Categoria: Historia religião teologia filosofia

  • “Erro histórico”. A Batalha de Aljubarrota não foi em Aljubarrota – ZAP Notícias

    Views: 6

    7 dias, a pé, até Lisboa. 12 até ao Reino de Castela. 13 até ao Reino dos Algarves. Neste preciso planalto, localizado em São Jorge e não em Aljubarrota, aconteceu… a Batalha de Aljubarrota. Foi há 640 anos. A 14 de agosto de 1385, Portugal afirmava a sua independência, com a vitória do nosso Rei D. João I sobre o Rei Juan de Castela (João I de Castela). Após a morte d’El Rey D. Fernando (1383), Portugal viveu dois anos bastante críticos. Não havia filho varão para herdar a coroa. A única filha legítima de D. Fernando era a infanta

    Source: “Erro histórico”. A Batalha de Aljubarrota não foi em Aljubarrota – ZAP Notícias

  • ESCRAVATURA

    Views: 10

    Há 44 anos, referindo-se a uma coleira metálica usada por um escravo no século XVIII, José Saramago, numa hipérbole de indignação, considerou que ela valia tanto como toda a cidade de Lisboa. Valerá o cemitério de escravos encontrado na zona da antiga gafaria tanto como toda a cidade de Lagos? Valerá a memória da escravatura tanto ou mais do que a dos Descobrimentos? Essas foram as perguntas que me levaram a escrever, no Observador, o artigo que aqui transcrevo:
    “Terminei o meu último artigo (“Lagos de Descobertas”) com a promessa de que voltaria ao assunto das prioridades e da importância relativa da escravatura e das navegações de descobrimento dos portugueses. É claro que para um historiador ambas são importantes, tudo dependendo dos seus interesses e das investigações que tem em curso. Mas como é — ou deveria ser — para os políticos, autarcas incluídos, e para o cidadão comum? Escravatura ou Descobrimentos? Deverá ser dado à escravatura um lugar de destaque nas memórias da nossa sociedade, no ensino nas nossas escolas básicas e secundárias, e no nosso espaço público, incluindo na monumentalidade? Deverá ser-lhe dado um destaque tão grande que ultrapasse e ofusque o que tem sido habitualmente dado não apenas aos Descobrimentos, mas também aos vultos ou às realizações, heroísmos e grandezas daqueles que a linguagem do século XIX designava por “os nossos maiores”?
    Os woke tendem a considerar que sim, isto é, que o foco posto na escravatura deve ser tanto ou mais luminoso e intenso do que é posto nos Descobrimentos e nos seus obreiros, e, pior do que isso, determinam ou concluem que a escravatura tinge, macula, de forma indelével e sem remissão, todo o grande acontecimento a que chamamos expansão ultramarina e colonial dos portugueses (e de outros europeus). E porque é que consideram isso? Basicamente por duas razões: em primeiro lugar pela dor e a injustiça que a escravatura transatlântica implicou, e que é absolutamente inegável; em segundo lugar, pela hiper-emotividade de muitas almas sensíveis que a observam e a julgam a partir já não das circunstâncias e práticas do tempo, mas sim das comodidades, das igualdades e das declarações dos direitos humanos do presente. Se a primeira motivação é compreensível, a segunda, isto é, o presentismo e a emotividade, é totalmente inadequada. Trata-se, aliás, frequentemente, de uma emotividade telescópica que é maior do que a revelada face a muitas injustiças do presente e do que a que foi sentida pelos que, no século XIX, em terra e no mar, combateram contra a escravatura e lhe puseram termo, o que mede bem a dimensão do disparate.
    Esse disparate é muito visível na ideologia woke. Os exemplos são às centenas, mas recorro aqui ao último de que tive conhecimento. Há dias, sendo entrevistado no Expresso, o realizador Manuel Pureza, após ter elogiado um livro de Grada Kilomba, considerando-o “uma bíblia para quem quer desmontar as construções da língua e passar a dizer pessoas escravizadas em vez de escravos”, assumiu que gostaria que se ensinasse essa terminologia às crianças e manifestou o desejo de que se transmitisse não só a elas, mas a todos nós “que a (nossa) História não foram Descobrimentos, foi outra coisa”. O entrevistador, Bernardo Mendonça, intervindo, então, e querendo ajudar à festa, lançou para o ar a palavra de ordem de um artista brasileiro — “não foi Descobrimentos, foi matança” — e Manuel Pureza concordou com ela.
    Matança, pergunto eu? A sério? Matança como, por exemplo, as conquistas de Gengis Khan, de Tamerlão ou da extensa lista de abomináveis matadores de que o passado está feito? O nível de desconhecimento que as pessoas têm de uma coisa que se chama história comparada nunca deixa de me surpreender. Não vou tentar contrariar as firmes convicções do realizador Manuel Pureza, que poderá informar-se por si só, se quiser. Aqui quero apenas sublinhar que este senhor, como muitos outros da sua corrente ideológica, pretende que seja dito às pessoas e ensinado nas nossas escolas que os Descobrimentos foram uma matança.
    É claro que uma entrevista é pouco para avaliar alguém, mas não é de excluir que Manuel Pureza seja um emotivo — muitos woke são-no —, que põe o que tem que ver com a escravatura, a conquista militar, o colonialismo, fora dos seus respectivos contextos e de qualquer proporcionalidade razoável. Mas nessa sua eventual posição Manuel Pureza tem muitos antecessores. Já há décadas que encontramos no nosso país aquilo que, nesta área e para além da emotividade, caracteriza o wokismo: a desmesura, a desproporção. Em 1981, por exemplo, referindo-se a uma coleira imposta a um escravo, coleira que estava no agora chamado Museu Nacional de Arqueologia, em Belém, e sobre a qual já escrevi, disse José Saramago o seguinte no seu livro Viagem a Portugal: “(a coleira) andou no pescoço dum homem (um escravo preto), chupou-lhe o suor, e talvez algum sangue, de chibata que devia ir ao lombo e errou o caminho”. A coleira é “a prova de um grande crime”. Por isso “se é preciso dar-lhe um preço, vale milhões e milhões de contos, tanto como os Jerónimos aqui ao lado, a Torre de Belém, o palácio do presidente, os coches por junto e atacado, provavelmente toda a cidade de Lisboa”.
    Este exagero visa explicitar a indignação, a execração perante a escravidão dos negros, e tem obviamente uma carga e uma mensagem moral. Trata-se de um discurso hiperbólico que fica muito bem numa página de literatura, na mensagem de um pregador ou de um activista, mas as sociedades humanas não se regem nem se governam segundo essa bitola emotiva e moralizante, e a História também não. Isto quer dizer que, em bom rigor, no mundo real, a coleira do escravo não tem tanta importância como, por exemplo, Lisboa. Aliás, nem sequer no estrito campo das emoções o tem, pois há e havia em Lisboa, milhares de dramas equivalentes ou ainda mais impressionantes. E não é preciso saber muita História para estar ciente disso, ou pelo menos para o intuir. Uma vez que estamos no campo da literatura bastará lembrar a toda a gente que leu esse extraordinário romance de Victor Hugo que é Notre-Dame de Paris, o que podiam ser as desgraças, os abusos e as injustiças numa cidade europeia no século XV, aproximadamente na época em que as primeiras levas de escravos africanos chegavam a Lagos.
    Saramago fez uma hipérbole para fins morais. O problema é que os woke tomam essas coisas à letra, pois na sua marcada ignorância supõem que a avaliação moral, sobretudo se for de condenação, deve prevalecer e lançar o seu manto julgador e justiceiro sobre a História. Mas não é assim e é por isso que para o cidadão português comum o cemitério com restos mortais de africanos trazidos para Portugal no século XV, em Lagos, não deve ter a mesma importância nem relevância que têm os Descobrimentos. Aliás, abra-se aqui um parêntesis para dizer que a esquerda woke é especialista em fazer uma gritaria em torno de pouca coisa. Much ado about nothing, como dizia William Shakespeare. Em torno do cemitério de Lagos há todo um estardalhaço montado, fazem-se filmes, escrevem-se artigos, estruturam-se projectos de investigação. Constou, até, que o Presidente da República terá sugerido a Lídia Jorge que, no seu discurso do dia 10 de Junho, abordasse esse assunto. Mas, pergunto eu, desvendou-se algum segredo, algo que ninguém sabia ou que os portugueses andassem há séculos a esconder? Nada disso. A chegada de escravos africanos a Lagos, e a sua vida nessa terra, está narrada em assinalável detalhe nos capítulos XXIII a XXVI da Crónica de Guiné, uma obra do século XV cujo manuscrito, encontrado em 1837, em Paris, e, depois, publicado, está desde essa época ao alcance de quem queira lê-la.
    Ao contrário do que se diz ou tenta fazer crer, não há verdades maliciosamente escondidas nem coisas varridas para debaixo do tapete da nossa memória colectiva. A escravatura de gente africana foi parte integrante da expansão ultramarina dos portugueses. É incontestável que foi uma parte violenta, sombria, injusta, muitas vezes cruel, da expansão ultramarina dos povos europeus, na qual Portugal teve um iniludível papel, sendo politicamente responsável pelo transporte transatlântico de 4,5 milhões de escravos negros — e não de 6 milhões como a esquerda woke e os seus académicos querem fazer-nos crer. Dito isto é importante perceber e sublinhar que a escravatura é uma parte e não o todo da expansão ultramarina e que ela não resume nem simboliza essa expansão. As coisas têm a dimensão e a importância relativa que têm. Nem mais nem menos. Entre 1963 e 1971 o historiador Vitorino Magalhães Godinho publicou Os Descobrimentos e a Economia Mundial, uma grande obra historiográfica, uma daquelas que, nos actuais tempos das teses de doutoramento feitas à pressão ou pela porta do cavalo, já não se escrevem. A escravatura foi um capítulo dessa sua grande obra. Um capítulo num total de vinte e sete. Conceda-se que, de então para cá, a investigação histórica sobre a escravatura fez grandes avanços e não custa admitir que, se republicasse agora a sua obra-prima, Magalhães Godinho triplicaria ou quadruplicaria a atenção e a saliência dadas à escravatura. Dedicar-lhe-ia quatro capítulos, suponhamos, e vinte e seis a outros aspectos da história económica dos Descobrimentos. É essa a dimensão e a proporção que devemos dar à escravatura no painel das nossas memórias sobre os séculos XV a XIX, e é bom que não percamos isso de vista porque os emotivos, tanto em Lagos como em qualquer outra parte, estarão sempre, a reboque das suas emoções e dos seus exageros, a puxar-nos muito para fora de pé.”
    observador.pt
    Os emotivos (em Lagos ou em qualquer outra parte)
     

  • ONDE ESTAMOS E PARA ONDE VAMOS “O primeiro mecanismo de minimização dos actos de agressividade é a falsa equivalência, nos dias de hoje, entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. José Pacheco Pereira,

    Views: 15

    a da
    May be an image of 1 person
    ONDE ESTAMOS E PARA ONDE VAMOS
    “O primeiro mecanismo de minimização dos actos de agressividade é a falsa equivalência, nos dias de hoje, entre a extrema-direita e a extrema-esquerda.
    José Pacheco Pereira, Público, 14/06/2025
    Já há algum tempo escrevi sobre esta matéria do incremento da agressividade, mas como dei exemplos do trânsito nas cidades, as pessoas não fizeram qualquer correlação com a política. Mas existe, e não está apenas nos cada vez mais comuns incidentes de violência da extrema-direita, o sinal dessa crescente agressividade, está no ambiente que os torna “normais” e na ideia dos que os provocam de que se ganha alguma coisa, em publicidade, recrutamento, efeito útil no que se faz. E depois, na máquina política e comunicacional que os diminui ao não falar neles sem os “equilibrar” com o “outro lado”, quando não há “outro lado”.
    É interessante ver como a maioria dos comentadores do farol da direita radical, a Rádio Observador, ao ter que se pronunciar sobre a agressão física ao actor ou às ameaças diversas desde ao Imã da Mesquita de Lisboa, às senhoras que distribuíam alimentos aos sem-abrigo, desenvolvam todo um discurso a dizer, como Ventura aliás, que só se fala deste tipo de agressões e se escondem as outras. Não sei bem quais são as “outras”, mas o que é certo é que este discurso funciona como uma minimização do que se está a passar.
    A razão por que estes actos de agressividade, centrados não num protesto verbal, mas na ameaça física – o que faz toda a diferença –,​ estão a ser minimizados é política, em primeiro lugar, mas também é a incompreensão do pano de fundo que lhes está por trás, que encontra um canal imediato nas organizações assentes no culto da violência, mas que vai muito para além. Vai para o quotidiano principalmente urbano, onde o “viver” é cada vez mais agressivo. Na escola, em casa, no clubismo futebolístico, na rua, no pouco que muitos lêem, ou seja, nas redes sociais.
    O primeiro mecanismo de minimização é a falsa equivalência, nos dias de hoje, entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Duvido que qualquer relatório do tipo do RASI seja capaz de apontar qualquer mínimo paralelismo. Os dois partidos mais relevantes que podiam no passado ser aí incluídos, só por manipulação podem hoje estar no lado do paralelo da extrema-esquerda. Quer o PCP, quer o Bloco de há muito que abandonaram na prática a ideia de uma revolução violenta, não estão organizados para isso e mesmo na retórica política deixaram cair a visão leninista da revolução. Admito que para esta direita à procura de equivalências se olhe com medo para os novos movimentos contra o racismo, como o SOS Racismo, ou sobre a habitação, como o Vida Justa. Mas é um “medo” instrumental, à Trump, porque as manifestações desses movimentos, com excepção de alguns vidros partidos, são pacíficas. A chave que permite a comparação é a violência física, e não é a criminalidade entre a imigração, na sua maioria de gente que fala português, tementes a Deus, cujas igrejas evangélicas frequentam, ou nos portuguesinhos valentes que, à falta de touros para mostrarem os seus dotes de forcado, batem nas mulheres, e que nada tem a ver com a extrema-esquerda, que votam no Bolsonaro e no Chega, que serve de comparação.
    Onde é que se encontra o falso paralelo que alimenta o discurso dos dois lados? O que mais se aproxima é a Climáximo, que pratica actos de vandalismo e acções que são ilegais. O mais longe que vão é atirar tinta e que se saiba nunca participaram em qualquer coisa de parecido com matar pessoas porque têm outra cor, ou agredi-las, como aconteceu com o actor da Barraca. Numa escaramuça como as que aconteceram recentemente na Baixa de Lisboa há dois lados, mas não se compara o músculo de uns com os outros, nem vendo o que se passa há qualquer paralelo na provocação, na iniciativa, na violência. Se é por aqui que se vai, é o mesmo que comparar uma planta carnívora com um nenúfar.
    O rasto da violência crescente está na sociedade que estamos a criar com uma mistura de manipulação cultural, económica e social, e por fim política. É uma sociedade que, desde a adolescência à cada vez mais tardia idade adulta, vive numa ecologia de antagonismos, de pseudo-identidades alimentadas nas redes sociais pela ignorância e pela radicalização. Uma sociedade destas é fortemente movida pela culpabilização do “outro”, que nos confronta com a dificuldade de ter um território próprio, de ser reconhecido pelas nossas virtudes imaginárias, que queremos ter como um dote gratuito dos céus porque pomos uns vídeos de telemóvel engraçados na net, sem esforço, sem estudo, sem mérito.
    É uma sociedade que, desde a adolescência à cada vez mais tardia idade adulta, vive numa ecologia de antagonismos, de pseudo-identidades alimentadas nas redes sociais pela ignorância e pela radicalização
    O melhor paralelo para a sociedade que estamos a construir – para ganho de alguns, poder de outros, e vitimização dos mais fracos – é o clubismo das claques, cuja linguagem, simbologia e acção difere pouco do “nós” e “eles” do populismo, do “nós é que somos bons, nós os portugueses de gema” e não esses monhés, ou pretos, ou paneleiros, ou comunas, que pervertem a raça e que precisam de quem os ponham na ordem. Diz o tipo no café: “É o que eu faço todos os dias nas redes sociais, mas como sou fraquinho de corpo e não quero estragar a roupa, conheço lá uns tipos no ginásio que fazem parte de um grupo que veste de preto e anda de mota que, com algum incentivo e pagando-se-lhes uma cerveja, vão lá ensinar o que é Portugal àqueles que se dobram no chão a rezar – a quem, Manuel, diz-me tu, que não sei bem o nome do tipo? – a Alá, sim, a Alá.”
    All reactions:

    2

    1
    Like

    Comment
    Send
    Share
  • Edgar L. Wakeman pelos Açores

    Views: 0

    Uma subida e uma aurora no Pico
    Mais um capítulo das deambulações de Edgar L. Wakeman pelos Açores, em 1889. Este relata uma viagem de São Miguel ao grupo central, ao Faial, com passagem pela Terceira e por São Jorge, e a subida, pernoita e nascer do sol na montanha do Pico. Uma boa descrição, como habitualmente, com uma bonita descrição das mulheres do Pico, que até quando idosas «possuem aquela beleza luminosa que permanece com olhos de brilho perene.»
    Cá vai a tradução do capítulo, a que chamei «Ao topo do Pico»:
    Capítulo 5
    Ao topo do Pico
    Faial, Açores, 13 de Novembro de 1889. — Após uma viagem de quatro dias desde que saímos de São Miguel numa pequena embarcação costeira mercante portuguesa, durante a qual tocámos no porto de Angra, na ilha Terceira, e em Velas, na ilha de São Jorge, desembarquei finalmente na Horta, a capital da ilha do Faial, e imediatamente fiz preparativos para atravessar até à vizinha ilha do Pico, a cujo famoso e homónimo monte desejava ascender.
    A ilha açoriana da Terceira é assim chamada por ter sido a terceira na ordem de descoberta. Tem cerca de 180 milhas quadradas e uma população de quase 60 000 almas. Há lá poucas alturas montanhosas ou promontórios oceânicos de pitoresco impressionante, nenhum oferecendo vistas de grandiosidade cénica, mas no interior das suas 70 milhas de linha costeira há muitos nobres planaltos atingindo frequentemente elevações de 3 000 e 4 000 pés acima do nível do mar. A Terceira, contudo, goza de algumas distintas superioridades, do ponto de vista açoriano. Sempre foi a mais leal à coroa portuguesa. Nada menos que três soberanos portugueses fizeram desta ilha a sua residência temporária, e foram erguidos belos monumentos em testemunho disso. A capital, e principal porto, Angra, aloja a aristocracia dos Açores: os títulos nobiliárquicos são em Angra tão comuns como os burros. Além disso, as suas ruas são mais modernas; os seus edifícios públicos mais belos; a cal e as tintas são mais brancas, mais azuis, mais rosas ou mais amarelas do que em qualquer outro lugar dos Açores; e, para coroar tudo, a cidade é a única nas ilhas que se orgulha de possuir um recinto para a festa de touros, ou tourada.
    A ilha de São Jorge é um contraste completo, em muitos aspectos, com a Terceira. A sua área é talvez de 90 milhas quadradas e tem uma população de cerca de 19 000 almas. Topograficamente considerada, é a mais interessante de todo o arquipélago açoriano, com excepção, talvez, do Pico, que apenas a supera na altura extraordinária do seu único e tremendo monte. A sua linha costeira, de cerca de 20 ou 30 milhas, enfrenta a sudoeste tanto o Faial como o Pico, e é uma das muralhas marítimas mais impressionantes que alguma vez contemplei.
    Quem quer que, através do inconstante nevoeiro do Quoddy [estreito entre o Canadá e os EUA, no extremo nordeste do Maine, que tem a ilha de Grand Manan em frente], tenha entrevisto as promontórios escarpados setentrionais da sombria ilha de Grand Manan, ao largo da nossa costa do Maine mais a nordeste, poderá ter uma excelente ideia desta imponente massa de promontórios que, durante meio dia de navegação, se confronta a partir do Mar dos Açores. São mais imponente, mais vastas e incomparavelmente mais sombrias e estranhas que as escuras alturas do norte de Manan, pois acima das ondas, quase sem interrupção, há aqui alturas, quase precipícios, não de 300 ou 400, mas de 800 a 1500 pés. Velas, a principal cidade, ou melhor, um mero povoado, qual mendigo ao sol, jaz sob estas alturas. Por trás, vulcões não há muito tempo extintos e de cujas erupções destrutivas, que outrora quase aniquilaram o vizinho povoado da Urzelina, restam ainda evidências. Velas é antiquada, desolada, indolente. A sua catedral e o seu hospital são as duas únicas construções dignas de alguma nota; os ilhéus dedicam-se preguiçosamente à agricultura, à pesca e aos salvados dos naufrágios; e os camponeses, que são extremamente pitorescos no vestir e nos modos, são tão primitivos em todos os métodos de trabalho como o eram os mouros de Espanha e de Portugal, de quem se diz que os habitantes descendem, e a quem se assemelham fortemente nas feições.
    A Ilha do Pico, com uma área de 80 milhas quadradas e entre 25 e 28 000 habitantes, é a mais interessante dos Açores em dois aspectos particulares: o seu único e tremendo pico, de que a ilha deriva o nome, é a maior elevação que os marinheiros poderão alguma vez ver nas águas do Atlântico; e as suas mulheres são as mais belas que se podem encontrar em todas as costas atlânticas. O Pico, a montanha, ergue-se quase 8 000 pés acima do nível do mar. Do mar, pode ser avistado a uma distância de 75 milhas. A sua formação é vulcânica e presentemente é apenas um vulcão adormecido, pois a cratera no seu cume despeja constantemente correntes de ar de um calor tão intenso que, ao luar, ou em certas condições atmosféricas, ao amanhecer ou ao crepúsculo, uma chama pálida é facilmente visível a partir da costa oposta, no Faial. O Pico, a ilha, é a mais meridional do grupo central dos Açores, que inclui a Graciosa, São Jorge, a Terceira, o Faial e o Pico, e tem a forma de uma maça de malabarismo, com o cabo a leste e a cabeça maciça, com o seu agudo sílex de lava de 8 000 pés de altura, no extremo oeste.
    Separa-o do Faial apenas um estreito canal através do qual os pescadores e os barqueiros da Horta e da Madalena nos atravessam, a remos, em menos de meia hora. Nas suas meia dúzia de pequenas cidades e, talvez, duas vintenas de povoados, ver-se-ão mais belas mulheres do que as que se encontrariam num ano de comum observação na Europa. Até as velhas mulheres casadas e as anciãs possuem aquela beleza luminosa que permanece com olhos de brilho perene. As meninas e as senhoritas são fisicamente encantadoras para além de qualquer descrição. A jovem do Pico tem o pé delicadamente arqueado da mulher espanhola, e as suas saias curtas revelam membros com a mesma graciosidade e formosura. Se a sua esplêndida figura tem um defeito, está na sua falta de estatura, mas em quase todos os casos a compensação encontra-se na sua proporção perfeita. A sua tez é pálida e cremosa, sem rosado nas faces. A sua boca é grande, móvel e trémula. Os seus dentes, sem falha, e um entusiasta insistiria que os seus lábios são enlouquecedores. O cabelo, não negro como na maioria dos tipos do sul, é daquele castanho-névoa que se vê por vezes nas encostas das montanhas opostas ao sol. Mas a sua coroa de glória são os olhos fundentes, lânguidos, e porém faiscantes. A beleza do seu rosto não é maior em repouso. Então, se inconsciente de ser observada, e como com as mulheres de todos os países tropicais onde a inteligência escasseia, o seu rosto tem em si um traço do animal esplêndido; e um toque discernível de desamparo e pathos. Mas ponham-se as suas feições em jogo activo com um homem no outro extremo desse esforço, os seus grandes olhos escuros, sonhadores e radiantes, ardendo e fundido semi-ocultos sob longas pestanas escuras, o suave e flexível movimento contínuo de cada parte do seu corpo esplêndido — pois todas as suas faculdades mentais e físicas jogam em responsiva harmonia com a sua língua ou os seus olhos — e ter-se-á chegado perto de algo que faz ansiar pelos poderes de um artista. Dizem por aqui que as turistas americanas e inglesas chamam a estas encantadoras raparigas do Pico «criaturas perfeitamente horríveis». Sem dúvida. As raparigas do Pico perdoam-nas, pois, de algum modo, isso faz crescer nos maridos dessas difamadoras a sua furtiva admiração.
    À distância de São Jorge ou da Terceira, a montanha, o Pico, tem a aparência de um esgio cone negro emergindo do mar, as suas mais longínquas alturas truncadas aqui e acolá por brilhantes faixas brancas. Das alturas por trás da Horta, no Faial, se uma ocasional nuvem se interpuser, é de um fascínio prodigioso a sua aparência de incalculáveis altura e tamanho. Lá de baixo, da beira-mar, na Horta, parece que um precipício de altitude incomensurável se eleva ameaçadoramente sobre nós. Quanto mais se olha, mais portentosa esta aparência se torna, pois a montanha raramente se recorta nítida contra o céu, até que se é realmente tomado por um sentimento de apreensão, não vá aquela mais de uma milha de extensão invisível de lava endurecida estar prestes a desmoronar-se através do canal e a lançar a Ilha do Faial, numa massa polvorenta, ao mar. Observando-o de um barco enquanto se contornam as incomparavelmente pitorescas margens na sua base, não se imagina melhor maneira de a descrever, especialmente ao recordar que cada átomo de costa e de montanha foi expelido das profundezas em fogos vulcânicos, do que recorrendo à velha analogia com um vasto monte de cinzas de onde continuamente a escória de maiores dimensões rolou até às margens exteriores, entrando no mar, formando incessantemente uma base cada vez mais larga, enquanto a escória de peneira mais fina continuava a acumular-se, aumentando a altura do cone perfeito acima. Não há nada mais interessante do que estudar os afloramentos marítimos da base do Pico a partir de um barco aberto. Os promontórios do noroeste são extraordinários e impressionantes. De facto, a partir dos 200 a 300 pés acima da costa, imensas camadas ou estratos de lava escura mostram arestas tão limpas e direitas como as de uma muralha acabada de construir. Cada um dos estratos é evidência de uma distinta escoada de lava do vulcão acima. Em alguns lugares, chegam direitos até à beira da água, quais enormes lagos de alvenaria. Em alguns outros, estão esmigalhados e partidos, ou misturados como que por torrentes de lava. Para além de fenómenos como estes, há sempre também ásperos rochedos de lava emergindo do mar, nos locais onde as massas fundentes fervilharam, arrefecendo.
    Noutros locais, nos extensos trechos onde a costa sofreu a plena força do embate do Atlântico, estes escarpados estratos foram ao longo de centenas de pés de altura desgastados em arcos, esculpidos em pilares e moldados em contrafortes, até surgirem, como se uma fractura de terremoto os tivesse dividido e lançado uma parte deles para as profundezas, as mais curiosas e caprichosas representações de ruínas de vastos e outrora ocultos templos. E nem sequer são mais curiosas do que a vista, a partir do barco, das encostas do Pico, subindo desta base grandiosamente pitoresca quase até às nuvens. Aos nossos olhos, é como se toda a superfície da montanha estivesse coberta por uma rede de arrendados, nas suas cores próprias de lava; como se a superfície de um chapéu de burro preto tivesse sido finamente entrelaçada com delicados fios de renda Guipure [um tipo de renda, semelhante à de bilros]. Neste estranho entrelaçado existiram outrora as famosas vinhas do Pico. Não há um único átomo de substância que mereça o nome de solo vegetal desde a base até ao cume do Pico; porém, há anos, nestes miríades pequenos compartimentos murados que se elevam acima uns dos outros tal como as cadeiras num teatro, as videiras medravam tão viçosas e verdes entre pedras negras e escória que nenhuma vinha na Toscana produzia mais finas uvas ou proporcionava mais bonitas cenas. Chegaram a ser enviados 25 000 barris de vinho por ano para o Faial, para exportação. Mas a praga chegou, as videiras foram totalmente destruídas e assim, embora hoje se reviva um pouco o seu cultivo, durante um quarto de século os pequenos compartimentos secos de lava adicionaram escuridão e tristeza à esterilidade dos flancos da montanha.
    A pequena vila da Madalena, desembarcadouro da ilha, é um encantador e antigo ninho de preguiça e sonolência. Mas esta gente ilhoa é bela, radiante de boa disposição, e o simples facto de um estrangeiro vir ao Pico torna cada alma com quem ele contacta num esplêndido companheiro e amigo. Ou seja, pode-se organizar, por uma ninharia, guias e mantimentos para a subida da montanha. Estes guias usarão sandálias e terão muitos problemas com os pés. A maioria dos estrangeiros traz sapatos fortes, de sola grossa. Mas aprendi algo sobre o escalar de montanhas que todos os turistas deveriam saber.
    Esteja sempre equipado com um par de botas de fabrico honesto, cujos canos cheguem quase aos joelhos. Use-as por baixo das calças de caminhada. E tenha sempre as solas grossas bem cardadas com pregos de ferro. Talvez não consiga cabriolar como as pastoras de palco. Mas conseguirá avançar penosa e discretamente, bem como alcançar o destino que escolheu, enquanto os seus demasiado refinados companheiros e os seus pitorescos guias ficam para trás, coxeando de dor, ou demorando-se nas nuvens mais abaixo, enquanto removem pedaços de glaciares enfiados sob os seus calcanhares ou cinzas vulcânicas afiadas como facas de entre os seus ensanguentados dedos dos pés. Era este o estado dos meus guias mesmo antes de completarmos cinco horas de escalada, e fomos obrigados a parar ao meio-dia, a uma altitude não superior a 5 000 pés.
    Aqui nos demorámos três horas, sem um único vislumbre da paisagem. Uma nuvem leve como névoa parecia envolver toda a montanha. Mas seguimos em frente, após muita insistência com os meus guias, tendo-lhes revelado a minha determinação de alcançar o cume e de ali pernoitar. Cada passo era agora inseguro; não perigoso, mas sobre escória semelhante a púmice e sobre áspera cinza vulcânica, um solo que se quebrava alarmantemente sob os nossos pés. Caindo frequentemente neste solo, ou tropeçando ainda mais frequentemente na atrofiada queiró, chegámos finalmente ao cume. Nada se via além de uma faixa de cinzas à nossa direita e à nossa esquerda, e, como a névoa ainda nos envolvia, via-se também aquilo que parecia ser a superfície plana de uma imensurável vastidão aos nossos pés. O ar quente subia sufocante diante de nós. A névoa húmida rodopiava melancólica atrás de nós. Mal tivemos tempo de apalpar as redondezas e de procurar uma cavidade junto à quente orla externa da cratera, de nos prepararmos apressadamente para a noite e de mastigar um pouco de comida das nossas mochilas, quando a palpável escuridão caiu sobre nós, como o bater de uma majestosa asa. Os meus guias não se atreveram a mover-se, devido aos seus temores supersticiosos. Ao fim de cinco minutos eu dormia como nunca tão profundamente dormira. Tanto quanto sei, foi uma noite tão confortável, ali, mesmo no topo da agulha do Pico, quanto antes de Vicksburg, em ’63 [cerco de Vicksburg, durante a Guerra Civil Americana, em 1863, na qual o autor participou], ou nas florestas flamejantes de morte de Chatahoochie, em ’64 [raides realizados durante o cerco de Atlanta por Sherman, durante a Guerra Civil Americana].
    Quando acordei, as estrelas, brilhando com aqueles maravilhosos fulgores e pulsações das estrelas dos céus tropicais, fitavam-me directamente nos olhos. Por um instante houve uma quietude tão profunda quanto os silêncios eternos. Esta quietude foi quebrada por dois tremendos roncos. Os meus guias estavam agora a salvo das bruxas e dos feiticeiros do Pico. Assim deitado, atingiu-me uma estranha sensação de isolamento, de solidão, de insegurança, de perigo. A sensação intensificou-se num verdadeiro pavor devido a uma singular tremura do próprio leito de lava onde repousava. Sente-se algo semelhante no topo de altos pináculos. Cheguei a perguntar-me se, ao levantar-me, não poderia, pela pura fascinação de tudo aquilo, rodopiar e mergulhar 8 000 pés dali abaixo, até ao canal do Faial. Uma multidão de devaneios fantasiosos como este tomou conta de mim até que um escurecimento das estrelas, um desvanecer e empalidecer do seu brilho, desviou os meus pensamentos. Pareceram então desaparecer, uma por uma. O negro do seu fundo matizou-se num vaporoso cinzento; depois, num lavanda perlado; finalmente, num azul-esverdeado do Nilo. Sim, era a gloriosa aurora! Levantei-me mesmo antes dos vermelhões surgirem a leste, quando ainda podia ver, acima do horizonte ocidental, as estrelas por empalidecer, tal a altura a que me encontrava. A meus pés, a vasta cratera de quase 2 000 pés de circunferência, as suas paredes em alguns pontos entre 200 e 300 pés de altura, enquanto das fendas escuras do seu chão perfeitamente plano o vapor e o fumo do vulcão adormecido rodopiavam tão pacificamente como de chaminés rurais no inverno.
    Não se consegue ter noção do tempo quando se é o único ser pensante na posse de tal altura e de tal cenário; mas, por fim, dissipou-se o medonho fascínio da cratera do Pico e voltei-me para o mais grandioso ciclorama que os meus olhos jamais contemplaram. Mar e horizonte fundiam-se excepto onde o sol, como um majestoso globo de fogo, lançava ao zénite os seus gloriosos pigmentos e estendia sobre o mar, até à orla da ilha, uma inundação de trémulo carmesim. A nordeste e a norte erguiam-se a Terceira, São Jorge e, ao longe e desvanecida num engaste de ónix avermelhado, a bela Graciosa, numa orla espumosa de pérolas reluzentes; entretanto, o verde suave das alturas suavemente delineadas do Faial, aparentando estar tão próximas que se poderia responder aos flauteios dos cabreiros nas suas colinas, não era interrompido senão onde as casas colunadas da Horta brilhavam em fantasmagórico branco através dos discos ocidentais das suas encantadoras e circulares margens. A exultação, a euforia, a glória que nutre a alma, geradas por tais alturas e por tal cenário, não são suportáveis durante muito tempo por quem não sabe voar. Despertei os meus guias. Corremos pela encosta da montanha abaixo. Uma hora passada e almoçávamos num vale elevado, numa choupana de pastor, e ao meio-dia estávamos entre os pescadores e as lavadeiras da Madalena, junto ao mar.
    Publicado pelo menos em:
    – 1889-12-14 – Daily Morning Patriot, p. 1
    – 1889-12-14 – Morning Journal and Courier, p. 1
    – 1889-12-14 – The Daily Inter Ocean, p. 16
    – 1889-12-14 – The Daily New Era, p. 3
    – 1889-12-14 – The Pittsburg Dispatch (2nd part), p. 9
    – 1889-12-15 – The Cleveland Leader and Morning Herald, p. 17
    – 1889-12-15 – The Evansville Courier, p. 1
    – 1889-12-15 – The Knoxville Journal, p. 1
    – 1889-12-15 – The Meriden Sunday Journal, p. 5
    – 1890-02-27 – Miami Union, p. 1
    [A imagem reproduz uma aguarela de 1905 de Cass Gilbert: «Mt. Pico, Azores Islands».]
    No photo description available.
    All reactions:

    4

  • GENE HACKMAN A MORTE E A SOLIDÃO

    Views: 0

    “O que morre primeiro? O homem ou o mundo ao redor?
    Gene Hackman morreu antes de seu coração parar de bater.
    Teve fome. Teve sede.…

    See more
    May be an image of 1 person
    O que morre primeiro? O homem ou o mundo ao redor?
    Gene Hackman morreu antes de seu coração parar de bater.
    Teve fome. Teve sede.
    E ninguém veio.
    E então Gene Hackman, o grande Gene Hackman, morreu. Não de doença, não de fome. Morreu de esquecimento. Qual a verdadeira morte? A do último suspiro ou a do instante em que ninguém percebe a sua falta?
    Gene Hackman morreu sozinho. Um dia, todos nós estaremos solitários no momento do encontro com o nosso destino final. É inevitável. Mas para Gene a morte chegou de um jeito mais lento, mais esquecido e doloroso. Ninguém bateu à porta. Nenhum amigo ligou. Nenhum familiar estranhou a ausência.
    Betsy, sua esposa, morreu primeiro. Hantavírus. Uma doença rara, transmitida pelo pó das fezes de roedores. Pouco antes ela foi à farmácia e levou o cãozinho ao veterinário. Não sabia que aquelas eram suas horas finais, que seria abatida por algo mortal carregado pela poeira invisível, das coisas que existem e não se veem. Um dia ela estava ali, no outro não. Talvez tenha passado a manhã dobrando roupas. Talvez tenha planejado o jantar. E então veio a febre, o cansaço, o nada. De repente, o fim. Fulminante, sem aviso, sem tempo para despedidas e providências.
    Gene ficou sozinho, sem entender. Por sete longos dias, perambulou pela casa sem saber o que fazer, sem lembrar como agir. Aos 95 anos, o Alzheimer já havia apagado parte de sua memória e a capacidade de pedir ajuda. Talvez tenha, no fundo da mente, sentido o vazio. Talvez tenha chamado por Betsy. Mas isso não se soube ou saberá, porque ninguém estava lá.
    Ninguém veio.
    O que acontece quando um homem se torna invisível?
    Gene Hackman foi um dos maiores atores de Hollywood. Um ícone. O rosto duro, a voz grave, o talento bruto. Interpretou presidentes, assassinos, heróis. Foi duas vezes vencedor do Oscar, amado pelo público, respeitado pelos colegas. No auge da carreira, era forte, imbatível, voz que não tremia. Mas o que isso significa quando se tem 95 anos e se está sozinho e desamparado em casa? Quando a memória se apagou, o corpo está fragilizado e os amados ausentes?
    A fama é um engano que o tempo desfaz.
    O que resta quando o telefone para de tocar? Quando as pessoas presumem que você não quer ser incomodado? Quando a casa grande e confortável se torna um território de esquecimento?
    De que vale um nome célebre quando se está idoso, doente e só?
    A solidão não chega de repente. Ela começa no dia em que ninguém mais pergunta como você está. No dia em que as pessoas supoem que você já tem tudo, que está bem. O esquecimento vem devagar. Constrói-se aos poucos, como uma casa onde ninguém entra.
    Gene – que não se dava ares de celebridade – buscou se distanciar de Hollywood. Escolheu o isolamento, apostou que a esposa, trinta anos mais jovem, o assistiria até o final. Acreditou que não precisava de um cuidador, enfermeiro ou outros empregados. Porém, o que durante muito tempo foi bênção, converteu-se em armadilha. A casa grande ficou menor. O silêncio ficou maior. A porta ficou fechada.
    Ninguém bateu.
    E o homem um dia visto por milhões, partiu sem que ninguém olhasse.
    A solidão dos que vivem muito por vezes me assusta. A velhice é um país estrangeiro e inóspito. Ninguém quer visitá-lo sem garantias e medidas de segurança, mas poucos são os que ousam pensar no que acontecerá quando os dias se tornarem longos demais e as noites silenciosas em excesso. Raros são os que tomam decisões conscientes para que a vida não se dissolva quando não houver mais reuniões de trabalho, estreias, jantares com amigos, idas ao cinema.
    Recolho em mim cada lição dessa tragédia: morrer é um caminho sem testemunhas; a fama, uma ilusão que se desmancha na poeira; o sucesso, um eco que não se sustenta; e escolhas para a velhice devem considerar vários cenários, pois a vida é mutável e imprevisível. Ela nos surpreende em uma esquina qualquer, com a sua maleta transbordante de espantos.
    No fim, somos casas sem luz se não há quem bata à porta.
    All reactions:

    12

  • Das Sete Cidades às belezas das Furnas, passando pela Ribeira Grande Mais um capítulo das deambulações de Edgar L. Wakeman pelos Açores,

    Views: 0

    Das Sete Cidades às belezas das Furnas, passando pela Ribeira Grande
    Mais um capítulo das deambulações de Edgar L. Wakeman pelos Açores, em 1889. Este relata uma excursão às Furnas, partindo do acampamento dos carvoeiros nos altos das Sete Cidades, e passando pela Ribeira Grande. A descrição é muito bonita e poética, e escrita com frases tão longas que ocasionalmente tive de as partir, de modo a facilitar a leitura. Espero que gostem.
    Cá vai a tradução do capítulo, a que chamei «Excursão às Furnas»:
    Capítulo 4
    Excursão às Furnas
    Furnas, São Miguel, Açores, 5 de Novembro de 1889. — Fomos recebidos com grandes manifestações de deleite pelos carvoeiros de cujos antepassados a hospitalidade se tinha revelado tão reconfortante para o Rip van Winkle açoriano, Dobrado Madraço, que ainda hoje ele não acordou do seu sono de dois séculos. Os nossos burros foram amarrados e tratados. Água para lavagens foi trazida, em enormes cântaros, de uma fresca represa [«represado», no original; presume-se que uma represa]. Vinho barato, aguardente e tabaco em extraordinárias quantidades foram fornecidos. Rapazes e meninas estranhos, de olhos grandes e seminus, para cujas consciências simples os estrangeiros eram como maravilha e sonho, reuniram-se à nossa volta, olharam, espantaram-se e, com explosões cristalinas de riso, fugiram em direcção às suas mães ou aos bosques para se recomporem. Um jantar de tais proporções, variedade e grotesco foi fornecido como nunca antes saudou olhos de homem civilizado. Despois, durante a longa noite, estes meio selvagens homens e mulheres queimadores de carvão das montanhas — as mulheres ágeis, formosas e musculosas desenterrando para a ocasião muitos enfeites e adornos de recantos inesperados de choupanas antigas e sombrias — dançaram connosco e para nós sobre um surrento chão, polido pelo uso, tão hilariantes sapateados, tão exóticos bailes e tão grotescos fandangos, que nenhuma pena fervorosa poderia descrever, nem nenhum indulgente moralista se disporia a aprovar. Era de facto uma cena cigana, faltando apenas as tendas de capuz e as carroças agrupadas em círculo. Aqui e ali as fogueiras de carvão ardiam como ardem as fogueiras dos ciganos, nós de criptoméria ardiam e tremeluziam no topo de enormes varas ou sobre candeias presas a árvores sobranceiras; vintenas de formas morenas giravam à meia luz e nas sombras; e as estrelas brilhantes, pulsando nos seus fogos semi-tropicais, tremeluziam acima através das estranhas plumas escuras da luxuriante verdura.
    Partimos do acampamento dos carvoeiros muito cedo na manhã seguinte. Ao descermos as montanhas em direção à costa, desviámo-nos durante algum tempo do nosso caminho, o que nos proporcionou uma agradável experiência de floresta profunda. De repente, encontrámo-nos numa densa floresta de criptomérias quebrada aqui e ali por saliências abruptas de rocha de lava ao longo de cujos lados e sobre cujas alturas uma riqueza indescritível de fetos corria em bancos de plumas ondulantes. Nas bases e dos lados de cada massa de rocha, inúmeras fontes naturais ondulavam e jorravam, e, destas, pequenos riachos saltavam e cantavam, com surpreendente melodia, em direcção aos vales abaixo. Até onde penetrámos, a cobertura da terra por baixo das criptomérias era como um tapete de púrpura aveludado. Os cascos dos nossos burros mal se ouviam. Para cima, para cima, para cima, 30, 50, às vezes 80 pés, rectos como flechas, disparavam os troncos castanho-avermelhados das criptomérias. Os arcos entrelaçavam-se e a verdura crescia tão densamente que o céu se ocultava. De vez em quando, naquela alta renda de ramos e sombras, pequenos salpicos de luz açafroada pareciam flutuar tremulamente. Nesta renda, para nosso deleite, que orquestras de pássaros davam as boas-vindas ao radiante dia! Inúmeros dos famosos canários verdes e dos quase tão maravilhosos melros açorianos, cantores, rivalizavam cantando os seus madrigais. E o mais notável de tudo isto era a aparente regularidade de alternância nas suas maravilhosas melodias. Durante algum tempo, os melros tudo possuiam. A seguir, apenas se ouviam as notas dos canários. Depois, como se para se tentarem superar entre si ou aos verdadeiramente orquestrais efeitos dos riachos abaixo, misturavam ambos os seus estridentes agudos e suaves contraltos num diapasão sustentado e arrebatador de canção em voz de pássaro. O velho Manuel, o guia, observou o meu encantamento durante algum tempo em digno silêncio e, finalmente, com um grave aceno da cabeça, observou:
    — Ah, sim, tal como as mulheres, belas à vista ou ao ouvido, mas tristes pragas, às vezes. Quando cantam tão docemente, nós ilhéus sabemos que é porque as suas colheitas estão cheias e as nossas provisões nos campos foram devastadas. Nessas alturas, o nosso Governo dá 20 réis por cada dúzia de bicos de canário ou melro. Se o Mateito e eu pudéssemos levar a Ponta Delgada os bicos de todos os que agora cantam lá em cima, cada um de nós poderia tornar-se dono de uma quinta, tal como os ricos da cidade!
    O Mateito ficou tão excitado com esta visão repentina de riqueza que começou a fustigar os nossos burros, fazendo-o de uma forma tão feroz que os animais, por iniciativa própria, regressaram ao caminho do qual nos tínhamos desviado. Durante toda a descida em direcção às povoações costeiras do norte manteve-se um ritmo tão rápido que, quando chegámos à bela vila da Ribeira Grande, demos por muito bem-vindo um breve descanso numa velha estalagem pitoresca. O proprietário era um conhecido do Manuel, o que levou a que nos fossem servidas tais provisões de comida e tais garrafões de vinho nativo, que nos criaram noções maravilhosas acerca dos recursos da natureza e dos cozinheiros açorianos. O gordo e velho estalajadeiro não permitia que nenhuma mão que não a sua preparasse a comida. Assim, sentámo-nos e conversámos, esperando esfomeados na cozinha fumarenta. Finalmente serviram- nos aves grelhadas, pão de milho, batatas-doces assadas, manteiga e leite dos mais doces, um queijo nativo picante, como o Brie dos franceses, tudo realmente delicioso, bem como o café mais preto e repugnante que alguma vez se provou fora da cabina suja de um veleiro americano. O proprietário ficou a nosso lado enquanto comíamos, ora servindo-nos, num ridículo alerta, os diferentes artigos de comida, ora limpando, com o seu grande avental de linho, o fumo e a transpiração do seu rosto afogueado, ora de novo bebendo à nossa saúde e a «uma viagem protegida pelos céus», numa exuberância de hospitalidade, servindo-se do vinho por nós próprios comprado. Depois, o personagem ponderoso e pançudo correu durante uma boa milha ao longo das ruas da Ribeira Grande, ao lado dos nossos burros, soprando orações e súplicas pela nossa segurança. Não desistiu sem que os subúrbios fossem alcançados e já não conseguisse chamar a atenção de mais nenhum dos seus bons conterrâneos para a importância dos hóspedes que havia recebido naquele dia. Quando nos voltámos e começámos a subir o caminho da montanha, o nosso último vislumbre do curioso Bonifácio deparou-se com ele sentado, a resfolegar, à beira de uma agradável fonte, presa das atenções dos muleteiros jocosos, enquanto abanava o seu rosto vermelho e rubicundo com o majestoso avental de linho com que nos havia servido.
    A nossa sorte quanto a hospitalidades de estrada foi naquela noite menos untuosa. Não conseguindo atingir as Furnas e o seu encantador vale, a nossa ânsia por alojamento foi finalmente aliviada quando os nossos sábios burros subitamente aguçaram as orelhas e, sem consideração por nós, se lançaram a grande velocidade e não abrandaram senão quando chegámos ao lado de uma solitária estalagem de beira de estrada. Fomos alegremente recebidos por um sujeito corpulento, de aspecto rude, armado e equipado como que para a guerra. A estrutura era um edifício de pedra comprido, baixo e de um só piso, pintado de um amarelo curioso, com um alpendre de metade do seu tamanho sob o qual havia bebedouros e baias abertas para animais. O interior era simplesmente uma grande divisão, escurecida e encardida com a imundície de gerações. Meia dúzia de pesadas mesas de madeira espalhavam-se por aqui e por ali, ladeadas por bancos corridos, grandes como mamutes, e por algumas pedras talhadas na forma de assentos. Uma tábua robusta, atrás da qual havia garrafas com os licores açorianos mais vis, constituía o balcão, numa de cujas extremidades se encontrava uma pele completa de javali plena de vinho, a sua boca aberta sugerindo todos os tipos de ferozes possibilidades. Ao longo dos baixos caibros havia inúmeras cavilhas das quais pendiam entrançados de inomináveis e pungentes vegetais, réstias de cebolas, pedaços de presunto e tiras de tassalho [assim, no original; i.e., toucinho ou carne seca]. Após várias horas de espera, um jantar — preparado pela mulher do estalajadeiro sobre um fogareiro a carvão à volta do qual ela parecia estar em permanente e estridente confronto com uma colecção de cabras, cães, galos de combate e crianças seminuas — foi servido. Consistia num ensopado misto açoriano ou «composto de várias viandas» — carne, sêmola, vegetais e peixe — que nos alegrámos a comer com ajuda de garfos e colheres de chifre. Não nos deram nenhuma dica sobre onde iríamos dormir; por isso, perto da meia-noite, o Manuel e o Mateito procuraram e lutaram até conseguirem que uma porção de queiró fosse cedida e colocada sobre os bancos agrupados. Com isto, e as nossas selas, bornais, cangalhas e algumas esteiras de junco, desafiámos durante o resto da noite, em sono leve e pacífico, cabras, galinhas e pulgas.
    Não havia razão para nos demorarmos na velha e solitária estalagem de montanha, por isso escapámos da sobrelotada cabana antes do amanhecer. Um passeio rápido por uma estrada agradável, com aglomerados de choupanas de camponeses a brilhar aqui e ali ao longo dos pequenos vales ou das bonitas encostas nas terras altas, com de vez em quando um momento de pausa em fontes à beira da estrada ou em pontes com arcos de pedra onde cascatas em espuma corriam através de encantadoras grotas até ao oceano invisível abaixo, levou-nos ao planalto superior de uma cordilheira circular com quase 3.000 pés de altura. O sol varria o limite oriental destas nobres elevações quando, de repente, ao darmos a volta ao pico agudo de uma colina rochosa que se debruçava sobre a estrada, o grande ciclorama circular do famoso Vale das Furnas se abriu por completo diante de nós.
    [Um ciclorama é uma «pintura de grandes dimensões feita em superfície côncava ou circular, de tal modo que, a uma distância calculada, cria no observador a ilusão ótica de perspetiva natural». – Infopédia, Porto Editora]
    Do alto onde nos encontrávamos, o vale parecia ser oval, com seis a nove milhas de comprimento e duas a quatro de largura. As montanhas que o rodeiam elevam-se entre os 2 000 e os 8 000 pés acima do nível do mar. As suas bordas serrilhadas são interrompidas aqui e ali por vales menores de maravilhosa simetria, por cortes naturais na lava por onde serpenteiam estradas que rivalizam com as romanas de outrora, por gargantas e desfiladeiros precipitosos salpicados de cascatas veladas de névoa, e por depressões e cavidades onde, da nossa altitude, podíamos vislumbrar reflexos das superfícies reluzentes de lagos silenciosos e de lagoas sombrias. Inúmeras ribeiras, como linhas sinuosas de pérolas, misturam-se, cruzam-se, separam-se e serpenteiam caprichosamente ao longo dos níveis mais baixos. As alturas púrpuras de queiró fundem-se nas massas de verde onde criptomérias se erguem, densas, passando a um verde mais escuro sobre os aglomerados de loureiros, e desvanecendo-se em azul, dourado ou púrpura consoante a luz e a sombra brincam sobre os líquenes entretecidos das encostas mais selvagens e íngremes. De onde estávamos, contávamos meia centena de choupanas de camponeses e o seu dobro em caminhos de cabras, quais delicadas fitas cor-de-rosa. Canadas, entre velhos muros azuis ou cinzentos meio encobertos sob massas de videiras, entrelaçavam todo o vale e as encostas das montanhas, ou perdiam-se nos tons azuis dos vales altos, até toda a superfície da cena parecer traçada e entretecida como as linhas de um diminuto mapa de um qualquer populoso continente.
    Lá em baixo, lá bem em baixo, estavam as paredes brancas, os telhados vermelhos, a singular cúpula de igreja e as longas e tortuosas ruas da mais pitoresca das antigas povoações dos Açores. Passando por nós na estrada onde estávamos, escorrendo das montanhas à nossa direita e à nossa esquerda, e pelos declives dos vales opostos, vinham pequenos rebanhos de cabras, brancas como leite. De cada uma delas pendia um pequeno chocalho com um diferente tom. As cabradas iam levadas para a ordenha diária na povoação. Cabreiros descalços, atrás, tocavam as suas agudas flautas. Dos arvoredos e dos bardos, os melros e os canários, como que inflamados por uma rivalidade exaltada, superavam-se lançando erupções de canto — centenas e centenas de cristalinos sinos, vintenas e vintenas de alegres flautas, milhares e milhares de vozes de pássaros, misturando-se, ressoando, crescendo na melodia mais estranha, mais doce e contudo mais tremulamente terna que ouvidos humanos jamais ouviram! E, no entanto, é assim que o amanhecer é anunciado todos os dias do ano neste prodigioso vale das Furnas.
    Até agora, o vale silencioso dormia. Mas veja-se a resposta pitoresca a esta maravilhosa canção matinal. Emergindo das vielas sombrias do sereno aglomerado aos nossos pés, das quintas ou das vilas dos domínios opulentos das suaves encostas mais próximas, ou, perto e longe, de bonitas camarazinhas [assim, em português, no original] envoltas em arqueadas videiras ou árvores, surgem, quais vestais indo servir perante a sacerdotisa do dia, uma centena de donzelas das Furnas. Cada uma delas chilreia ou entoa a sua cantiga [em português no original] preferida e traz, sobre a cabeça formosa, um cântaro vermelho vivo. As suas saias são azuis, o seu corpete é branco, ou rosa, ou amarelo. Os seus pés, e os seus braços e a sua cabeça estão descobertos. A sua figura é helénica. Os seus olhos são profundos e lânguidos, mas líquidos de luz. O sol, acolá, passando acima do vetusto Pico da Vara, nunca pintou um vermelhão como o que tinge as suas faces, nem um carmesim como o que se abre entre os seus reluzentes dentes. Assim, cantando em resposta aos rebanhos, aos pássaros e à manhã, estas encantadoras aguadeiras calcorreiam os caminhos em direcção às fontes, entretecendo na cena idílica pedaços de som, cor e vida que nos conquistam por inteiro o coração.
    Quanto tempo nos deleitámos com a cena eu não sei, mas ela tocou e emocionou até as veias túrgidas do meu velho e grisalho guia. Quebrou o silêncio com um suspiro. Depois, colocando as mãos enrugadas sobre o coração e revirando os olhos para o céu, elevou a sua voz quebrada e nasal numa canção tão melancólica que os burros, inquietos, zurraram em resposta um miserere empático:
    «Este vale é minha terra,
    É minha terra natal;
    Mas em belezas que encerra,
    No mundo não tem rival!
    Esta é a canção que sai de todos os corações dos camponeses das Furnas perante o seu encantador e amado vale. Mas a fama das Furnas provém de mais do que as suas belezas. O hoje nobre vale foi outrora a cratera de um vasto vulcão. Forças ocultas revelam a sua proximidade por meio de jorros incessantes de águas termais. Em dezenas de cavidades mais baixas, em fissuras nas encostas das montanhas, em fontes e lagoas, em charcos e ao longo de riachos, há gorgolejos, fervuras, sibilos e pulsações contínuos vindos de reservatórios subterrâneos carregados de fogo. Em muitos lugares, o calor da terra impede que se caminhe sobre ela. Em alguns, os camponeses cozinham a sua comida nos caldeiros da natureza. Por toda a parte há tremores e murmúrios violentos, enquanto no interior de muitos dos géiseres os batimentos e as pancadas, como se fossem golpes de pistões de enormes motores, transmitem ao forasteiro uma sensação incontrolável do terrível.
    Há centenas de anos, eremitas do continente descobriram este lugar e, através das águas medicinais, aqui realizaram milagres. Depois vieram os jesuítas. Tomaram posse de todo o vale e plantaram pomares de laranjas e campos de inhame. Quando esta ordem foi expulsa, há pouco mais de 100 anos [1759], os camponeses açorianos sucederam-lhe. Quase todos possuem as suas pequenas herdades [em português, no original]; mas há uma sonolência no lugar que reprime a energia. Vivem vidas idílicas enquanto camponeses. As suas necessidades são poucas. A terra é generosa. Todos são simples, honestos, satisfeitos. Mal conhecem a velhice. Algumas das condições que tornam isto possível — o clima, as águas termais, a beleza langorosa das imediações e a paz do local — fazem dele um lugar maravilhoso para os enfermos. Primeiro vieram alguns de Lisboa. Depois, começou a chegar a aristocracia da ilha. Finalmente, um inglês ou um americano aventureiro penetrou nas montanhas de São Miguel. E assim o mundo começou a conhecer o Vale das Furnas, e deu-lhe fama. Quando os nossos compatriotas puderem aqui chegar tão facilmente quanto chegam a Londres, muita da sua beleza tranquila desaparecerá, mas nascerá então aqui uma nova e maior Baden Baden. O clima assim o determinará. Varia entre 75° (24° C) no verão e 52° (11 C) no inverno.
    Uns magníficos banhos, para onde as várias águas termais e minerais são conduzidas, foram construídos; e aqui podemos banhar-nos para sempre e de graça! Isto é a coisa mais notável dos Açores. O custo de vida é tão baixo que envergonha procurar um equivalente; tem-se verão no inverno; primavera no verão, e as delícias da vida tropical nas verduras e nas frutas do ano inteiro; enquanto aquilo que em toda a Europa do Sul tanto encanta o viajante pelo pitoresco da vida e dos costumes camponeses, não consegue superar o que a qualquer momento se pode ver e sentir a partir da nossa antiga varanda pitoresca das Furnas; pois
    * «em belezas que encerra,
    No mundo não tem rival!»
    Publicado pelo menos em:
    – 1889-12-07 – The Daily Inter Ocean, p. 11
    – 1889-12-07 – The Daily New Era, p. 6
    – 1889-12-07 – The Pittsburg Dispatch (2nd part), p. 9
    – 1889-12-08 – The Daily Picayune, p. 18
    – 1889-12-08 – The Evansville Courier, p. 1
    – 1889-12-08 – The Knoxville Journal, p. 1
    – 1889-12-08 – The Meriden Sunday Journal, p. 5
    – 1889-12-11 – The Scranton Republican, p. 6
    – 1889-12-18 – The Scranton Weekly Republican, p. 2
    All reactions:
  • antigos-combatentes-discriminados-nos-acores.

    Views: 0

    Antigos Combatentes Discriminados Nos Açores