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O Terreiro, a Torre de Menagem e a muralha do Castelo de Arzila
Após a conquista de Ceuta em 1415, Tânger torna-se uma obsessão para a coroa de Portugal. Em 1437 um grande e mal planeado ataque comandado pelo infante D. Henrique fracassa, constituindo um rude golpe para as aspirações portuguesas. A opção é então tomar Alcácer Ceguer, facto que ocorre em 1458, já no reinado de D. Afonso V. No ano de 1464 D. Afonso V faz uma nova tentativa para conquistar Tânger, seguida de outros ataques “menores”, todos sem sucesso. A tomada de Tânger revelava-se como difícil de concretizar.
“Em 1471 surgiu nova oportunidade: beneficiando de um clima de volubilidade política no reino de Fez, D. Afonso V depressa organizou uma expedição que, desta vez, visaria Arzila, uma cidade desprovida de um porto seguro mas dotada de uma fértil região agrícola. Subjugada Arzila tornar-se-ia muito mais fácil o cerco da cidade de Tânger pelo sul.” (DÁVILA, obra citada)
A frente de mar de Arzila vista da Couraça
Em 1471 organiza-se uma poderosa armada, a maior até então, para voltar ao estreito. Tendo Tânger como objectivo final, Portugal opta por atacar inicialmente Arzila, por vários motivos:
Em primeiro lugar porque o seu governador Mulay Ash-Sheikh, filho do regente Lazeraque, estava ausente, empenhado num cerco a Fez para tomar o lugar do sultão. Em segundo lugar, porque tomada Arzila, Tânger ficaria isolada do resto do território de Marrocos, tornando-se numa presa fácil para Portugal. Finalmente, porque Arzila era uma praça rica, que constituía um dos locais de chegada do ouro do Mali, perspectivando-se um saque compensador. Este facto leva inclusivamente a que Martim Leme, mercador flamengo, tenha contribuído para o financiamento da expedição em troca de fazer comércio livre na praça após a sua conquista.
Á semelhança das empresas anteriores, organizam-se três armadas, no Porto, em Lisboa e em Lagos, juntando-se as forças nesta última cidade. No dia 18 de Agosto de 1471 a armada parte rumo a Arzila. Segundo Ruy de Pina eram 477 navios e 30.000 homens de desembarque, segundo Damião de Góis eram 338 velas e 24.000 homens.
“Ia nela a melhor gente de Portugal: D. Afonso e seu filho herdeiro do trono, D. João, de 16 anos de idade, que combateu valorosamente, como seu pai; entre os fidalgos o conde de Valença, D. Henrique de Meneses, capitão de Alcácer Ceguer, o conde de Monsanto, D. Alvaro de Castro, o conde de Marialva, D. João Coutinho, ambos mortos no combate à vila, e muitos outros.” (LOPES, 1989, pág. 25)
Gravura de Arzila no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
A armada chegou a Arzila no dia 20 e foi tomada a decisão de atacar logo na madrugada seguinte para não permitir que os defensores se organizassem.
O desembarque inicia-se de forma atabalhoada, facto determinado pelo mau estado do mar e pelos recifes que existem frente a Arzila, perdendo-se logo alguns navios e respectivas tripulações, como refere o cronista Rui de Pina:
“(…) porque o mar áquellas horas andava mui alevantado, e quebrava com muita braveza em um arrecife de pedra que tem, com entradas más de tomar, El-Rei todavia mandou com muito esforço e presteza remar e tomar a terra, onde elle por maior esforço de todos não quiz ser dos segundos, em que se perdeu uma galé com outras caravellas e bateis, em que no mar morreram até oito fidalgos, e da outra gente até duzentos, em que eram alguns bons cavalleiros e escudeiros.” (PINA, 1790, obra citada)
As dificuldades no desembarque reflectiram-se também nos equipamentos que não foram colocados em terra nesse primeiro dia, como por exemplo o palanque, estrutura defensiva circular de madeira destinada a proteger o exército, e a maioria das peças de artilharia pesada, das quais apenas duas ficaram operacionais.
A Rua da Kasbah, vendo-se ao fundo a Porta da Kasbah, uma das duas portas abertas na muralha durante o período do protectorado espanhol
O ataque inicia-se assim no dia 21 com bombardeamentos de artilharia que danificam seriamente as muralhas. Os defensores pedem a rendição, mas os portugueses não a aceitam. Os mouros resistem valentemente durante três dias. No final há pesadas baixas para ambos os lados e o massacre de muitos moradores inocentes.
“Ao contrário do que se passou na conquista de Alcácer Ceguer, D. Afonso V praticou uma verdadeira política de terror em Arzila, recusando-se a aceitar a rendição da cidade.” (DÁVILA, obra citada)
“Os defensores de Arzila fizeram pagar caro a vitória dos nossos, quer na povoação, quer na mesquita e no castelo da vila, onde se bateram valentemente. Na mesquita foi a peleja mais sangrenta. Os mouros, que se tinham refugiado aí, fecharam as portas e quiseram resistir nela. Foi em vão. Quebrada a porta, o conde de Marialva e um tropel de cavaleiros precipitaram-se sobre aquele mar de gente, a cavalo, de espada desembainhada, e bem se deixa ver a carnagem que fizeram naquela pobre gente.” (LOPES, 1989, pág. 25)
No rescaldo da batalha, o saque de Arzila rendeu 80.000 dobras de ouro e muitos cativos, entre os quais duas mulheres e um filho de Mulay As-Sheikh. A mesquita principal foi transformada em igreja, dedicada a S. Bartolomeu, onde o príncipe herdeiro D. João foi armado cavaleiro. A capitania da cidade foi entregue a D. Henrique de Menezes, capitão de Alcácer Ceguer.
Quando ainda se encontrava em Arzila, D. Afonso V recebe a notícia que os habitantes de Tânger, temendo um massacre idêntico, tinham incendiado e abandonado a cidade.
Detalhe de O Assalto a Arzila, vendo-se no centro da imagem, a cavalo, o rei D. Afonso V
As Tapeçarias de Pastrana são um conjunto de quatro tapeçarias, três referentes à conquista de Arzila e uma à ocupação de Tânger, realizadas pela oficina de Pasquier Grenier em Tournai, na Flandres, no último quartel do século XV, por encomenda da coroa de Portugal. São elas, O Desembarque em Arzila, O Cerco a Arzila, O Assalto a Arzila e A Entrada em Tânger.
O Mestrado de Inês Araújo sobre as tapeçarias de Pastrana são um contributo muito interessante para se conhecer melhor o tipo de equipamentos e armas que os portugueses utilizavam então.
“Com este trabalho tivemos como objectivo realizar um levantamento de todo o armamento envergado pela hoste cristã nas Tapeçarias de Pastrana, de forma a melhor conhecermos o equipamento utilizado pelo exército português durante a segunda metade do século XV, e mais propriamente nas campanhas do Norte África. Para um mais fácil entendimento do estudo, dividimos o equipamento representado em vários grupos tipológicos: o armamento defensivo, onde são incluídas as protecções de cabeça, as protecções de corpo, as defesas exteriores e o armamento ofensivo, de que fazem parte as armas brancas, as armas de haste, as armas de propulsão muscular, as armas de propulsão neurobalística e as armas de propulsão pirobalística.” (ARAÚJO, 2012, pág. 5)
O príncipe herdeiro D. João, à esquerda, num detalhe de O Assalto a Arzila
De acordo com este estudo a grande maioria dos soldados usavam como protecção da cabeça os chapéus de armas (chapéus-de-ferro, morriões ou simplesmente capacetes), enquanto os nobres usavam as celadas, fossem celadas simples, também chamadas celadas italianas, fossem celadas com diversos elementos articulados por rebites e dobradiças, como por exemplo viseiras, inspiradas nos elmos clássicos. Alguns elementos, como os trombeteiros, utilizavam toucas, barretas ou gorras.
Quanto à protecção do corpo, a esmagadora maioria das tropas utiliza as brigandines, protecções para o tronco constituídas por tecido ou couro reforçado por placas metálicas, associadas a um saiote e eventualmente a elementos metálicos para protecção do pescoço, peito, ombros, braços e pernas, aplicados através de arneses de couro. O Rei e os nobres utilizavam uma armadura de arnês completa, constituída por babeira, peitoral, ombreiras, braçais, cotoveleiras, com guardas de várias placas, avambraços, manoplas, escarcela ou panceira, coxotes, joelheiras e grevas.
Um besteiro num detalhe de O Assalto a Arzila
As defesas exteriores eram feitas com escudos, fossem os escudos de inspiração normanda, de forma oval ou triangular, de madeira e metal, fossem as adargas, de inspiração muçulmana, de forma bi-oval, fabricadas em couro, ambos utilizados pela infantaria e cavalaria. Observam-se também paveses, escudos de grandes dimensões, canelados, utilizados sobretudo para protecção dos arqueiros e artilheiros, e manteletes ou mantas, utilizados com o mesmo fim e para proteger as tropas da aproximação às muralhas.
“Uma arma de grande utilidade para os soldados que se aproximavam da muralha era a manta. Esta peça era formada por tabuados de madeira grossa, com pegas interiores para facilitar o seu transporte, que garantiam um resguardo seguro dos ataques da muralha aos soldados”. (DUARTE, 2003, obra citada)
O palanque ou castelo de madeira, era uma estrutura defensiva colectiva, móvel, que se revelara determinante na sobrevivência de muitos soldados durante a tentativa falhada de conquistar Tânger em 1437.
“O palanque era uma estrutura defensiva construída em madeira e que servia como uma fortificação de campanha (…) No Regimento de Guerra publicado nas Ordenações Afonsinas está explícito que esta paliçada era obrigatória nas operações de sítio, sendo instalada a toda a volta do arraial, de forma a protegê-lo de eventuais ataques pela retaguarda de um exército de reforço à cidade”. (ARAÚJO, 2012, pág. 122)
Trombeteiros num detalhe de O Cerco a Arzila
Como armamento ofensivo refira-se as armas de mão, espadas e adagas, as armas de haste, como lanças, bisarmas (alabardas ou foices de guerra), as armas de propulsão muscular, como ascumas, zagaias, dardos e pedras e as armas de propulsão neurobalística, como bestas e virotes. Dentro desta última categoria, não existe representação nas tapeçarias de “engenhos de arremesso por torsão ou contrapeso” (ARAÚJO, 2012, pág. 161), como catapultas ou trabucos, ainda em utilização na época, porque o Rei terá querido mostrar apenas o que tinha de mais moderno, ou seja, as novas armas de propulsão pirobalística, como trons encarrados, bombardas, colubretas, canhões de mão e espingardas de mecha ou arcabuzes, importadas pelos portugueses da Flandres e de Barcelona.
Uma referência aos artilheiros ou bombardeiros, soldados que manuseavam as armas de fogo. Segundo Inês Araújo, “não eram considerados militares mas sim mesteirais ou artífices. Muitas vezes eram vistos como homens com ligações a forças diabólicas devido ao secretismo desta arte e ao som e explosão que provocavam. Para além disso, para uma chefia militar podia ser considerado desonroso optar pela utilização das armas de fogo numa determinada operação, já que ia contra os ideais de combate medievais que davam primazia à luta corpo-a-corpo. Dentro desta lógica, as armas de fogo matam de forma ‘cobarde’, através de um tiro à distância, e de consequências brutais, provocando muitas baixas.” (ARAÚJO, 2012, pág. 161)
O adarve junto ao acesso ao Baluarte de S. Francisco
Após a conquista a cidade, Mulay Ash-Sheikh, que se encontrava em guerra aberta com o sultão de Fez, não querendo manter as hostilidades em duas frentes, celebra com D. Afonso V um acordo de paz válido por vinte anos, vindo posteriormente, já aclamado sultão, a renová-lo por mais dez com o rei D. João II. Esse acordo incluía a troca das duas mulheres suas aprisionadas pelos portugueses, pelas ossadas do Infante Santo e o envio do seu filho para Lisboa, para aprender a língua e os costumes portugueses. Por esse motivo o filho de Mulay Ash-Sheikh ficou conhecido em Marrocos como “L-Bartqiz”, o Português, ou “Mohammed Al-Burtughali”.
O acordo não só previa a posse de Arzila e das outras praças por Portugal (Ceuta, Alcácer Ceguer e Tânger), mas incluía também “os lugares e aldeias do campo ou termo dos mesmos” (LOPES, 1989, pág. 26). Apesar da criação desta área de mouros de pazes no “país Jebala”, a verdade é que Arzila é constantemente atacada, ao que parece porque o próprio tratado de paz o permitia _ “…os lugares murados das duas partes, que eram da parte dos mouros de Alcácer Quibir, Tetuão e Xexuão, poderiam continuar a fazer-se guerra, sem quebra do tratado”. (LOPES, 1989, pág. 26)
Esta cláusula do acordo, apesar de parecer absurda, justificava-se porque Mulay Ash-Sheikh não controlava os alcaides dessas cidades, mouriscos expulsos da Península, que faziam da guerra aos portugueses a sua principal actividade. É o caso de Sidi Ali El-Mandari, alcaide de Tetuan e Mulay Ali Berrechid, alcaide de Chefchauen.
Arzila no tempo da sua conquista pelos portugueses . fonte Jorge Correia
A cidade no tempo da conquista pelos portugueses era bastante maior do que é o actual recinto muralhado, estendendo-se para o interior do território, e teria entre 6.000 e 7.000 habitantes, de acordo com Jorge Correia, baseado na crónica de Damião de Góis.
Era totalmente encerrada por muralha com torreões, mas “os muros, cuja composição em taipa e inertes não resistiu ao tiro de uma bombarda pequena, careciam de maior robustez”. (CORREIA, 2008, pág. 175)
Para além destes aspectos, Arzila apresentava uma estrutura urbana pouco estruturada, de configuração labiríntica, e como tal desadaptada à sua utilização pelos portugueses, e integrando dois edifícios de carácter central, a Kasbah ou castelo e a Mesquita Maior.
Arzila nos primórdios da ocupação portuguesa . fonte Jorge Coreia
No período imediato ao da conquista, os portugueses “atalham” a cidade, construindo um muro que a dividiu em duas partes, reduzindo substancialmente a sua área com o objectivo de melhor a governarem.
“Os portugueses optaram pela realização de um atalho que veio cortar a cidade praticamente em duas pates iguais, deixando de fora a metade mais afastada do mar e que se espraiava pela planície. Arzila portuguesa viu-se reduzida a 45% da área islâmica herdada, preservando a faixa litoral imprescindível à estratégia de manutenção da praça. Um novo muro, de pedra e argila, traçava uma secante pelos baluartes que hoje se denominam Tambalalão e Santa Cruz”. (CORREIA, 2008, pág. 181)
O “atalho” e o fosso de Arzila
Ficavam assim constituídas a Vila Nova, onde se instalam os portugueses conquistadores, e a Vila Velha, onde são colocados os mouros que optam por continuar a viver na cidade. Esta intervenção é acompanhada de obras no Castelo e Torre de Menagem, tendo sido intervenientes Álvaro Tristão e Vicente de Avelar, vedores das obras de Arzila, e Rodrigo Anes, mestre das obras dos lugares de Africa. A população da Vila Nova, entre moradores, fronteiros, degredados, comerciantes e escravos, rondaria à época os 500 habitantes.
O Baluarte de Tambalalão, vendo-se do lado direito o pano do muro de atalho
Em Outubro de 1508 o sultão de Fez Mohammed Al-Burtughali, que sucedera a seu pai em 1504, cerca Arzila com o apoio dos alcaides de Tetuan e Chefchauen, Sidi Ali El-Mandari e Mulay Ali Berrechid, e conquista a chamada Vila Nova, ficando apenas o castelo nas mãos dos portugueses. O capitão da praça era na altura D. Vasco Coutinho, que é auxiliado pelo seu antecessor, D. João de Meneses, e por uma armada espanhola comandada por Pedro Navarro, conseguindo expulsar as tropas do rei de Fez. Arzila sofre grandes destruições nas suas muralhas, no casario e na igreja de S. Bartolomeu, que é incendiada. No ano seguinte dá-se o segundo cerco a Arzila, abortado com a intervenção de uma armada enviada por D. Manuel.
Estes dois cercos vêm comprovar as debilidades das defesas de Arzila e a necessidade de uma intervenção de fundo no recinto muralhado, “levando D. Manuel a tomar a decisão de interromper as obras do Mosteiro dos Jerónimos para que o mestre responsável pelos respectivos trabalhos pudesse orientar as obras de defesa de Arzila (…) Diogo Boytac é enviado em 1509 para Arzila, levando consigo uma avultada quantia em dinheiro e instruções para fortificar a cidade com muros de pedra e cal, em vez das habituais construções de pedra e barro.” (MATIAS, 2003, pág. 68)
Arzila no século XVI . fontes Jorge Correia e Adolfo Guevara
Diogo Boitaca ou Boytac permanece um ano na cidade, durante o qual elabora um “…um plano global de intervenção assente em três vectores fundamentais para a sustentabilidade e afirmação da praça portuguesa: reforço da cerca, com particular relevo para a muralha do atalho; emergência simbólica do castelo; consolidação urbana da vila”. (CORREIA, 2008, pág. 185)
Durante a sua estada em Arzila, Boitaca inicia pessoalmente algumas das obras, caso da Torre de Menagem (ou Borj El-Kamra), de um conjunto de habitações para moradores e a abertura do fosso.
Baluarte e Porta da Vila
A execução das obras é entregue a Francisco Danzilho, que chega a Arzila em 1511. Danzilho começa por reformular o Castelo, intervindo nas construções situadas no seu interior e nos baluartes da Praia e de Santa Cruz, nos quais são abertas canhoneiras. Posteriormente o muro do atalho é reformulado, introduzindo-se três quebras no seu traçado, para melhor se adaptar à utilização da artilharia, o fosso é construído, envolvendo também o castelo e o tramo sudoeste, e a Porta da Vila ou de Fez é também munida de canhoneiras e de uma ponte levadiça. A Porta da Vila, actual Bab Hauma, era uma porta secundária da cidade, sobretudo utilizada para saída e entrada de tropas para vigilância do campo exterior e para acesso às pequenas hortas existentes ao longo do “atalho”.
A frente de mar, especialmente importante para as comunicações da cidade com o exterior, é dotada de três baluartes que se projectam sobre a água, vocacionados para a garantia do controle da linha de costa pelos portugueses e para anular qualquer ataque feito a partir do mar:
São eles o conjunto Couraça e Baluarte da Couraça, no extremo Sul, o Baluarte da Pata da Aranha, que flanqueia a Porta da Ribeira ou do Mar, no extremo Norte, principal porta de entrada na cidade e de ligação ao porto, e o Baluarte de S. Francisco, que garante uma presença da artilharia a meio do pano da muralha.
A Couraça e o Baluarte da Couraça
Mas a intervenção dos portugueses na cidade não se resumiu aos seus aspectos defensivos, nem se limitou a uma reconstrução do “miolo” intramuros “tout court”. Foi realizada uma operação de reestruturação do tecido urbano, ou seja, uma reorganização do traçado viário e dos conjuntos edificados, racionalizando a transposição das funções para o território, à luz as necessidades funcionais dos seus novos habitantes.
A Vila Nova estrutura-se em quarteirões de desenho mais regular, tendo como “espinha dorsal” a Rua Direita, que atravessa a cidade longitudinalmente, desembocando no Terreiro, espaço urbano central onde ocorriam as principais manifestações colectivas, e onde se situava o acesso ao Castelo, a Igreja de S. Bartolomeu e a principal porta da Cidade, a Porta do Mar ou da Ribeira.
“O cuidado no tratamento do espaço público surge anotado no relatório de Boytac onde se percebe a presença de um chafariz na vila e de calçada no pavimento.” (CORREIA, 2008, pág. 197)
O pano Sudoeste da muralha, vendo-se o Baluarte da Couraça e os vestígios do fosso
As atalaias que circundavam as praças tinham um papel fundamental para avisar os seus habitantes de qualquer ameaça exterior e para assegurar que o trabalho no campo se fazia em segurança.
“As atalaias ou vigias, depois de descobrirem os postos de observação criados em volta das praças, ficavam aí durante certas horas do dia, de espia ao campo. Aproveitavam-se para esses postos as pequenas elevações ou outeiros que circundavam as praças, se as tinham. (…) Em Arzila, como noutros lugares, essas elevações tomaram, por isso, o nome de atalaias, também: atalaia do Facho, atalaia Ruiva, atalaia Gorda, atalaia Alta, etc.” (LOPES, 1989, pág. 41)
David Lopes relata um episódio que mostra bem a importância que as atalaias tinham para a segurança da praça de Arzila:
“A principal Atalaia era a do Facho. A vigia do facho, ou facheiro era nessa época Álvaro Gomes Galego, que tinha grande reputação entre os nossos e muito maior entre os mouros, de modo que, acontecendo-lhes algum desastre, logo diziam que tinham sido vistos do facheiro. Por isso o rei de Fez tentou, e conseguiu tomá-lo. Mulei Naçar, irmão do rei de Fez, quis-lhe tirar os olhos. O conde de Borba escreveu ao rei pedindo-lhes que não lhe fosse feita cousa tão fora de humanidade. Nisso consentiu, de feito el-rei, mas nunca o resgatou, e em Fez faleceu depois de muitos anos de cativeiro.” (LOPES, 1924-1925, obra citada)
Uma rua de Arzila
A eficácia do sistema de alerta baseado nas atalaias foi comprovada pelo vice-rei de Granada, quando fez escala em Arzila, por motivo de se encontrar em perseguição do corsário Khayr Ad-Din Barbarossa. Nessa ocasião, o capitão de Arzila D. João Coutinho fez-lhe uma demonstração do estado de preparação da sua praça para qualquer eventualidade. “…quando andavam na visita do campo, o conde mandou derrubar o facho, que estava na atalaia do Facho, e logo a torre do sino deu a rebate e em momentos viu junto de si 250 de cavalo, bem armados, o que o marquês muito admirou e louvou.” (LOPES, 1989, pág. 48)
A guerra de Arzila não se fazia apenas nos muros da cidade, mas principalmente nos campos que a circundavam. Era a guerra das almogaverias, entradas e correrias.
Arzila viria a ser abandonada em 1550 no seguimento da conquista de Santa Cruz do Cabo Guer pelos Sádidas, mas voltaria à posse portuguesa durante um curto período de 12 anos, entre 1577 e 1589, quando é oferecida a Portugal por por Mulay Mohammed como adiantamento pela ajuda de D. Sebastião para o reconduzir no trono de Marrocos, em troca da participação portuguesa na Batalha de Alcácer-Quibir.
A Torre de Menagem de Arzila
A Fundação Gulbenkian apoiou recentemente a recuperação da Torre de Menagem de Arzila, concretamente nos anos 80 do século passado, respondendo a um pedido do então Ministro da Cultura de Marrocos, Mohammed Benaíssa, para apoio técnico. O apoio técnico que inicialmente se referia apenas à cobertura acabou por se transformar no apoio total à recuperação da torre, técnico e financeiro. A própria estrutura do telhado e os caixilhos foram fabricados no Porto e transportados para Arzila para montagem. A intervenção foi entregue ao arquitecto Viana de Lima que faleceu antes dos trabalhos começarem, tendo sido de facto obra do arquitecto João Campos, então seu colaborador.
“…a Fundação contribuiu com um vultuoso subsídio para a reabilitação da Torre de Menagem da Fortaleza de Arzila, em Marrocos, erigida em 1509 e onde D. Sebastião terá passado a última noite antes de Alcácer-Quibir. A parte superior da Torre ruiu com o terramoto de 1755 e o Arq.º Alfredo Viana de Lima, consultor da UNESCO para questões do Património, concebeu, a pedido da Fundação, um notável projecto em que foi reposta a cobertura, além de ter sido efectuado uma reabilitação global do monumento, inaugurado em 1994 pelo Presidente da República Portuguesa e pelo então Príncipe Herdeiro e actual Rei de Marrocos.” (GARCIA, 2003, pág. 74-75)
Desenho realizado pelo arquitecto João Campos aquando da condução das obras de recuperação da Torre de Menagem de Arzila, fazendo uma previsão do seu impacto na imagem do “skyline” da cidade (CAMPOS, 1995, obra citada)
Bibliografia:
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CAMPOS, João. “Arzila, Torre de Menagem/Le Donjon d’Asilah”. Fundação Calouste Gulbenkian (coord., textos). Lisboa, 1995
CARABELLI, Romeo. “L’Héritage Portugais au Maroc, un patrimoine d’actualité”. Mutual Heritage, 2012
CORREIA, Jorge. “Implantação da Cidade Portuguesa no Norte de África. Da tomada de Ceuta a meados do século XVI”. FAUP publicações. Porto 2008
DÁVILA, Maria. “Tânger”. in Enciclopédia Virtual da Expansão
DUARTE, Luís Miguel. “África”. Nova História Militar de Portugal. Circulo de Leitores . Lisboa, 2003
FARINHA, António Dias. “Os Portugueses em Marrocos”. Instituto Camões, 1999
GARCIA, João Pedro. “O Serviço Internacional da Fundação Calouste Gulbenkian e a reabilitação do património arquitectónico português em países estrangeiros”. Fundação Calouste Gulbenkian. NegóciosEstrangeiros. N.º6 Dezembro de 2003
GUEVARA, Adolfo. “Arcila durante la ocupación portuguesa (1471-1549)” . Publicaciones del Instituto General Franco para la Investigacion Hispano-Arabe. Tânger, 1940.
LOPES, David. “A Expansão em Marrocos”. Editorial Teorema, Lisboa, 1989 (Publicação original BAIÃO, António, CIDADE, Hernâni e MURIAS, Manuel. “História da Expansão Portuguesa no Mundo, 3 vols. Editorial Ática. Lisboa, 1937)
LOPES, David. “História de Arzila durante o Domínio Português (1471, 1550 e 1677-1589)” . Coimbra, imprensa da Universidade. 1924-1925
MATIAS, Maria Fernanda. “A indescurável presença do passado. Reconstrução e salvaguarda do património português no estrangeiro”. Estudos e Ensaios, Revista de Humanidades e Tecnologias, 2003
PINA, Rui de. “Cronica de El-Rei D. Afonso V” (15–). in CORREA DA SERRA, José. “Collecção de Livros Inéditos de História Portugueza, dos reinados de D. João I, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II”, Vol. II. Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1790
Gosto porque permite compreender a presença portuguesa em Marrocos e os problemas dessa presença.
Infelizmente é uma história muito pouco divulgada e que nos marcou profundamente enquanto Nação
Mais um excelente testemunho das venturas e desventuras dos nossos avós por estas terras de Marrocos. Obrigado