Não ficamos só a ver navios, ficamos a ver o futuro passar ao largo.
A atual politica de mobilidade marítima, retira aos marienses o direito à igualdade de acesso a bens e serviços, à coesão económica e ao desenvolvimento sustentável.
Artigo de opinião publicado na edição n.º 71 de o Jornal “O Baluarte de Santa Maria”.
«No início de abril deste ano, a propósito do anúncio do investimento de 25 milhões de euros na aquisição de dois navios elétricos para transporte de passageiros e viaturas entre as ilhas do triângulo, ficamos a conhecer a intenção do governo regional de dispensar um dos ferries, que atualmente opera nessas rotas, para a ligação marítima entre São Miguel e Santa Maria.
Este anúncio destituído de fundamentação técnica e financeira, é, apenas e só, mais uma das muitas incongruências do governo de coligação PSD/CDS/PPM nesta matéria.
O transporte marítimo de bens, passageiros e viaturas é imprescindível ao desenvolvimento da ilha de Santa Maria, mas não só de Santa Maria. Num território assimétrico e descontinuo, como são os Açores, a mobilidade marítima é fundamental para a coesão económica e social entre ilhas e populações. A sua importância não se coaduna com a forma como o governo trata este assunto, penalizando os marienses.
Se não, vejamos.
Com o fim das restrições impostas pela pandemia da Covid-19, era esperada a retoma da operação sazonal, que entre os meses de maio e setembro ligava todas as ilhas dos Açores (com a exceção do Corvo), contudo o governo de coligação PSD/CDS/PPM defraudou essa expetativa, quando, no início agosto de 2021, declarou que a operação seria definitivamente abandonada. Na ocasião, o então Secretário Regional dos Transportes, Turismo e Energia, Mário Mota Borges, justificou a medida com o elevado prejuízo da operação, entre “9 e 10 milhões de euros” por ano, segundo o próprio.
Passado poucos meses, em março de 2022, o mesmo secretário afirmou “Está previsto no plano para 2022 uma verba significativa para a construção do navio. Não sei se será iniciada este ano ou não, mas o estudo da solução relativamente ao navio, não relativamente à operação, pretendemos tê-lo concluída até ao final do terceiro trimestre deste ano”. Segundo o governante, o objetivo era construir um navio com capacidade para assegurar as ligações mais distantes da operação sazonal e que possa “ser incorporado na frota da Atlânticoline no restante período do ano, pelo que terá de ser capaz de operar no porto da Madalena do Pico” (AO 23 de março de 2022).
No mês seguinte, a 29 de abril, na remodelação do governo, saiu Mota Borges e entrou Berta Cabral. No início de maio, a nova Secretária, agora do Turismo, Mobilidade e Infraestruturas, revelou que o governo deixara cair o projeto de construção de um navio de transporte de passageiros, anunciado pelo seu antecessor dois meses antes. “Quanto ao navio de passageiros, já deixámos cair o projeto. Entendemos que o Governo Regional não deve ser armador. Além do mais, os fundos comunitários não comparticipam. Apenas o fariam se fosse elétrico [o navio] mas os elétricos não permitem navegar nos nossos mares” afirmou em declarações ao Açoriano Oriental de de 11 de maio de 2022.
Em pleno mês de agosto, Berta Cabral, em declarações à RTP-A, enaltece a Tarifa Açores e o reforço do número de voos entre São Miguel e Santa Maria, atribuindo a dificuldade em obter passagens aéreas entre as duas ilhas, à excessiva concentração de eventos em Santa Maria em época alta.
Em pouco mais de meio ano, o executivo volta a mudar de opinião. Em abril deste ano, o secretário regional, Duarte Freitas, anuncia que “a empresa Atlânticoline vai contar na sua frota com dois navios elétricos, orçados em 25 milhões de euros” e acrescentou ainda que vai haver “uma aposta inovadora em dois barcos elétricos para operarem nas ilhas do triângulo (Faial, Pico e São Jorge), libertando os atuais para novas rotas, como por exemplo a rota Ponta Delgada-Vila do Porto” (Diário dos Açores 5 de abril de 2023).
As Finanças de Duarte Freitas contrariam a Mobilidade de Berta Cabral. O Governo afinal deve ser armador, os nossos mares já permitem a navegação de navios elétricos e o transporte marítimo de passageiros e viaturas entre Santa Maria e São Miguel volta a ser necessário e útil.
Confuso? Bastante.
Haverá quem diga que “tudo está bem, quando acaba bem”, mas eu, ao invés, digo “o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”.
A medida agora anunciada para Santa Maria não é uma solução é uma ilusão. Sem argumentação técnica e financeira, são mais as dúvidas do que as certezas sobre a sua viabilidade. São muitas as perguntas que ficaram por responder.
A primeira delas é se os navios que parecem sobejar (creio que não sobejam, mas voltarei a isso adiante), “Mestre Jaime Feijó” e ou “Gilberto Mariano”, asseguram uma solução adequada e eficiente para a ligação marítima entre Santa Maria e São Miguel? O primeiro navio tem capacidade para 333 passageiros e 15 viaturas, o segundo 296 passageiros e 12 viaturas. Nenhum dos navios permite o transporte de carga rodada (roll in/rol off) e ambos têm uma capacidade muito reduzida de transporte de viaturas. Se esta solução viesse a ser implementada condicionaria o futuro da ilha de Santa Maria por largos anos.
Haverá quem não concorde. Ainda assim, existem outras perguntas a colocar. Quando terá início a operação marítima entre Santa Maria e São Miguel? Partindo do pressuposto que os estaleiros de construção naval teriam disponibilidade de aceitar uma encomenda de dois navios a qualquer momento, o tempo de construção nunca será inferior a dois anos. Ao que se soma a fase de projeto, que poderá ser bastante prolongada, caso o Governo Regional queira definir requisitos muito específicos em vez de optar por projetos já existentes. Santa Maria e os marienses podem esperar mais cinco anos? Na minha opinião, não podemos.
Haverá quem defenda o contrário. Mesmo assim, impõem-se outras perguntas. Uma questão essencial é saber se a entrada em funcionamento de dois navios elétricos permitirá libertar um ferry convencional para a operação no Grupo Oriental? Não existem navios elétricos que possam garantir a operação do “Mestre Jaime Feijó” ou “Gilberto Mariano” tal como é assegurada atualmente, pelo que considero muito difícil que estes navios deixem de operar no grupo central.
Tomemos como exemplo o “E-Ferry Ellen”, um dos mais modernos ferries elétricos em operação na Europa. A sua construção resultou de um projeto de investigação, financiado pela União Europeia, com o objetivo de conceber um navio 100% elétrico para longas distâncias. Com 59 metros de comprimento, 8 pés de calado, capacidade máxima de 196 passageiros e 36 viaturas e uma autonomia declarada de 22 milhas náuticas (NM), representou um investimento 21,3 milhões de euros na fase de protótipo, enquanto a produção teve um custo estimado de 16,3 milhões de euros.
Atendamos à autonomia, 22 NM. Um navio com estas características, apenas garante a ligação de ida e volta, entre a Horta e a Madalena, sem carregamento intermédio, todas as outras rotas obrigam a carregamento no porto de chegada. A autonomia teórica de 22NM, dada as condições de mar nos Açores, será na prática e frequentemente reduzida. Pondo em causa a ligação entre a Horta e São Roque do Pico (15NM) e subsequentemente com as Velas, uma vez que a escala exige carregamento no Pico. O “E-Ferry Ellen” não obstante ter sido concebido para longas distâncias, não conseguiria assegurar de modo eficiente a operação entre os portos do triângulo, sendo que as ligações à Graciosa e à Terceira seriam de todo impossíveis, pois estas rotas exigem mais do dobro da autonomia.
Nestas circunstâncias o “Mestre Jaime Feijó” e ou “Gilberto Mariano” poderão ser libertados para o transporte de passageiros entre Santa Maria e São Miguel? Certamente que não.
Atualmente não existem navios 100% elétricos que possam assegurar todas as ligações do Grupo Central. Mesmo que no futuro próximo as evoluções tecnológicas viessem a permitir ganhos substanciais de autonomia, isso implicaria maior capacidade de armazenamento a bordo (baterias) e pontos de carregamento mais rápidos em terra, o que encarecerá, significativamente, o projeto.
O orçamento de 25M€, anunciado pelo Secretário das Finanças, é outra incongruência. Sem argumentação técnica e financeira é muito difícil conceber que 25M€ sejam suficientes para a construção de dois navios adequados à operação pretendida. E se com a entrada em operação de dois navios elétricos já seria muito improvável sobejar um ferry convencional para ligar Santa Maria e São Miguel, com apenas um navio elétrico, não voltaremos a ter navios por cá.
Desde abril que não se voltou a falar de transporte marítimo de passageiros e viaturas.
Enquanto isso o futuro de Santa Maria e dos marienses fica comprometido na ilusão dos navios que virão.
Mais do que anúncios vagos exigem-se respostas concretas e fundamentadas. Impõe-se o respeito pelo direito dos marienses à igualdade de acesso a bens e serviços, à coesão económica e ao desenvolvimento sustentável.
Se esta política de garrote não cessar, e rapidamente, mais do que ficarmos a ver navios, ficaremos, irremediavelmente, a ver o futuro passar ao largo.»