e 27 máximos Nacionais nas mais variadas distâncias. Satisfeitos?
Note-se que tudo isto foi conseguido por alguém que aos 3 anos de vida quase a ia perdendo, por doença dos pulmões, alguém que fez toda a carreira a pulso, ou à pata, eternamente dividido entre o apelo das pistas e a ânsia de segurança. Teremos, assim, uma pálida ideia da grandeza dos feitos deste bejense, grandeza que foi também a da gesta, não mais repetida, dos atletas portugueses dos Anos 70 e 80, jovens que treinavam na 2.ª Circular de Lisboa, para onde o professor Moniz Pereira os mandava “irem contar candeeiros”, cheirando o fumo dos carros. É uma história portuguesa, lusitana como poucas: duas semanas antes de conquistar o Oiro em Los Angeles, Carlos Lopes foi atropelado na 2.ª Circular pelo Mercedes de um azarado comandante da TAP, Lobato Faria, salvo por um triz da ira dos populares presentes. Por sorte, o campeão, que só esse ano fizera 12 mil quilómetros em treinos, não bateu com a cabeça, caindo no asfalto sobre a omoplata esquerda. Quinze dias depois, era Campeão Olímpico, Portugal sensacional (parêntesis: para a história das Olimpíadas – e de Portugal contemporâneo – fica também o Ouro de Rosa Mota na Maratona Feminina de Seul, 1988, com os imorredouros comentários de José Galvão na RTP1, começados da Coreia com um solene “Em contacto com Vossas Excelências” e terminados, duas horas volvidas, nos derradeiros metros, aos gritos de “Cospe, Rosinha, cospe tudo, até estou a roer as unhas dos pés!!”, “Vai fazer a curva, já vem a rir, já vem a rir, é nossa a medalha, é nossa, senhores espectadores, já não há pai para ninguém! Podem abrir as garrafas de champanhe, nós aqui precisamos de um bocadinho de água, temos a boca seca, mas podem beber por nós! É nossa a medalha, é nossa!”).
Talvez sem se aperceber disso, Mamede humanizou as Olimpíadas, mostrou que elas não são uma compita de deuses, mas de seres a nós iguais, os comuns mortais.
Foi em Los Angeles que Fernando Mamede teve a maior desfeita da sua carreira, quando, à passagem dos cinco quilómetros, após 12 voltas e meia à pista, desistiu da prova dos 10 000 metros, deixando-nos a nós, portugueses, todos de cara à banda, colados ao ecrã naquela madrugada infausta de 6 de Agosto de 1984. Falou-se e fala-se de questões psicológicas, refere-se a “Nikefobia”, o medo do sucesso que ataca os atletas, lamenta-se que nos Anos 80 os problemas de saúde mental fossem tema-tabu e, logo, mal diagnosticados e tratados. Mas, por paradoxal que pareça, houve algo de singular e belo naquele gesto do campeão transtagano, tomado na solidão do seu eu, contra um país inteiro. Foi, no fundo, o gesto de um rebelde, de um inconformista, no qual podem entrever-se vestígios de uma atitude antiga, il gran rifiuto de Celestino V, que Dante considerou ter sido um sinal da cobardia, mas onde Petrarca viu um acto sumamente virtuoso e digno. No nosso tempo, Marcuse exortaria à “grande recusa” em face da opressão do capitalismo e da sociedade de consumo, apelo que os hippies seguiram com denodado afinco, e, mais recentemente, Bento XVI invocaria o precedente de Celestino V para justificar a sua renúncia ao papado. Diz-se que, na literatura, a “grande recusa” está presente nas tragédias shakespearianas, com Rei Lear à cabeça, e num belo poema de Kavafis, coisas que decerto não terão acorrido ao espírito do nosso fundista de Beja quando, também ele, recusou as medalhas e a glória contra tudo e todos, contra as enormes expectativas que aos ombros carregava, e que eram acrescidas pelo triunfo ocorrido pouco antes em Estocolmo, quando se sagrou recordista mundial dos 10 000 metros em pista. “Não me peçam uma medalha, pois ninguém mais do que eu quer uma medalha em Los Angeles!”, avisou ele, acusando o toque e recusando a pressão. Depois, desistiu.
Nisso revelou algo de que não se fala, tão ofuscados estamos pela conversa do “complexo Mamede” e das suas fragilidades do foro psíquico. No fundo, e é isso que importa, Fernando Mamede revelou a ele próprio, e ao mundo, que, na sua perspectiva, ganhar as Olimpíadas não era uma questão de vida ou de morte, tendo menos importância, muito menos, do que a felicidade que vivia com a mulher e a filha, do que a lojinha de artigos de desporto na Avenida de Roma, do que o seu emprego num banco, a selar cartas e a tirar fotocópias.
A fama do desporto, e o dinheiro condizente, foram por si colocados no justo e devido lugar, absolutamente secundário perante outros valores mais altos e mais perenes, esses sim os importantes. Talvez sem se aperceber disso, Mamede humanizou as Olimpíadas, mostrou que elas não são uma compita de deuses, mas de seres a nós iguais, os comuns mortais. Com isso, deu uma extraordinária lição de vida a todos quantos no desporto ou nos negócios esbracejam e matam por alguns minutos de fama, sempre efémera e passageira. Mais formidável ainda, lembramo-nos dele porque falhou, exactamente da mesma forma como o recordaríamos se tivesse ganho. Nem mais, nem menos. O vencedor dessa noite, já poucos portugueses conhecem: para que conste, chamava-se Alberto Cova, era italiano e depois reconheceu ter feito “doping de sangue”, prática então permitida. Mas Fernando, esse, será sempre lembrado e falado, sobretudo quando evocamos as nossas próprias falhas, decerto mais graves do que as dele.
Nos últimos anos da carreira, Fernando Mamede teve problemas laborais no banco – não queriam dar-lhe as dispensas por ser atleta de alta-competição. Acabou por sair do Crédito em finais de 1990 com uma pequena indemnização, foi trabalhar para o Sporting, como adjunto de Moniz Pereira, mas depois foi afastado, no tempo de Sousa Cintra, por não o ter apoiado para a presidência leonina. Esteve a trabalhar para a Câmara da Azambuja, regressou a Alvalade e agora, que se saiba, está reformado, não sem antes ter visto inaugurado na sua terra natal o Complexo Desportivo Fernando Mamede, há pouco remodelado. Fala com orgulho da sua filha Patrícia, que cursou Direito e é hoje advogada, sendo delas as gentis palavras que ali vão acima e que, é óbvio e evidente, valem mais que mil medalhas, mesmo que de oiro ou prata.
*Prova de vida (21) faz parte de uma série de perfis
António Araújo, Historiador, in DN
Pode ser arte pop de 8 pessoas e texto
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Carlos Fino

Conheci Mamede em Moscovo e, contra a opinião geral, estive do lado dele quando desistiu em Los Angeles.
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