À espera de publicação nos Jornais Correio dos Açores e Diário Insular.
Cabos Submarinos: A desinformação do relatório europeu
Dúvidas houvesse, é evidente a
dificuldade crescente dos defensores da transferência da principal amarração dos cabos submarinos CAM (continente – Açores – Madeira) da ilha de São Miguel para a ilha Terceira. Agora utilizam a conhecida técnica da imposição externa.
Pela voz do Director Regional das Comunicações, o actual Governo dos Açores inicialmente apregoou aos “sete ventos” a sua decisão pela opção da transferência. Depois de ter constatado que, na ilha de São Miguel, há desagrado geral e uma forte oposição, o discurso oficial foi alterado e o ónus da decisão passou a ser atribuído à ANACOM. O problema desta narrativa é que o estudo realizado pela ANACOM não concluiu, explicitamente nem implicitamente, pela transferência de qualquer amarração da ilha de São Miguel para outra ilha dos Açores. Nem o estudo da ANACOM, nem o estudo mandado realizar pelo anterior Governo Regional dos Açores (liderado pelo PS, que agora opta por um silêncio comprometedor e incompreensível!).
Não satisfeitos, aumentaram a parada e trouxeram para o conhecimento público um relatório de Junho 2022, no âmbito do Parlamento Europeu, com o título “Security threats to undersea communications cables and infrastucture – consequences for the EU (Ameaças de segurança para os cabos submarinos de comunicações e infra-estruturas – consequências para a União Europeia)”. O relatório europeu, não é um estudo técnico ou económico, tem como objectivos genéricos alertar os actores políticos da União Europeia para: a importância da rede de cabos submarinos; as suas vulnerabilidades e as ameaças que recaem sobre a segurança destas infra-estruturas críticas. Sugere ainda algumas recomendações de modo a melhorar a resiliência e a segurança das redes de cabos submarinos.
Mais uma vez, os defensores enganaram-se na narrativa. Não só tiraram ilações precipitadas para além do âmbito do relatório, como ironia das ironias, o próprio relatório tem erros de análise no que se refere às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
Assim, relativamente aos Açores e à Madeira transcrevemos na integra do relatório europeu: “The Portuguese Island of Madeira has seven adjacent cables, providing many alternative data traffic routes during downtimes of cables. On the other hand, the Azores are only connected to two cable systems (CAM Ring and COLUMBUS III), offering only little redundancy in case of a cable break. The risk of simultaneous failure is enhanced because both cables land in the exact location.”
Em primeiro lugar, contrariamente ao publicado pela comunicação social dos Açores, o relatório europeu não sustenta nem avalia a opção pela transferência da principal amarração dos cabos submarinos CAM da ilha de São Miguel para qualquer outra ilha. Também, o relatório europeu não refere que a Madeira esteja ligada à América do Sul ou à África, porque simplesmente não está: a ligação à África está há muito desactivada e as ligações ópticas inseridas nos cabos Atlantis 2 e Ellalink são domésticas (apenas entre Madeira e o continente). Do mesmo modo, não se pode dizer que os Açores estavam ligados à América do Norte pelo cabo Columbus 3, porque a ligação óptica também é doméstica (entre Açores e o continente).
Em segundo lugar, o relatório europeu é manifestamente incorrecto, no que se refere aos Açores e à Madeira, porquanto:
1) não é verdade que a ilha da Madeira tenha 7 cabos submarinos. Na realidade, actualmente a Madeira é servida nas suas ligações ao exterior por 3 cabos submarinos: i) o segmento doméstico Madeira-Continente integrado no sistema internacional Atlantis 2; ii) o cabo Açores – Madeira (também denominado CAM Ring); e iii) o segmento doméstico Madeira-Continente integrado no sistema internacional Ellalink;
2) os restantes cabos que permitiram no passado recente ligações ao exterior do Arquipélago da Madeira estão desactivados, não tendo operado pouco mais de 20 anos, nomeadamente Columbus2 (1994-2003), SAT2 (1993-2013), Eurafrica (1992-2014) e CAM1 (1972-1993);
3) não é verdade que os Açores tenham pouca redundância justificada por os cabos amarrarem exactamente no mesmo local. Na realidade, o Arquipélago dos Açores é servido por 2 cabos submarinos nas suas ligações ao exterior, ambos com amarração na costa Sul da ilha de São Miguel, mas em dois locais distintos, nomeadamente: o segmento doméstico Açores – Continente integrado no sistema internacional Columbus 3, na Praia Pequena do Pópulo (Ponta Delgada); e o cabo Açores – Madeira (também denominado CAM Ring), no Areal de Santa Cruz (Lagoa).
O relatório europeu ao imputar a diminuição da redundância nos pontos de amarração da ilha de São Miguel, comete uma análise enviesada, parcial e erradamente critica. Uma vez que os referidos pontos de amarração distam um do outro 4,5 Km e estão em praias de areal, enquanto o relatório europeu não manifesta qualquer análise critica à redundância dos locais de amarração da ilha da Madeira, que distam entre si apenas 1,5 Km e estão em praias de calhau.
A confirmação de que os actuais pontos de amarração da ilha de São Miguel têm sido uma boa opção (a melhor dos Açores), uma vez que não provocaram avarias durante os já decorridos 23 anos, para além de apresentarem um conjunto de características técnicas (praias de areal) e geológicas (menor risco sísmico que o Grupo Central dos Açores), que os recomendam. Contudo, a ilha de São Miguel apresenta na sua costa Norte extensas praias de areal, que podem ser locais de amarração alternativos para a ligação directa ao continente português, com a nova estação de cabos submarinos a instalar na desactivada estação de satélites da Fajã de Cima (Ponta Delgada), permitindo uma ligação com amarração na costa Sul e outra na costa Norte (evita travessia da falha geológica denominada dorsal da Terceira).
Por outro, o relatório europeu enferma de três relevantes omissões na avaliação da segurança e resiliência das comunicações dos Açores: 1) não analisa a actual ausência de segurança física nos locais de amarração e na rede terrestre de caixas e condutas; 2) mais grave ainda, esquece completamente a maior ameaça para a perda de conectividade dos Açores, o facto da vida útil de 25 anos dos cabos submarinos continente – Açores e continente – Madeira terminarem dentro de 1 ano, em 2024, e do anel inter-ilhas dos Açores (serve 7 das 9 ilhas) terminar já este ano de 2023, sem qualquer perspectiva de substituição; 3) nada refere quanto à incapacidade no estabelecimento de ligações de emergência alternativas via satélite, pela utilização da estação terrena de Ponta Delgada, que está desactivada e obsoleta.
Por comunicação já enviada aos autores do relatório europeu, sugeri uma actualização com as referidas correcções, uma vez que aquele relatório está, involuntariamente, a desencadear desinformação pública através da Comunicação Social dos Açores, que amplamente o divulgou no passado dia 21 de Março.
O Diário Insular foi o que mais destacou o relatório europeu, com extensa notícia e um editorial. Na sua habitual presunção decretou: “o documento põe uma pedra sobre o assunto” para depois concluir que “daí não se saiba bem por que lado a Assembleia Legislativa irá pegar na Petição”.
Pelo contrário, em face da realidade socioeconómica dos Açores, dos argumentos técnicos e financeiros, o Diário Insular deveria colocar a sua “pedra” sobre a ideia errada de retirar à ilha de São Miguel o que existe desde há 130 anos: a sua ligação directa ao exterior. Por outro, numa atitude populista, o Diário Insular está a fazer um dano à democracia ao tentar desmerecer na Petição, que é uma acção de cidadania legítima e informada de participação pública nas decisões governativas.
Ponta Delgada, 27 de Março 2023
João Quental Mota Vieira
Eng. Electrotécnico (IST) e MBA (UAç)
Ex-Quadro Superior da Marconi/PT
Ex-Chefe da Estação de Cabos Submarinos dos Açores