Categoria: Historia religião teologia filosofia

  • Edgar L. Wakeman pelos Açores

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    Uma subida e uma aurora no Pico
    Mais um capítulo das deambulações de Edgar L. Wakeman pelos Açores, em 1889. Este relata uma viagem de São Miguel ao grupo central, ao Faial, com passagem pela Terceira e por São Jorge, e a subida, pernoita e nascer do sol na montanha do Pico. Uma boa descrição, como habitualmente, com uma bonita descrição das mulheres do Pico, que até quando idosas «possuem aquela beleza luminosa que permanece com olhos de brilho perene.»
    Cá vai a tradução do capítulo, a que chamei «Ao topo do Pico»:
    Capítulo 5
    Ao topo do Pico
    Faial, Açores, 13 de Novembro de 1889. — Após uma viagem de quatro dias desde que saímos de São Miguel numa pequena embarcação costeira mercante portuguesa, durante a qual tocámos no porto de Angra, na ilha Terceira, e em Velas, na ilha de São Jorge, desembarquei finalmente na Horta, a capital da ilha do Faial, e imediatamente fiz preparativos para atravessar até à vizinha ilha do Pico, a cujo famoso e homónimo monte desejava ascender.
    A ilha açoriana da Terceira é assim chamada por ter sido a terceira na ordem de descoberta. Tem cerca de 180 milhas quadradas e uma população de quase 60 000 almas. Há lá poucas alturas montanhosas ou promontórios oceânicos de pitoresco impressionante, nenhum oferecendo vistas de grandiosidade cénica, mas no interior das suas 70 milhas de linha costeira há muitos nobres planaltos atingindo frequentemente elevações de 3 000 e 4 000 pés acima do nível do mar. A Terceira, contudo, goza de algumas distintas superioridades, do ponto de vista açoriano. Sempre foi a mais leal à coroa portuguesa. Nada menos que três soberanos portugueses fizeram desta ilha a sua residência temporária, e foram erguidos belos monumentos em testemunho disso. A capital, e principal porto, Angra, aloja a aristocracia dos Açores: os títulos nobiliárquicos são em Angra tão comuns como os burros. Além disso, as suas ruas são mais modernas; os seus edifícios públicos mais belos; a cal e as tintas são mais brancas, mais azuis, mais rosas ou mais amarelas do que em qualquer outro lugar dos Açores; e, para coroar tudo, a cidade é a única nas ilhas que se orgulha de possuir um recinto para a festa de touros, ou tourada.
    A ilha de São Jorge é um contraste completo, em muitos aspectos, com a Terceira. A sua área é talvez de 90 milhas quadradas e tem uma população de cerca de 19 000 almas. Topograficamente considerada, é a mais interessante de todo o arquipélago açoriano, com excepção, talvez, do Pico, que apenas a supera na altura extraordinária do seu único e tremendo monte. A sua linha costeira, de cerca de 20 ou 30 milhas, enfrenta a sudoeste tanto o Faial como o Pico, e é uma das muralhas marítimas mais impressionantes que alguma vez contemplei.
    Quem quer que, através do inconstante nevoeiro do Quoddy [estreito entre o Canadá e os EUA, no extremo nordeste do Maine, que tem a ilha de Grand Manan em frente], tenha entrevisto as promontórios escarpados setentrionais da sombria ilha de Grand Manan, ao largo da nossa costa do Maine mais a nordeste, poderá ter uma excelente ideia desta imponente massa de promontórios que, durante meio dia de navegação, se confronta a partir do Mar dos Açores. São mais imponente, mais vastas e incomparavelmente mais sombrias e estranhas que as escuras alturas do norte de Manan, pois acima das ondas, quase sem interrupção, há aqui alturas, quase precipícios, não de 300 ou 400, mas de 800 a 1500 pés. Velas, a principal cidade, ou melhor, um mero povoado, qual mendigo ao sol, jaz sob estas alturas. Por trás, vulcões não há muito tempo extintos e de cujas erupções destrutivas, que outrora quase aniquilaram o vizinho povoado da Urzelina, restam ainda evidências. Velas é antiquada, desolada, indolente. A sua catedral e o seu hospital são as duas únicas construções dignas de alguma nota; os ilhéus dedicam-se preguiçosamente à agricultura, à pesca e aos salvados dos naufrágios; e os camponeses, que são extremamente pitorescos no vestir e nos modos, são tão primitivos em todos os métodos de trabalho como o eram os mouros de Espanha e de Portugal, de quem se diz que os habitantes descendem, e a quem se assemelham fortemente nas feições.
    A Ilha do Pico, com uma área de 80 milhas quadradas e entre 25 e 28 000 habitantes, é a mais interessante dos Açores em dois aspectos particulares: o seu único e tremendo pico, de que a ilha deriva o nome, é a maior elevação que os marinheiros poderão alguma vez ver nas águas do Atlântico; e as suas mulheres são as mais belas que se podem encontrar em todas as costas atlânticas. O Pico, a montanha, ergue-se quase 8 000 pés acima do nível do mar. Do mar, pode ser avistado a uma distância de 75 milhas. A sua formação é vulcânica e presentemente é apenas um vulcão adormecido, pois a cratera no seu cume despeja constantemente correntes de ar de um calor tão intenso que, ao luar, ou em certas condições atmosféricas, ao amanhecer ou ao crepúsculo, uma chama pálida é facilmente visível a partir da costa oposta, no Faial. O Pico, a ilha, é a mais meridional do grupo central dos Açores, que inclui a Graciosa, São Jorge, a Terceira, o Faial e o Pico, e tem a forma de uma maça de malabarismo, com o cabo a leste e a cabeça maciça, com o seu agudo sílex de lava de 8 000 pés de altura, no extremo oeste.
    Separa-o do Faial apenas um estreito canal através do qual os pescadores e os barqueiros da Horta e da Madalena nos atravessam, a remos, em menos de meia hora. Nas suas meia dúzia de pequenas cidades e, talvez, duas vintenas de povoados, ver-se-ão mais belas mulheres do que as que se encontrariam num ano de comum observação na Europa. Até as velhas mulheres casadas e as anciãs possuem aquela beleza luminosa que permanece com olhos de brilho perene. As meninas e as senhoritas são fisicamente encantadoras para além de qualquer descrição. A jovem do Pico tem o pé delicadamente arqueado da mulher espanhola, e as suas saias curtas revelam membros com a mesma graciosidade e formosura. Se a sua esplêndida figura tem um defeito, está na sua falta de estatura, mas em quase todos os casos a compensação encontra-se na sua proporção perfeita. A sua tez é pálida e cremosa, sem rosado nas faces. A sua boca é grande, móvel e trémula. Os seus dentes, sem falha, e um entusiasta insistiria que os seus lábios são enlouquecedores. O cabelo, não negro como na maioria dos tipos do sul, é daquele castanho-névoa que se vê por vezes nas encostas das montanhas opostas ao sol. Mas a sua coroa de glória são os olhos fundentes, lânguidos, e porém faiscantes. A beleza do seu rosto não é maior em repouso. Então, se inconsciente de ser observada, e como com as mulheres de todos os países tropicais onde a inteligência escasseia, o seu rosto tem em si um traço do animal esplêndido; e um toque discernível de desamparo e pathos. Mas ponham-se as suas feições em jogo activo com um homem no outro extremo desse esforço, os seus grandes olhos escuros, sonhadores e radiantes, ardendo e fundido semi-ocultos sob longas pestanas escuras, o suave e flexível movimento contínuo de cada parte do seu corpo esplêndido — pois todas as suas faculdades mentais e físicas jogam em responsiva harmonia com a sua língua ou os seus olhos — e ter-se-á chegado perto de algo que faz ansiar pelos poderes de um artista. Dizem por aqui que as turistas americanas e inglesas chamam a estas encantadoras raparigas do Pico «criaturas perfeitamente horríveis». Sem dúvida. As raparigas do Pico perdoam-nas, pois, de algum modo, isso faz crescer nos maridos dessas difamadoras a sua furtiva admiração.
    À distância de São Jorge ou da Terceira, a montanha, o Pico, tem a aparência de um esgio cone negro emergindo do mar, as suas mais longínquas alturas truncadas aqui e acolá por brilhantes faixas brancas. Das alturas por trás da Horta, no Faial, se uma ocasional nuvem se interpuser, é de um fascínio prodigioso a sua aparência de incalculáveis altura e tamanho. Lá de baixo, da beira-mar, na Horta, parece que um precipício de altitude incomensurável se eleva ameaçadoramente sobre nós. Quanto mais se olha, mais portentosa esta aparência se torna, pois a montanha raramente se recorta nítida contra o céu, até que se é realmente tomado por um sentimento de apreensão, não vá aquela mais de uma milha de extensão invisível de lava endurecida estar prestes a desmoronar-se através do canal e a lançar a Ilha do Faial, numa massa polvorenta, ao mar. Observando-o de um barco enquanto se contornam as incomparavelmente pitorescas margens na sua base, não se imagina melhor maneira de a descrever, especialmente ao recordar que cada átomo de costa e de montanha foi expelido das profundezas em fogos vulcânicos, do que recorrendo à velha analogia com um vasto monte de cinzas de onde continuamente a escória de maiores dimensões rolou até às margens exteriores, entrando no mar, formando incessantemente uma base cada vez mais larga, enquanto a escória de peneira mais fina continuava a acumular-se, aumentando a altura do cone perfeito acima. Não há nada mais interessante do que estudar os afloramentos marítimos da base do Pico a partir de um barco aberto. Os promontórios do noroeste são extraordinários e impressionantes. De facto, a partir dos 200 a 300 pés acima da costa, imensas camadas ou estratos de lava escura mostram arestas tão limpas e direitas como as de uma muralha acabada de construir. Cada um dos estratos é evidência de uma distinta escoada de lava do vulcão acima. Em alguns lugares, chegam direitos até à beira da água, quais enormes lagos de alvenaria. Em alguns outros, estão esmigalhados e partidos, ou misturados como que por torrentes de lava. Para além de fenómenos como estes, há sempre também ásperos rochedos de lava emergindo do mar, nos locais onde as massas fundentes fervilharam, arrefecendo.
    Noutros locais, nos extensos trechos onde a costa sofreu a plena força do embate do Atlântico, estes escarpados estratos foram ao longo de centenas de pés de altura desgastados em arcos, esculpidos em pilares e moldados em contrafortes, até surgirem, como se uma fractura de terremoto os tivesse dividido e lançado uma parte deles para as profundezas, as mais curiosas e caprichosas representações de ruínas de vastos e outrora ocultos templos. E nem sequer são mais curiosas do que a vista, a partir do barco, das encostas do Pico, subindo desta base grandiosamente pitoresca quase até às nuvens. Aos nossos olhos, é como se toda a superfície da montanha estivesse coberta por uma rede de arrendados, nas suas cores próprias de lava; como se a superfície de um chapéu de burro preto tivesse sido finamente entrelaçada com delicados fios de renda Guipure [um tipo de renda, semelhante à de bilros]. Neste estranho entrelaçado existiram outrora as famosas vinhas do Pico. Não há um único átomo de substância que mereça o nome de solo vegetal desde a base até ao cume do Pico; porém, há anos, nestes miríades pequenos compartimentos murados que se elevam acima uns dos outros tal como as cadeiras num teatro, as videiras medravam tão viçosas e verdes entre pedras negras e escória que nenhuma vinha na Toscana produzia mais finas uvas ou proporcionava mais bonitas cenas. Chegaram a ser enviados 25 000 barris de vinho por ano para o Faial, para exportação. Mas a praga chegou, as videiras foram totalmente destruídas e assim, embora hoje se reviva um pouco o seu cultivo, durante um quarto de século os pequenos compartimentos secos de lava adicionaram escuridão e tristeza à esterilidade dos flancos da montanha.
    A pequena vila da Madalena, desembarcadouro da ilha, é um encantador e antigo ninho de preguiça e sonolência. Mas esta gente ilhoa é bela, radiante de boa disposição, e o simples facto de um estrangeiro vir ao Pico torna cada alma com quem ele contacta num esplêndido companheiro e amigo. Ou seja, pode-se organizar, por uma ninharia, guias e mantimentos para a subida da montanha. Estes guias usarão sandálias e terão muitos problemas com os pés. A maioria dos estrangeiros traz sapatos fortes, de sola grossa. Mas aprendi algo sobre o escalar de montanhas que todos os turistas deveriam saber.
    Esteja sempre equipado com um par de botas de fabrico honesto, cujos canos cheguem quase aos joelhos. Use-as por baixo das calças de caminhada. E tenha sempre as solas grossas bem cardadas com pregos de ferro. Talvez não consiga cabriolar como as pastoras de palco. Mas conseguirá avançar penosa e discretamente, bem como alcançar o destino que escolheu, enquanto os seus demasiado refinados companheiros e os seus pitorescos guias ficam para trás, coxeando de dor, ou demorando-se nas nuvens mais abaixo, enquanto removem pedaços de glaciares enfiados sob os seus calcanhares ou cinzas vulcânicas afiadas como facas de entre os seus ensanguentados dedos dos pés. Era este o estado dos meus guias mesmo antes de completarmos cinco horas de escalada, e fomos obrigados a parar ao meio-dia, a uma altitude não superior a 5 000 pés.
    Aqui nos demorámos três horas, sem um único vislumbre da paisagem. Uma nuvem leve como névoa parecia envolver toda a montanha. Mas seguimos em frente, após muita insistência com os meus guias, tendo-lhes revelado a minha determinação de alcançar o cume e de ali pernoitar. Cada passo era agora inseguro; não perigoso, mas sobre escória semelhante a púmice e sobre áspera cinza vulcânica, um solo que se quebrava alarmantemente sob os nossos pés. Caindo frequentemente neste solo, ou tropeçando ainda mais frequentemente na atrofiada queiró, chegámos finalmente ao cume. Nada se via além de uma faixa de cinzas à nossa direita e à nossa esquerda, e, como a névoa ainda nos envolvia, via-se também aquilo que parecia ser a superfície plana de uma imensurável vastidão aos nossos pés. O ar quente subia sufocante diante de nós. A névoa húmida rodopiava melancólica atrás de nós. Mal tivemos tempo de apalpar as redondezas e de procurar uma cavidade junto à quente orla externa da cratera, de nos prepararmos apressadamente para a noite e de mastigar um pouco de comida das nossas mochilas, quando a palpável escuridão caiu sobre nós, como o bater de uma majestosa asa. Os meus guias não se atreveram a mover-se, devido aos seus temores supersticiosos. Ao fim de cinco minutos eu dormia como nunca tão profundamente dormira. Tanto quanto sei, foi uma noite tão confortável, ali, mesmo no topo da agulha do Pico, quanto antes de Vicksburg, em ’63 [cerco de Vicksburg, durante a Guerra Civil Americana, em 1863, na qual o autor participou], ou nas florestas flamejantes de morte de Chatahoochie, em ’64 [raides realizados durante o cerco de Atlanta por Sherman, durante a Guerra Civil Americana].
    Quando acordei, as estrelas, brilhando com aqueles maravilhosos fulgores e pulsações das estrelas dos céus tropicais, fitavam-me directamente nos olhos. Por um instante houve uma quietude tão profunda quanto os silêncios eternos. Esta quietude foi quebrada por dois tremendos roncos. Os meus guias estavam agora a salvo das bruxas e dos feiticeiros do Pico. Assim deitado, atingiu-me uma estranha sensação de isolamento, de solidão, de insegurança, de perigo. A sensação intensificou-se num verdadeiro pavor devido a uma singular tremura do próprio leito de lava onde repousava. Sente-se algo semelhante no topo de altos pináculos. Cheguei a perguntar-me se, ao levantar-me, não poderia, pela pura fascinação de tudo aquilo, rodopiar e mergulhar 8 000 pés dali abaixo, até ao canal do Faial. Uma multidão de devaneios fantasiosos como este tomou conta de mim até que um escurecimento das estrelas, um desvanecer e empalidecer do seu brilho, desviou os meus pensamentos. Pareceram então desaparecer, uma por uma. O negro do seu fundo matizou-se num vaporoso cinzento; depois, num lavanda perlado; finalmente, num azul-esverdeado do Nilo. Sim, era a gloriosa aurora! Levantei-me mesmo antes dos vermelhões surgirem a leste, quando ainda podia ver, acima do horizonte ocidental, as estrelas por empalidecer, tal a altura a que me encontrava. A meus pés, a vasta cratera de quase 2 000 pés de circunferência, as suas paredes em alguns pontos entre 200 e 300 pés de altura, enquanto das fendas escuras do seu chão perfeitamente plano o vapor e o fumo do vulcão adormecido rodopiavam tão pacificamente como de chaminés rurais no inverno.
    Não se consegue ter noção do tempo quando se é o único ser pensante na posse de tal altura e de tal cenário; mas, por fim, dissipou-se o medonho fascínio da cratera do Pico e voltei-me para o mais grandioso ciclorama que os meus olhos jamais contemplaram. Mar e horizonte fundiam-se excepto onde o sol, como um majestoso globo de fogo, lançava ao zénite os seus gloriosos pigmentos e estendia sobre o mar, até à orla da ilha, uma inundação de trémulo carmesim. A nordeste e a norte erguiam-se a Terceira, São Jorge e, ao longe e desvanecida num engaste de ónix avermelhado, a bela Graciosa, numa orla espumosa de pérolas reluzentes; entretanto, o verde suave das alturas suavemente delineadas do Faial, aparentando estar tão próximas que se poderia responder aos flauteios dos cabreiros nas suas colinas, não era interrompido senão onde as casas colunadas da Horta brilhavam em fantasmagórico branco através dos discos ocidentais das suas encantadoras e circulares margens. A exultação, a euforia, a glória que nutre a alma, geradas por tais alturas e por tal cenário, não são suportáveis durante muito tempo por quem não sabe voar. Despertei os meus guias. Corremos pela encosta da montanha abaixo. Uma hora passada e almoçávamos num vale elevado, numa choupana de pastor, e ao meio-dia estávamos entre os pescadores e as lavadeiras da Madalena, junto ao mar.
    Publicado pelo menos em:
    – 1889-12-14 – Daily Morning Patriot, p. 1
    – 1889-12-14 – Morning Journal and Courier, p. 1
    – 1889-12-14 – The Daily Inter Ocean, p. 16
    – 1889-12-14 – The Daily New Era, p. 3
    – 1889-12-14 – The Pittsburg Dispatch (2nd part), p. 9
    – 1889-12-15 – The Cleveland Leader and Morning Herald, p. 17
    – 1889-12-15 – The Evansville Courier, p. 1
    – 1889-12-15 – The Knoxville Journal, p. 1
    – 1889-12-15 – The Meriden Sunday Journal, p. 5
    – 1890-02-27 – Miami Union, p. 1
    [A imagem reproduz uma aguarela de 1905 de Cass Gilbert: «Mt. Pico, Azores Islands».]
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  • GENE HACKMAN A MORTE E A SOLIDÃO

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    “O que morre primeiro? O homem ou o mundo ao redor?
    Gene Hackman morreu antes de seu coração parar de bater.
    Teve fome. Teve sede.…

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    O que morre primeiro? O homem ou o mundo ao redor?
    Gene Hackman morreu antes de seu coração parar de bater.
    Teve fome. Teve sede.
    E ninguém veio.
    E então Gene Hackman, o grande Gene Hackman, morreu. Não de doença, não de fome. Morreu de esquecimento. Qual a verdadeira morte? A do último suspiro ou a do instante em que ninguém percebe a sua falta?
    Gene Hackman morreu sozinho. Um dia, todos nós estaremos solitários no momento do encontro com o nosso destino final. É inevitável. Mas para Gene a morte chegou de um jeito mais lento, mais esquecido e doloroso. Ninguém bateu à porta. Nenhum amigo ligou. Nenhum familiar estranhou a ausência.
    Betsy, sua esposa, morreu primeiro. Hantavírus. Uma doença rara, transmitida pelo pó das fezes de roedores. Pouco antes ela foi à farmácia e levou o cãozinho ao veterinário. Não sabia que aquelas eram suas horas finais, que seria abatida por algo mortal carregado pela poeira invisível, das coisas que existem e não se veem. Um dia ela estava ali, no outro não. Talvez tenha passado a manhã dobrando roupas. Talvez tenha planejado o jantar. E então veio a febre, o cansaço, o nada. De repente, o fim. Fulminante, sem aviso, sem tempo para despedidas e providências.
    Gene ficou sozinho, sem entender. Por sete longos dias, perambulou pela casa sem saber o que fazer, sem lembrar como agir. Aos 95 anos, o Alzheimer já havia apagado parte de sua memória e a capacidade de pedir ajuda. Talvez tenha, no fundo da mente, sentido o vazio. Talvez tenha chamado por Betsy. Mas isso não se soube ou saberá, porque ninguém estava lá.
    Ninguém veio.
    O que acontece quando um homem se torna invisível?
    Gene Hackman foi um dos maiores atores de Hollywood. Um ícone. O rosto duro, a voz grave, o talento bruto. Interpretou presidentes, assassinos, heróis. Foi duas vezes vencedor do Oscar, amado pelo público, respeitado pelos colegas. No auge da carreira, era forte, imbatível, voz que não tremia. Mas o que isso significa quando se tem 95 anos e se está sozinho e desamparado em casa? Quando a memória se apagou, o corpo está fragilizado e os amados ausentes?
    A fama é um engano que o tempo desfaz.
    O que resta quando o telefone para de tocar? Quando as pessoas presumem que você não quer ser incomodado? Quando a casa grande e confortável se torna um território de esquecimento?
    De que vale um nome célebre quando se está idoso, doente e só?
    A solidão não chega de repente. Ela começa no dia em que ninguém mais pergunta como você está. No dia em que as pessoas supoem que você já tem tudo, que está bem. O esquecimento vem devagar. Constrói-se aos poucos, como uma casa onde ninguém entra.
    Gene – que não se dava ares de celebridade – buscou se distanciar de Hollywood. Escolheu o isolamento, apostou que a esposa, trinta anos mais jovem, o assistiria até o final. Acreditou que não precisava de um cuidador, enfermeiro ou outros empregados. Porém, o que durante muito tempo foi bênção, converteu-se em armadilha. A casa grande ficou menor. O silêncio ficou maior. A porta ficou fechada.
    Ninguém bateu.
    E o homem um dia visto por milhões, partiu sem que ninguém olhasse.
    A solidão dos que vivem muito por vezes me assusta. A velhice é um país estrangeiro e inóspito. Ninguém quer visitá-lo sem garantias e medidas de segurança, mas poucos são os que ousam pensar no que acontecerá quando os dias se tornarem longos demais e as noites silenciosas em excesso. Raros são os que tomam decisões conscientes para que a vida não se dissolva quando não houver mais reuniões de trabalho, estreias, jantares com amigos, idas ao cinema.
    Recolho em mim cada lição dessa tragédia: morrer é um caminho sem testemunhas; a fama, uma ilusão que se desmancha na poeira; o sucesso, um eco que não se sustenta; e escolhas para a velhice devem considerar vários cenários, pois a vida é mutável e imprevisível. Ela nos surpreende em uma esquina qualquer, com a sua maleta transbordante de espantos.
    No fim, somos casas sem luz se não há quem bata à porta.
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  • Das Sete Cidades às belezas das Furnas, passando pela Ribeira Grande Mais um capítulo das deambulações de Edgar L. Wakeman pelos Açores,

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    Das Sete Cidades às belezas das Furnas, passando pela Ribeira Grande
    Mais um capítulo das deambulações de Edgar L. Wakeman pelos Açores, em 1889. Este relata uma excursão às Furnas, partindo do acampamento dos carvoeiros nos altos das Sete Cidades, e passando pela Ribeira Grande. A descrição é muito bonita e poética, e escrita com frases tão longas que ocasionalmente tive de as partir, de modo a facilitar a leitura. Espero que gostem.
    Cá vai a tradução do capítulo, a que chamei «Excursão às Furnas»:
    Capítulo 4
    Excursão às Furnas
    Furnas, São Miguel, Açores, 5 de Novembro de 1889. — Fomos recebidos com grandes manifestações de deleite pelos carvoeiros de cujos antepassados a hospitalidade se tinha revelado tão reconfortante para o Rip van Winkle açoriano, Dobrado Madraço, que ainda hoje ele não acordou do seu sono de dois séculos. Os nossos burros foram amarrados e tratados. Água para lavagens foi trazida, em enormes cântaros, de uma fresca represa [«represado», no original; presume-se que uma represa]. Vinho barato, aguardente e tabaco em extraordinárias quantidades foram fornecidos. Rapazes e meninas estranhos, de olhos grandes e seminus, para cujas consciências simples os estrangeiros eram como maravilha e sonho, reuniram-se à nossa volta, olharam, espantaram-se e, com explosões cristalinas de riso, fugiram em direcção às suas mães ou aos bosques para se recomporem. Um jantar de tais proporções, variedade e grotesco foi fornecido como nunca antes saudou olhos de homem civilizado. Despois, durante a longa noite, estes meio selvagens homens e mulheres queimadores de carvão das montanhas — as mulheres ágeis, formosas e musculosas desenterrando para a ocasião muitos enfeites e adornos de recantos inesperados de choupanas antigas e sombrias — dançaram connosco e para nós sobre um surrento chão, polido pelo uso, tão hilariantes sapateados, tão exóticos bailes e tão grotescos fandangos, que nenhuma pena fervorosa poderia descrever, nem nenhum indulgente moralista se disporia a aprovar. Era de facto uma cena cigana, faltando apenas as tendas de capuz e as carroças agrupadas em círculo. Aqui e ali as fogueiras de carvão ardiam como ardem as fogueiras dos ciganos, nós de criptoméria ardiam e tremeluziam no topo de enormes varas ou sobre candeias presas a árvores sobranceiras; vintenas de formas morenas giravam à meia luz e nas sombras; e as estrelas brilhantes, pulsando nos seus fogos semi-tropicais, tremeluziam acima através das estranhas plumas escuras da luxuriante verdura.
    Partimos do acampamento dos carvoeiros muito cedo na manhã seguinte. Ao descermos as montanhas em direção à costa, desviámo-nos durante algum tempo do nosso caminho, o que nos proporcionou uma agradável experiência de floresta profunda. De repente, encontrámo-nos numa densa floresta de criptomérias quebrada aqui e ali por saliências abruptas de rocha de lava ao longo de cujos lados e sobre cujas alturas uma riqueza indescritível de fetos corria em bancos de plumas ondulantes. Nas bases e dos lados de cada massa de rocha, inúmeras fontes naturais ondulavam e jorravam, e, destas, pequenos riachos saltavam e cantavam, com surpreendente melodia, em direcção aos vales abaixo. Até onde penetrámos, a cobertura da terra por baixo das criptomérias era como um tapete de púrpura aveludado. Os cascos dos nossos burros mal se ouviam. Para cima, para cima, para cima, 30, 50, às vezes 80 pés, rectos como flechas, disparavam os troncos castanho-avermelhados das criptomérias. Os arcos entrelaçavam-se e a verdura crescia tão densamente que o céu se ocultava. De vez em quando, naquela alta renda de ramos e sombras, pequenos salpicos de luz açafroada pareciam flutuar tremulamente. Nesta renda, para nosso deleite, que orquestras de pássaros davam as boas-vindas ao radiante dia! Inúmeros dos famosos canários verdes e dos quase tão maravilhosos melros açorianos, cantores, rivalizavam cantando os seus madrigais. E o mais notável de tudo isto era a aparente regularidade de alternância nas suas maravilhosas melodias. Durante algum tempo, os melros tudo possuiam. A seguir, apenas se ouviam as notas dos canários. Depois, como se para se tentarem superar entre si ou aos verdadeiramente orquestrais efeitos dos riachos abaixo, misturavam ambos os seus estridentes agudos e suaves contraltos num diapasão sustentado e arrebatador de canção em voz de pássaro. O velho Manuel, o guia, observou o meu encantamento durante algum tempo em digno silêncio e, finalmente, com um grave aceno da cabeça, observou:
    — Ah, sim, tal como as mulheres, belas à vista ou ao ouvido, mas tristes pragas, às vezes. Quando cantam tão docemente, nós ilhéus sabemos que é porque as suas colheitas estão cheias e as nossas provisões nos campos foram devastadas. Nessas alturas, o nosso Governo dá 20 réis por cada dúzia de bicos de canário ou melro. Se o Mateito e eu pudéssemos levar a Ponta Delgada os bicos de todos os que agora cantam lá em cima, cada um de nós poderia tornar-se dono de uma quinta, tal como os ricos da cidade!
    O Mateito ficou tão excitado com esta visão repentina de riqueza que começou a fustigar os nossos burros, fazendo-o de uma forma tão feroz que os animais, por iniciativa própria, regressaram ao caminho do qual nos tínhamos desviado. Durante toda a descida em direcção às povoações costeiras do norte manteve-se um ritmo tão rápido que, quando chegámos à bela vila da Ribeira Grande, demos por muito bem-vindo um breve descanso numa velha estalagem pitoresca. O proprietário era um conhecido do Manuel, o que levou a que nos fossem servidas tais provisões de comida e tais garrafões de vinho nativo, que nos criaram noções maravilhosas acerca dos recursos da natureza e dos cozinheiros açorianos. O gordo e velho estalajadeiro não permitia que nenhuma mão que não a sua preparasse a comida. Assim, sentámo-nos e conversámos, esperando esfomeados na cozinha fumarenta. Finalmente serviram- nos aves grelhadas, pão de milho, batatas-doces assadas, manteiga e leite dos mais doces, um queijo nativo picante, como o Brie dos franceses, tudo realmente delicioso, bem como o café mais preto e repugnante que alguma vez se provou fora da cabina suja de um veleiro americano. O proprietário ficou a nosso lado enquanto comíamos, ora servindo-nos, num ridículo alerta, os diferentes artigos de comida, ora limpando, com o seu grande avental de linho, o fumo e a transpiração do seu rosto afogueado, ora de novo bebendo à nossa saúde e a «uma viagem protegida pelos céus», numa exuberância de hospitalidade, servindo-se do vinho por nós próprios comprado. Depois, o personagem ponderoso e pançudo correu durante uma boa milha ao longo das ruas da Ribeira Grande, ao lado dos nossos burros, soprando orações e súplicas pela nossa segurança. Não desistiu sem que os subúrbios fossem alcançados e já não conseguisse chamar a atenção de mais nenhum dos seus bons conterrâneos para a importância dos hóspedes que havia recebido naquele dia. Quando nos voltámos e começámos a subir o caminho da montanha, o nosso último vislumbre do curioso Bonifácio deparou-se com ele sentado, a resfolegar, à beira de uma agradável fonte, presa das atenções dos muleteiros jocosos, enquanto abanava o seu rosto vermelho e rubicundo com o majestoso avental de linho com que nos havia servido.
    A nossa sorte quanto a hospitalidades de estrada foi naquela noite menos untuosa. Não conseguindo atingir as Furnas e o seu encantador vale, a nossa ânsia por alojamento foi finalmente aliviada quando os nossos sábios burros subitamente aguçaram as orelhas e, sem consideração por nós, se lançaram a grande velocidade e não abrandaram senão quando chegámos ao lado de uma solitária estalagem de beira de estrada. Fomos alegremente recebidos por um sujeito corpulento, de aspecto rude, armado e equipado como que para a guerra. A estrutura era um edifício de pedra comprido, baixo e de um só piso, pintado de um amarelo curioso, com um alpendre de metade do seu tamanho sob o qual havia bebedouros e baias abertas para animais. O interior era simplesmente uma grande divisão, escurecida e encardida com a imundície de gerações. Meia dúzia de pesadas mesas de madeira espalhavam-se por aqui e por ali, ladeadas por bancos corridos, grandes como mamutes, e por algumas pedras talhadas na forma de assentos. Uma tábua robusta, atrás da qual havia garrafas com os licores açorianos mais vis, constituía o balcão, numa de cujas extremidades se encontrava uma pele completa de javali plena de vinho, a sua boca aberta sugerindo todos os tipos de ferozes possibilidades. Ao longo dos baixos caibros havia inúmeras cavilhas das quais pendiam entrançados de inomináveis e pungentes vegetais, réstias de cebolas, pedaços de presunto e tiras de tassalho [assim, no original; i.e., toucinho ou carne seca]. Após várias horas de espera, um jantar — preparado pela mulher do estalajadeiro sobre um fogareiro a carvão à volta do qual ela parecia estar em permanente e estridente confronto com uma colecção de cabras, cães, galos de combate e crianças seminuas — foi servido. Consistia num ensopado misto açoriano ou «composto de várias viandas» — carne, sêmola, vegetais e peixe — que nos alegrámos a comer com ajuda de garfos e colheres de chifre. Não nos deram nenhuma dica sobre onde iríamos dormir; por isso, perto da meia-noite, o Manuel e o Mateito procuraram e lutaram até conseguirem que uma porção de queiró fosse cedida e colocada sobre os bancos agrupados. Com isto, e as nossas selas, bornais, cangalhas e algumas esteiras de junco, desafiámos durante o resto da noite, em sono leve e pacífico, cabras, galinhas e pulgas.
    Não havia razão para nos demorarmos na velha e solitária estalagem de montanha, por isso escapámos da sobrelotada cabana antes do amanhecer. Um passeio rápido por uma estrada agradável, com aglomerados de choupanas de camponeses a brilhar aqui e ali ao longo dos pequenos vales ou das bonitas encostas nas terras altas, com de vez em quando um momento de pausa em fontes à beira da estrada ou em pontes com arcos de pedra onde cascatas em espuma corriam através de encantadoras grotas até ao oceano invisível abaixo, levou-nos ao planalto superior de uma cordilheira circular com quase 3.000 pés de altura. O sol varria o limite oriental destas nobres elevações quando, de repente, ao darmos a volta ao pico agudo de uma colina rochosa que se debruçava sobre a estrada, o grande ciclorama circular do famoso Vale das Furnas se abriu por completo diante de nós.
    [Um ciclorama é uma «pintura de grandes dimensões feita em superfície côncava ou circular, de tal modo que, a uma distância calculada, cria no observador a ilusão ótica de perspetiva natural». – Infopédia, Porto Editora]
    Do alto onde nos encontrávamos, o vale parecia ser oval, com seis a nove milhas de comprimento e duas a quatro de largura. As montanhas que o rodeiam elevam-se entre os 2 000 e os 8 000 pés acima do nível do mar. As suas bordas serrilhadas são interrompidas aqui e ali por vales menores de maravilhosa simetria, por cortes naturais na lava por onde serpenteiam estradas que rivalizam com as romanas de outrora, por gargantas e desfiladeiros precipitosos salpicados de cascatas veladas de névoa, e por depressões e cavidades onde, da nossa altitude, podíamos vislumbrar reflexos das superfícies reluzentes de lagos silenciosos e de lagoas sombrias. Inúmeras ribeiras, como linhas sinuosas de pérolas, misturam-se, cruzam-se, separam-se e serpenteiam caprichosamente ao longo dos níveis mais baixos. As alturas púrpuras de queiró fundem-se nas massas de verde onde criptomérias se erguem, densas, passando a um verde mais escuro sobre os aglomerados de loureiros, e desvanecendo-se em azul, dourado ou púrpura consoante a luz e a sombra brincam sobre os líquenes entretecidos das encostas mais selvagens e íngremes. De onde estávamos, contávamos meia centena de choupanas de camponeses e o seu dobro em caminhos de cabras, quais delicadas fitas cor-de-rosa. Canadas, entre velhos muros azuis ou cinzentos meio encobertos sob massas de videiras, entrelaçavam todo o vale e as encostas das montanhas, ou perdiam-se nos tons azuis dos vales altos, até toda a superfície da cena parecer traçada e entretecida como as linhas de um diminuto mapa de um qualquer populoso continente.
    Lá em baixo, lá bem em baixo, estavam as paredes brancas, os telhados vermelhos, a singular cúpula de igreja e as longas e tortuosas ruas da mais pitoresca das antigas povoações dos Açores. Passando por nós na estrada onde estávamos, escorrendo das montanhas à nossa direita e à nossa esquerda, e pelos declives dos vales opostos, vinham pequenos rebanhos de cabras, brancas como leite. De cada uma delas pendia um pequeno chocalho com um diferente tom. As cabradas iam levadas para a ordenha diária na povoação. Cabreiros descalços, atrás, tocavam as suas agudas flautas. Dos arvoredos e dos bardos, os melros e os canários, como que inflamados por uma rivalidade exaltada, superavam-se lançando erupções de canto — centenas e centenas de cristalinos sinos, vintenas e vintenas de alegres flautas, milhares e milhares de vozes de pássaros, misturando-se, ressoando, crescendo na melodia mais estranha, mais doce e contudo mais tremulamente terna que ouvidos humanos jamais ouviram! E, no entanto, é assim que o amanhecer é anunciado todos os dias do ano neste prodigioso vale das Furnas.
    Até agora, o vale silencioso dormia. Mas veja-se a resposta pitoresca a esta maravilhosa canção matinal. Emergindo das vielas sombrias do sereno aglomerado aos nossos pés, das quintas ou das vilas dos domínios opulentos das suaves encostas mais próximas, ou, perto e longe, de bonitas camarazinhas [assim, em português, no original] envoltas em arqueadas videiras ou árvores, surgem, quais vestais indo servir perante a sacerdotisa do dia, uma centena de donzelas das Furnas. Cada uma delas chilreia ou entoa a sua cantiga [em português no original] preferida e traz, sobre a cabeça formosa, um cântaro vermelho vivo. As suas saias são azuis, o seu corpete é branco, ou rosa, ou amarelo. Os seus pés, e os seus braços e a sua cabeça estão descobertos. A sua figura é helénica. Os seus olhos são profundos e lânguidos, mas líquidos de luz. O sol, acolá, passando acima do vetusto Pico da Vara, nunca pintou um vermelhão como o que tinge as suas faces, nem um carmesim como o que se abre entre os seus reluzentes dentes. Assim, cantando em resposta aos rebanhos, aos pássaros e à manhã, estas encantadoras aguadeiras calcorreiam os caminhos em direcção às fontes, entretecendo na cena idílica pedaços de som, cor e vida que nos conquistam por inteiro o coração.
    Quanto tempo nos deleitámos com a cena eu não sei, mas ela tocou e emocionou até as veias túrgidas do meu velho e grisalho guia. Quebrou o silêncio com um suspiro. Depois, colocando as mãos enrugadas sobre o coração e revirando os olhos para o céu, elevou a sua voz quebrada e nasal numa canção tão melancólica que os burros, inquietos, zurraram em resposta um miserere empático:
    «Este vale é minha terra,
    É minha terra natal;
    Mas em belezas que encerra,
    No mundo não tem rival!
    Esta é a canção que sai de todos os corações dos camponeses das Furnas perante o seu encantador e amado vale. Mas a fama das Furnas provém de mais do que as suas belezas. O hoje nobre vale foi outrora a cratera de um vasto vulcão. Forças ocultas revelam a sua proximidade por meio de jorros incessantes de águas termais. Em dezenas de cavidades mais baixas, em fissuras nas encostas das montanhas, em fontes e lagoas, em charcos e ao longo de riachos, há gorgolejos, fervuras, sibilos e pulsações contínuos vindos de reservatórios subterrâneos carregados de fogo. Em muitos lugares, o calor da terra impede que se caminhe sobre ela. Em alguns, os camponeses cozinham a sua comida nos caldeiros da natureza. Por toda a parte há tremores e murmúrios violentos, enquanto no interior de muitos dos géiseres os batimentos e as pancadas, como se fossem golpes de pistões de enormes motores, transmitem ao forasteiro uma sensação incontrolável do terrível.
    Há centenas de anos, eremitas do continente descobriram este lugar e, através das águas medicinais, aqui realizaram milagres. Depois vieram os jesuítas. Tomaram posse de todo o vale e plantaram pomares de laranjas e campos de inhame. Quando esta ordem foi expulsa, há pouco mais de 100 anos [1759], os camponeses açorianos sucederam-lhe. Quase todos possuem as suas pequenas herdades [em português, no original]; mas há uma sonolência no lugar que reprime a energia. Vivem vidas idílicas enquanto camponeses. As suas necessidades são poucas. A terra é generosa. Todos são simples, honestos, satisfeitos. Mal conhecem a velhice. Algumas das condições que tornam isto possível — o clima, as águas termais, a beleza langorosa das imediações e a paz do local — fazem dele um lugar maravilhoso para os enfermos. Primeiro vieram alguns de Lisboa. Depois, começou a chegar a aristocracia da ilha. Finalmente, um inglês ou um americano aventureiro penetrou nas montanhas de São Miguel. E assim o mundo começou a conhecer o Vale das Furnas, e deu-lhe fama. Quando os nossos compatriotas puderem aqui chegar tão facilmente quanto chegam a Londres, muita da sua beleza tranquila desaparecerá, mas nascerá então aqui uma nova e maior Baden Baden. O clima assim o determinará. Varia entre 75° (24° C) no verão e 52° (11 C) no inverno.
    Uns magníficos banhos, para onde as várias águas termais e minerais são conduzidas, foram construídos; e aqui podemos banhar-nos para sempre e de graça! Isto é a coisa mais notável dos Açores. O custo de vida é tão baixo que envergonha procurar um equivalente; tem-se verão no inverno; primavera no verão, e as delícias da vida tropical nas verduras e nas frutas do ano inteiro; enquanto aquilo que em toda a Europa do Sul tanto encanta o viajante pelo pitoresco da vida e dos costumes camponeses, não consegue superar o que a qualquer momento se pode ver e sentir a partir da nossa antiga varanda pitoresca das Furnas; pois
    * «em belezas que encerra,
    No mundo não tem rival!»
    Publicado pelo menos em:
    – 1889-12-07 – The Daily Inter Ocean, p. 11
    – 1889-12-07 – The Daily New Era, p. 6
    – 1889-12-07 – The Pittsburg Dispatch (2nd part), p. 9
    – 1889-12-08 – The Daily Picayune, p. 18
    – 1889-12-08 – The Evansville Courier, p. 1
    – 1889-12-08 – The Knoxville Journal, p. 1
    – 1889-12-08 – The Meriden Sunday Journal, p. 5
    – 1889-12-11 – The Scranton Republican, p. 6
    – 1889-12-18 – The Scranton Weekly Republican, p. 2
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  • antigos-combatentes-discriminados-nos-acores.

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    Antigos Combatentes Discriminados Nos Açores

  • Edgar L. Wakeman.«Viagem de Nantes a Ponta Delgada».

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    Uma tarde amena, depois do vento. Inventei tempo livre para traduzir o primeiro capítulo do potencial livro, nunca compilado, editado e, julgo, traduzido, de Edgar L. Wakeman. É um texto bonito, o primeiro de vários com uma interessante descrição de uma estadia em São Miguel. Foram publicados em 1889 em vários jornais americanos. À falta de título para este conjunto açoriano das suas «Deambulações», que o levaram pelo mundo e lhe deram temporariamente alguma fama, chamei-lhes «Deambulações nos Açores em 1889». A este primeiro artigo-capítulo, chamei «Viagem de Nantes a Ponta Delgada». O resto, claro, é do autor. Cá vai o texto:
    Ponta Delgada, Açores, 24 de Outubro de 1889. — A força da antiga tradição oriental levou sem dúvida à descoberta e povoamento do continente americano. Os remotos e místicos espíritos de autoridade histórica e ética que são os Puranas [textos antigos hindus], colocavam a Chandra Duipa [ilha ou continente sagrado], ou «Ilhas Sagradas do Ocidente», entre as ondas e a vastidão do Atlântico. Píndaro descreveu o lugar de repouso dos heróis gregos como as Ilhas dos Bem-Aventurados ou Ilhas Afortunadas:
    Aí sopram as brisas oceânicas
    em volta das Ilhas dos Bem-Aventurados.
    Brilham flores de ouro,
    umas no chão, outras nas árvores resplandecentes.
    A água cria outras ainda.
    Com elas entrelaçam as mãos com grinaldas […]
    [A tradução inglesa da II.ª Ode Olímpica de Píndaro (476 a.C.) que é usada no texto original surge no livro «Ireland: Its Scenery, Character, &c, Volume 3» de Samuel Carter Hall e Mrs. S. C. Hall, publicado em 1843 pela How and Parsons. A tradução portuguesa que aqui usamos é de Maria Helena da Rocha Pereira e encontra-se na página 29 do livro «Obras de Maria Helena da Rocha Pereira: Traduções do Grego», editado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Imprensa da Universidade de Coimbra em 2017, e também no livro «Sete Odes de Píndaro», da mesma autora, editado pela Porto Editora em 2003.]
    Os antigos bardos irlandeses cantaram repetidamente a Hy Brazil (ou Brasil) [ou Ilha de São Brandão, ilha mítica] como terra de sol perpétuo, oculta pelo oceano, com nobres rios, montanhas e vales, cheios de verdura perene, terra livre de cuidados e de decadência. Os lendários heróis celtas, tais como Oisin mac Fionn [guerreiro antigo, caçador, bardo e poeta; filho de Fionn (o Finn)], eram transportados por poderes sobrenaturais para esta Tír na nÓg [um dos paraísos celtas], a terra da perpétua juventude e ilha dos imortais. A compensação pelo triste destino do Rei Artur em Camelford [vila e paróquia civil (freguesia) da Cornualha que tem sido identificada por alguns como a lendária Camelot] chegou através do transporte, por mãos carinhosas, da sua alma magoada e do seu corpo ferido para a «ilha-vale de Avalon» [ilha lendária da lenda arturiana], de onde «virá de novo» e dará à sua amada Inglaterra um reinado de justiça e paz. O mal-aventurado Tasso, na sua gloriosa «Gerusalemme Liberata» [poema épico de Torquato Tasso, publicado em 1581], localiza os encantamentos de Armida sobre Rinaldo — quando este deveria ter estado com Godofredo lançando pedras às cabeças dos pagãos sobre os muros da velha Jerusalém — nas «Ilhas Felizes, as Afortunadas», colocando as ilhas, mesmo tão tardiamente quanto 1570 [Tasso iniciou o seu trabalho no poema em meados da década de 1560 e completou-o em Abril de 1575], a Oeste e a Sul de Gibraltar [as Colunas de Hércules]. [Em 1864 a Typographia Universal publica uma tradução para português do poema épico de Tasso por José Ramos Coelho (Lisboa, 7 de fevereiro de 1832 — 15 de setembro de 1914; historiador, conservador da Biblioteca Nacional e da Torre do Tombo, tradutor e poeta). O troço referido por Wakeman encontra-se nas páginas 352 a 354, e vale a pena reproduzi-lo aqui:
    Serão os marcos d’Hercules um nome,
    Fabula para o nauta; e d’estes mares
    E reinos que a distancia ignota some,
    Inda ouvireis as famas singulares;
    Então, sem que temor e p’rigo o dome,
    O lenho mais audaz, por mil azares,
    A terra ha de medir, do sol radiante
    Arrojado rival e triumphante.
    Cabe a um filho da Italia o atrevimento
    De se arriscar ao curso não provado:
    Nem o rugido ameaçador do vento,
    Nem o inhospito mar nunca sulcado,
    Nem vario clima ou quanto o pensamento
    Reputa mais terrível e arriscado,
    O seu pensar e generoso peito
    De Ábila encerrarão no curto estreito.
    Colombo, tu do mundo á nova parte
    Has de levar tão longe a feliz vela,
    Que a fama co’as mil azas alcançar-te
    Conseguirá somente. Cante ella
    Embora Alcides, Bacho; para honrar-te
    Basta esboçar a túa acção tão bella.
    Que esse pouco dará longa memoria,
    De um poema digníssima e da historia.
    D’esta arte diz, e pela estrada undosa
    Corre ao ponente, e dobra ao meiodia,
    E vê cair em frente a luz radiosa
    Do sol, e renascer atrás o dia.
    Mas no momento mesmo em que a formosa
    Aurora orvalho e raios desparzia,
    Ao longe se lhe antolha escuro monte,
    Por entre as nuvens escondendo a fronte.
    Vêem-no logo, caminhando avante,
    Já co’a cima de nuvens descoberta.
    Ás pirâmides grandes similhante,
    Pois engrossa no centro, e no alto aperta,
    Fumegando como esse que o gigante
    Opprime, de cratera sempre aberta,
    Que lança fumo até que o sol se ponha,
    E á noite inflamma o céo com luz medonha.
    Outras ilhas não tanto levantadas,
    E outros cumes descobrem finalmente;
    As ilhas juntas são, e Fortunadas
    As nomeou da antiguidade a gente;
    As quaes pelo céo eram tão amadas,
    Que sem arado imaginava a mente
    Produzirem, e dar fructo mais bello,
    Sem ter cultivo, o natural bacello [vinha].
    Ali nunca a oliveira nas suas flores
    Mentia; mel os robles distillavam;
    Dos montes descendiam sem furores
    As aguas, e suaves murmuravam;
    Não faziam incommodo os calores,
    Que as auras, e o rocio os mitigavam;
    Ali se collocavam as famosas
    Habitações das almas venturosas.
    Já para estas a barca vae volvendo.
    Finda é quasi a viagem, diz a dama;
    As ilhas Fortunadas estaes vendo,
    De que heis ouvido incerta, illustre fama.
    Formosas, férteis são; porém, correndo,
    O certo de mentiras se recama.
    Assim fallando a prôa aventureira
    Se chega á que das dez era a primeira.
    ] Os egípcios também acreditavam — e sobre ele cantavam — num paraíso insular similar cuja história Platão fez Crítias contar como tendo sido recebida de Sólon pelo seu avô, que teria recolhido os seus pormenores junto dos sacerdotes do Egipto. [A passagem em causa encontra-se, em português, nas páginas 229 e 230 de «Timeu-Crítias», de Platão, com tradução do grego, introdução e notas de Rodolfo Lopes, uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra de 2013:
    «Mas antes ainda do meu discurso, impõe-se um breve esclarecimento, para que não fiqueis admirados por muitas vezes ouvirdes nomes gregos aplicados a homens estrangeiros; ouvi então a razão. Sólon, por ter pensado em utilizar esta narrativa na sua poesia, procurou o significado destes nomes e descobriu que aqueles primeiros egípcios os tinham redigido vertidos na sua própria língua; então ele, por sua vez, depois de ter assimilado o sentido de cada um desses nomes, registou-os e traduziu-os para a nossa língua. Estes escritos estiveram na posse do meu avô, e neste momento estão ainda comigo, com os quais me exercitei enquanto era criança. Portanto, que não vos cause nenhuma admiração se ouvirdes alguns nomes como estes; aí tendes, portanto, a razão. Mas vejamos agora como era o princípio daquela grande narrativa.
    Tal como foi dito anteriormente acerca da partilha que ocorreu entre os deuses, eles dividiram toda a terra aqui em porções maiores e acolá em mais pequenas, onde estabeleceram templos e sacrifícios em seu próprio benefício. Deste modo, Posídon, quando lhe coube em sorte a Ilha da Atlântida, estabeleceu aí os filhos que gerou de uma mulher mortal num certo local da ilha.
    Existia ao longo de toda a ilha, em direcção ao mar, uma planície central, a qual se diz que seria a mais bela de todas as planícies e com uma fertilidade considerável. Nesta planície havia ainda na parte central uma montanha, baixa em todos os pontos, que distava cinquenta estádios do mar. Neste local, estava um habitante de entre os homens que aí tinham nascido dessa terra em tempos primordiais; o seu nome era Evenor e vivia juntamente com a sua mulher, Leucipe; tiveram uma filha única, Clito. Logo que a rapariga atingiu a idade de ter um marido, a sua mãe e o seu pai morreram, e então Posídon desejou-a e uniu-se a ela. Então, de modo a construir uma cerca segura, desfez num círculo o monte em que ela habitava, e construiu à volta anéis de terra alternados com outros de mar, uns maiores, uns mais pequenos — dois de terra e três de mar, no total, torneados a partir do centro da ilha e equidistantes em todos os pontos, para que fosse inacessível aos homens; com efeito, naquela altura ainda nem havia naus nem se navegava.»
    ] A fabulosa e vasta Atlântida da fantasia de todas essas nações pode ter existido e desaparecido; ou pode ter existido em proporções magníficas, e a sua localização ainda estar marcada por aqueles minaretes-ilhéus que, como as belas e baixas torres de castelos em ruínas, nos contam em silêncio acerca de maravilhosos esplendores e poderes antigos. Esta conjectura é, pelo menos, interessante, e ganha não pouco fascínio quando, num olhar de relance varrendo o mapa em direção a Noroeste a partir do Cabo Bojador, na costa Noroeste da África, se encontram, como possíveis elos quebrados de uma antiga e imponente cadeia continental, primeiro as Canárias, depois as ilhas da Madeira e, mais além, erguendo das ondas de safira, ao longo de centenas de milhas, os seus picos beijados pelas nuvens, aquelas gemas lustrosas de solarenga verdura e de florescimento, as Ilhas Ocidentais, ou as ilhas dos Açores.
    Há muitas formas agradáveis, para os que não receiam uma saudável viagem marítima, de chegar aos Açores. Há uma linha de vapores e uma de paquetes de Boston. Certamente também uma linha de Nova Iorque, cujos navios fazem comércio com portos do Mediterrâneo e desembarcam passageiros no seu caminho. Pode-se embarcar todos os meses, ou mais menos, em robustos paquetes à vela vindos da velha e pitoresca New Bedford, a única cidade portuária americana que ainda acredita em navios americanos e marinheiros americanos. De Southampton, Inglaterra, pode-se, durante a época das laranjas, o inverno, garantir passagem num veleiro ou num vapor quase em qualquer dia da semana. De Lisboa, os vapores-correio do Governo de Portugal partem para os Açores com regularidade, a 1 e a 15 de cada mês. Estando eu na antiga cidade de Nantes, no Loire [França], e a poucas milhas do Golfo da Biscaia, tinha apenas a escolha — ou pelo menos assim o insistiram todas as sábias autoridades — entre Lisboa ou Southampton como porto de partida; mas, tendo eu encontrado algumas deliciosas laranjas embrulhadas em reveladoras cascas de milho numa das bancas de frutas da Rue du Calvaire, adoptei o papel de detetive comercial e marítimo, ao longo dos cais desde Nantes até St. Nazaire, e encontrei — pois sabia que aquelas laranjas não tinham vindo da Madeira, mas sim dos Açores, tão certamente quanto se pode seguir o rastro do «Bourbon» até ao Kentucky, e não ao Maine — um elegante bergantim bretão pronto a zarpar para Ponta Delgada, capital de São Miguel e principal cidade dos Açores. O seu capitão — uma alma afável, larga, barbuda e benigna, nada avessa a companhia amável — ofereceu-me, por uma passagem de apenas 100 francos, o seu próprio beliche e liberdade para usar a sua minúscula cabina, concordando em desembarcar-me em segurança em Ponta Delgada, onde dentro de dez dias iria embarcar uma segunda carga de laranjas, caso os ventos favoráveis prevalecessem. Ao fim do mesmo número de horas, havíamos já perdido de vista o nobre farol de St. Nazaire e, num curso Sudoeste, havíamos já avistado os sombrios rochedos de Espanha em Finisterra, quando a noite encobriu a terra, que não voltou a ser vista até se vislumbrar, na manhã do quinto dia da nossa viagem, o pico cinzento do Pico, pequena mancha no horizonte distante do Oeste e uma das ilhas dos Açores, elevando-se mais de 7 000 pés acima do mar.
    Foi uma viagem curiosa, com aqueles velhos homens do mar bretões. Encontravam-se neles alguns hábitos singulares. O seu vinho azedo e vil, que consumiam aos galões, o seu alho, caviar e peixe salgado, o seu pão branco de pedra de trigo, os seus guisados e sopas, e café negro de tinta, e a sua cozinha sobre o convés nos velhos utensílios de há dois séculos, a todas as horas do dia e da noite, à maneira dos pitorescos navios costeiros cubanos que outrora conheci, são todos de memória pouco agradável. Mas a boa camaradagem entre mestre e homem, a total ausência da brutalidade ululante sob a máscara da «disciplina» dos navios americanos, a constante urbanidade entre os camaradas, e a polida humildade do capitão para com os marinheiros, com o seu esplêndido físico, o vestuário e agrupamento pitorescos da tripulação, o seu cabelo encaracolado, barbas finas e brilhantes, peitos tremendos e rostos francos, livres e solares, voltando-se sempre para nós em deferência respeitosa ou sorriso agradável, eram todos como versos melodiosos para um idílio encantador do mar.
    Naquela agradável viagem houve também tempo para reunir em antecipação algumas notas sobre os Açores; e porque há pouco sobre estas ilhas que se encontre nos livros, vale a pena aqui registar alguns factos dessas notas de forma inteligível e breve: Os Açores, nomeados a partir do açor, ou do falcão, são nove ilhas situadas num extenso grupo que abarca, na direcção geral de Noroeste a partir de Santa Maria, a ilha mais meridional, à latitude de Gibraltar, cerca de 350 milhas até ao Corvo, a ilha mais setentrional, à latitude da Filadélfia. As nove ilhas compreendem três grupos. O Sudoeste inclui Santa Maria, com 36 milhas quadradas e 9 000 pessoas; São Miguel, a maior ilha açoriana, com 224 milhas quadradas e cerca de 112 000 habitantes; e as Formigas, um grupo de rochas expostas, escondidas da vista por nevoeiros e excepcionalmente perigosas durante o inverno. O grupo central consiste no Faial, com 40 milhas quadradas e cerca de 28 000 almas; a Terceira, com 180 milhas quadradas e talvez 60 000 almas; a Graciosa, com 32 milhas quadradas e 13 000 pessoas; São Jorge, com cerca de 90 milhas quadradas e 19 000 almas; e o Pico, com possivelmente uma área de 80 milhas quadradas e 26 000 habitantes. Há apenas duas ilhas no grupo Noroeste, as Flores e o Corvo, a primeira com cerca de 130 milhas quadradas e 12 000 almas, e a última com não mais de 40 milhas quadradas e 1 500 pessoas. Os Açores, portanto, têm uma área total de 850 milhas quadradas, ou três quartos da do menor [estado] dos Estados Unidos, e uma população combinada de 280 500, mal excedendo a de Rhode Island, conforme dada pelo censo deste último estado para 1880.
    A forma mais clara e simples de localizar geograficamente os Açores na nossa mente é lembrá-los como um grupo disperso, ou como grupos separados, situados no Atlântico quase na rota dos vapores com destino à Europa, cerca de 2 000 milhas a Leste da Filadélfia e de Nova Iorque, 750 milhas a Oeste da Espanha e de Portugal, e 1 100 milhas a Oeste do Sul da Inglaterra. Historicamente considerados, os Açores são quase desprovidos de interesse, a sua relação com as fábulas das lendas orientais superando em muito o realismo da sua real descoberta e povoamento pelos portugueses por volta de meados do século XV. Em geral, os Açores têm sido verdadeiras Ilhas de Paz. As terríveis ​​lutas entre Espanha e Portugal quase nunca chegaram com efeitos nocivos a estas costas encantadoras; e o resmungo ocasional de um vulcão ou o desabamento de uma montanha, adicionados talvez de uma disputa igualmente pouco frequente com navios de guerra britânicos, ou com um pirata argelino, acerca dos despojos de algum pequeno e sonolento porto, terão sido as piores aflições que este povo simples e solar teve ou conheceu.
    Na manhã do sétimo dia a partir de Nantes avistámos São Miguel. Ao meio-dia estávamos lado a lado com os seus picos rochosos e promontórios basálticos a Noroeste; e, após várias horas de navegação agradável quase por baixo das muralhas ameaçadoras das alturas das Sete Cidades, da Candelária e do Pico do Vigário, contornámos a ponta Delgada e ancorámos dentro do porto artificial da principal cidade e porto de São Miguel, a pitoresca e sonolenta Ponta Delgada, a terceira cidade em tamanho e importância em Portugal e nos Açores. O porto em si é apenas uma ligeira reentrância dentro de um grande braço semicircular do mar, eternamente exposto a ferozes, embora balsâmicos, ventos do Sudoeste. A cidade estende-se para a direita e para a esquerda das docas por mais de uma milha, e sobe graciosamente por caminhos agradáveis de verdura e de floração de início de inverno em direcção a um grupo externo e circular de colinas altas e serrilhadas. Existe mesmo aqui uma certa sensação de elegância e brilho desde a ponta extrema do tremendo quebra-mar, onde ainda se despejam grandes pedras das pedreiras de Santa Clara, contornando os cais escorregadios, aqui e ali encimados por belas estruturas dóricas, e continuando pelas ruas ensolaradas, sombreadas de vez em quando por uma cúpula maciça, um zimbório desajeitado ou um minarete delicado — pois toda a arquitetura antiga tem aqui exemplos variados e caprichosos — avançando, passando a torre da igreja ou o antigo campanário, até às distantes e encantadoras vilas e quintas dos ricos, manchas brancas contra as encostas montanhosas cobertas de queiró. O pequeno porto está também um tanto animado. Acolá estão barcas e navios da Inglaterra, esperando por «charters», ou já carregados e atrasando-se na espera por ventos favoráveis. Uma visão cara a um coração americano é a nossa própria bandeira sobre o convés de um elegante paquete de New Bedford — uma daquelas embarcações acolhedoras ​​e convenientes que há não muito tempo navegavam pelos Açores, vigiando os fogos de sinalização à noite e as vizinhas cargas de portugueses fugitivos que, à glória questionável do serviço militar açoriano, preferiam tornar-se pescadores de New Bedford e Gloucester até aos 36 anos de idade; e ao lado do paquete está um daqueles baleeiros de New Bedford que desafiam as tempestades e percorrem o globo aquático em busca de gordura e osso, regressando ao porto de origem algures entre um a três anos depois! Ali adiante está o vapor-correio do governo de Lisboa, baixo, atarracado e sujo, com as suas chaminés sombrias quase escondidas em grinaldas de fumo, pois está quase pronto para zarpar na viagem de regresso a Lisboa, tudo na maior confusão à sua volta. Uma embarcação de aparência estranha, com mastreação de escuna, toda convés e popa, está logo atrás. A sua tripulação é um grupo hirsuto, todos armados com selvagens aguilhões de bois, como as lanças dos picadores espanhóis na praça de touros; está carregada de bom e elegante gado da ilha de Santa Maria, 40 milhas a Sul, trazido para os carniceiros de Ponta Delgada. Parecem dar-se conta disso, pois os seus berros e as picadas dos piqueiros são terríveis. Ao lado da escuna de gado está uma embarcação ainda mais estranha. É modelada tanto como um batelão de Havana quanto como uma barcaça de rio do Norte de Nova Iorque, com altas cabinas de três andares debruçando-se à popa e à proa, acima de lemes duplos, um pouco como antigos galeões de antigas e desvanecidas gravuras. Está armada para uma vela, e essa vela, parte em pano e parte numa leve esteira de verga, bate ociosamente sobre outra tripulação de rosto castanho e peito hirsuto, deitada em todos os tipos de posturas pitorescas sobre uma carga toda ela de cerâmica nativa, também de Santa Maria. O meu capitão bretão diz-me que esta estranha cerâmica, de um tipo usual para a cozinha, embora muitas peças sejam de forma extremamente graciosa, é amplamente exportada de Santa Maria para as outras ilhas dos Açores, e até para Espanha, para a Bretanha e para as Índias Ocidentais, e é levada em cargas, tal como a vimos na embarcação, sem embalagem e sem quebra, de tão bem feita. Os diferentes recipientes são pintados com um ocre avermelhado brilhante, antes de cozerem, dando-lhes uma cor alegre e acrescentando muito à aparência extravagante das belas donzelas açorianas, quando alegres procissões delas trazem água de nascentes e de poços distantes.
    Depois de o vapor do Governo ter saído do porto perante demonstrações frenéticas de interesse e consideração por parte dos milhares de pessoas reunidas nas praças mas baixas e ao longo dos cais, os oficiais da alfândega e de saúde, os barcos de tabaco, os barcos de pedintes e os barcos dos angariadores de hotéis pululavam agora em volta do nosso pequeno bergantim, e fomos abordados, levados, examinados, questionados e mais do que um pouco abusados, à untuosa maneira portuguesa; mas tudo com uma amplitude de polidez deferencial que excede em muito tudo que eu tenha visto em qualquer outro lugar. As vénias, os trejeitos, os levantares de chapéus e os salamaleques entre o nosso capitão e os oficiais durante as escassamente necessárias formalidades de entrada no porto foram surpreendentes. O meu capitão estava totalmente a par deles nestas cordiais ginásticas, mas o sangue frio de um clima do Norte que corria nas minhas próprias veias tornou a minha participação nestes procedimentos tão rígida e solene que fui imediatamente atacado como indubitável estrangeiro que deve ser capturado como presa; então, mais de vinte barqueiros e angariadores aparentemente semi-loucos cantaram, argumentaram e ulularam em horrível coro: «Em nome de Deus, durma na minha casa esta noite!». Mas o meu bom capitão bretão, berrando-lhes a todos «Bastante! — bastante!», salvou-me destes abutres superlativamente polidos; e, quando a noite chegou, levou-me no seu próprio bote para o cais, conduziu-me pelas suas escadas escorregadias e guiou-me por praças, pátios e sob enormes arcos em direcção a uma rua secundária, limpa e agradável, mas escura e silenciosa, até uma casa antiga, onde parámos. Aí, depois de muitas batidas e gritos, um velho apareceu. Ele e o capitão caíram nos braços um do outro e beijaram-se. Depois, prosseguindo solenemente ao longo de um pátio florido, chegámos a um apartamento onde se sentavam a esposa e a filha do velho. A primeira prodigalizou todo o tipo de saudações. A última, uma beleza açoriana de idade não imatura, sentava-se em silêncio e corou quando o grande bretão, também corando, lhe gaguejou a sua saudação. Era fácil ver que me tinha deparado imediatamente com um pequeno romance. Mas isso podia esperar; e em breves momentos toda a maravilhosa floração verbal de negociação resultara em assegurar-me uma casa, enquanto estivesse em Ponta Delgada, por apenas uma «serrilha», ou seja, cerca de 25 cêntimos em dinheiro americano, por cada dia. Sabia que o capitão ficaria a bordo, e, prometendo visitá-lo no seu bergantim no dia seguinte, desejei ao grupo um simples «Good night!», em inglês, ao que todos responderam com um untuoso «Deus o permita!», quando o idoso senhor, com uma lâmpada consistindo numa torcida a bruxulear fracamente numa bacia de banha, me mostrou um quarto confortável, cuja varanda dava para a rua abaixo. Neste, e sobre uma cama de cascas de milho tão limpa e doce como a que na minha antiga casa de quinta americana me inspirava sonhos agradáveis ​​de rapaz, passei a minha primeira noite nas balsâmicas ilhas dos Açores.
    Publicado em:
    1889-11-16 – Daily Morning Patriot, p. 1
    1889-11-16 – The Daily Inter Ocean, p. 13
    1889-11-16 – The Daily New Era, p. 6
    1889-11-17 – Springfield Republican, p. 2
    1889-11-17 – The Evansville Courier, p. 2
    1889-11-17 – The Daily Picayune, p. 14
    1889-11-17 – The Pittsburg Dispatch (2nd part), p. 15
    1889-11-22 – The Lincoln Daily Call, p. 7
    1889-11-20 – The Scranton Republican, p. 6
    1889-11-20 – The Scranton Weekly Republican, p. 6
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  • Vale a pena ouvir! | By Fátima | Facebook

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    Vale a pena ouvir!

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  • The 13 most unbelievable places the Vikings reached

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    https://www.msn.com/en-nz/news/other/the-13-most-unbelievable-places-the-vikings-reached/ss-BB1p8MW4?ocid=bingnews

  • A lenda de Lady Godiva, que terá cavalgado nua pela cidade para baixar os impostos aos pobres

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    Reza a lenda que a aristocrata Lady Godiva cavalgou nua pela cidade de Coventry para que o marido baixasse os impostos à população. Não há evidências históricas da cavalgada, mas o mito persiste até hoje. Lady Godiva, uma nobre do século XI de Coventry, Inglaterra, é mais recordada por um lendário ato de bravura e caridade que perdurou durante séculos. Casada com Leofric, o poderoso conde de Mércia, era conhecida pela sua generosidade, nomeadamente no apoio a instituições religiosas. No entanto, o seu legado mais famoso é a história da sua cavalgada nua por Coventry, um ato supostamente realizado para

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  • Como nasceu a nação mais antiga da Europa (não, não é Portugal)

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    Portugal é considerado, muitas vezes, o país mais antigo da Europa. Contudo, há uma nação que existe como independente há muito mais tempo.

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  • ano da serpente

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    Serpente, o animal astral chinês de 2025.
    O Ano de 2025 será comandado pela Serpente de Madeira Yin (乙巳蛇Yǐ sì shé),
    quer dizer, do sexto ramo terrestre, do elemento Madeira ligado ao princípio feminino,
    portanto à força lunar, misteriosa e intuitiva.
    Começa, em termos oficiais do calendário lunissolar, a 29 de janeiro de 2025 e termina a 16 de fevereiro de 2026,
    mas para a geomancia ou fengshui (风水 fēngshuǐ) o ano só inaugura a 3 de fevereiro na primeira primavera, lichun (立春lìchūn).
    Este ano, do ponto de vista das bênçãos telúricas, será particularmente agraciado porque terá duas primaveras,
    contando com uma segunda lichun a 4 de fevereiro de 2026.
    E como para os Descendentes do Dragão “as coisas boas vêm aos pares” (好事成双 hǎo shì chéng shuāng),
    promete boa agricultura e fertilidade,
    sendo igualmente propício à meditação e ao contacto com a natureza,
    mas também aos contactos sociais,
    porque a Serpente de Madeira, dado o seu elemento,
    é a mais comunicativa, criativa, amigável e favorável aos relacionamentos entre estes répteis.
    Além disso, este tipo de Madeira define-se por ser trabalhador, honesto e popular,
    nem sempre é logo reconhecido, pelo que traz como aliada a virtude da perseverança,
    que lhe dá o reconhecimento dos seus esforços ao longo do tempo.
    Ela é “a serpente que sai do buraco” (Kwok, 1997, 67).
    Pertence-lhe o período horário entre as 9h e as 11h da manhã.
    Embora o seu elemento fixo seja o fogo, como por exemplo, a madeira o é do tigre, e a sua cor constante seja, de acordo com o elemento, o vermelho,
    em 2025 predominará o verde, associado à Madeira.
    A serpente é o símbolo sexual mais forte
    e, por isso, nas filosofias yóguicas indianas da linha tântrica,
    que se estendem por toda a Ásia e, em particular pelo sudeste asiático,
    ela é kundalini, como bem chamou a atenção C.G. Jung em The Psychology of Kundalini Yoga.
    Notes to a Seminar Given in 1932.
    Como se relacionam os chineses com a força vital da serpente?
    De início eram bastante espontâneos, tinham uma filosofia animista que evoluiu para o taoismo popular,
    mas é preciso não esquecer que também desde muito cedo,
    a partir de Confúcio e do estabelecimento do Confucionismo, e de uma maneira sistemática desde os tempos Han,
    tem havido nesta cultura uma grande determinação para se controlarem as energias naturais.
    Esta tendência redobrou com a aceitação da filosofia budista, inicialmente muito distante das vivências naturais e tântricas.
    Durante os tempos da última dinastia Qing, as vivências religiosas ligadas ao Budismo intensificaram-se
    e, como tal, o conflito entre as forças naturais e espirituais tornou-se manifesto,
    abrindo uma guerra semelhante à que assistimos no Cristianismo,
    com Eva e Adão a serem expulsos do Paraíso por causa de uma supostamente famigerada serpente.
    A guerra aberta entre as forças naturais e da religião formal ficaria registada ainda na literatura chinesa,
    numa das histórias de amor mais pungentes, intitulada A Serpente Branca (《白蛇传》Bái Shé Zhuàn),
    também conhecida pelo nome dos seus protagonistas Xu Xian (许仙Xǔ Xiān) e Bai Niangzi(白娘子Bái Niángzi),
    que atingiu o apogeu da poularidade durante a dinastia Qing.
    Nela os amantes são irremediavelmente perseguidos por um bonzo budista,
    que lhes destrói a felicidade ao insistir para que Xu Xian (许仙) se afaste da Bai Niangzi (白娘子), já que ela era uma serpente encantada.
    Omitido pelo bonzo ficaria o esforço de meditação que levou a serpente a transfigurar-se em forma humana.
    O que o bonzo budista não via,
    como ainda muitos religiosos cristãos não conseguem perceber,
    é que na face exterior do que parece ser transgressão se esconde uma força natural e espontânea estreitamente ligada à mente de quem lida com ela.
    Para uma mente pura, a força natural nada tem de impuro,
    para uma mente turva, a força é, na versão ocidental, pecado, e na oriental poder negativo e demoníaco.
    A força da serpente é completa em si própria.
    Nada há a acrescentar-lhe.
    A atestar a sua perfeita completude, há uma história proverbial muito contada, Desenhar Pés à Serpente (畫/画蛇添足Huà Shé Tiān Zú),
    frequentemente encurtada na expressão Os Pés da Serpente (Shé Zú蛇足).
    古时候,楚国有一家人,祭完祖之后,准备将祭祀用的一壶酒,赏给帮忙办事的人喝。帮忙办事的人很多,这壶酒如果大家都喝是不够的,若是让一个人喝,那能喝得有余。这一壶酒到底怎么分呢?大家都安静下来,这时有人建议:每个人在地上画一条蛇,谁画得快,这壶酒就归他喝。大家都认为这个方法好,都同意这样做。于是,在地上画起蛇来。有个人画得很快,一转眼最先画好了,他就端起酒壶要喝酒。但是他回头看看别人,还都没有画好呢。心里想:他们画得真慢。他洋洋得意地说:“你们画得好慢啊!我再给蛇画几只脚也不算晚呢!”于是,他便左手提着酒壶,右手给蛇画起脚来。正在他一边给蛇画脚,一边说话的时候,另外一个人已经画好了。那个人马上把酒壶从他手里夺过去,说:“你见过蛇吗?蛇是没有脚的,你为什么要给它添上脚呢?所以第一个画好蛇的人不是你,而是我了!”那个人说罢就仰起头来,咕咚咕咚把酒喝下去了。
    Eis a minha tradução:
    Nos tempos antigos, no Reino Chu (楚國/国Chǔ Guó), havia um Senhor feudal que após ter prestado as devidas libações rituais aos antepassados, ainda lhe sobrou um jarro de vinho, que pensou distribuir pelos empregados.
    Mas como estes eram muitos, o vinho não chegava para todos, porém para um seria mais do que suficiente.
    Afinal como havia de ser partilhado?
    Para que se acalmassem um deles sugeriu:
    “cada um vai desenhar uma serpente no chão, o que terminar primeiro, obterá o jarro de vinho.”
    Todos concordaram com a ideia e assim começaram a desenhar.
    Havia um que estava cheio de vontade de o beber, por isso despachou o desenho num abrir e fechar de olhos.
    Ao olhar para os outros, viu que ainda não tinham acabado, pelo que pensou que eram muito vagarosos e disse triunfalmente:
    “Vocês são tão lentos que até tenho tempo para acrescentar pés à serpente!”
    Então, enquanto agarrava com a mão esquerda no jarro, com a direita acrescentou os pés ao réptil.
    Na altura em que estava a desenhar-lhe os pés e a falar, um outro terminou o seu desenho;
    arrebatando-lhe o jarro da mão, disse:
    “já viste alguma serpente?
    Se não têm pés por que lhos acrescentaste?!
    Por isso, o primeiro a desenhar uma serpente não és tu, mas sim eu.”
    Ao acabar de falar, levantou a cabeça e gluglu emborcou o vinho.
    Num equivalente estilístico para Português, o primeiro vencedor tinha borrado a pintura.
    Numa leitura ontológica, nada há a acrescentar a uma força completa em si mesma.
    Logo, este dito é usado para mostrar alguém a fazer algo de supérfluo.
    Quando a serpente pretende ser outra, tem aberto o caminho da metamorfose, semelhante ao do bicho da seda e da borboleta.
    Os chineses estão bem conscientes do poder da Serpente (shé 蛇), cuja leitura etimológica é o verme radicalmente outro, o bicho, a força antitética da civilizada.
    Esta energia natural imensa foi rebatizada como Pequeno Dragão (小龙 Xiǎo Lóng) para dar espaço ao réptil a se cultivar e exercitar na via espiritual,
    num percurso interior do corpo à mente, sem, contudo, perder as suas raízes telúricas.
    A serpente rasteja na terra,
    se conseguir erguer-se aos céus como um dragão voador, realiza a união das duas forças primordiais do universo, a do Céu e a da Terra,
    no interior do corpo humano e no exterior do corpo cósmico.
    Referências bibliográficas
    Baidu. 2025.“画蛇添足” Baidu. Baike. Disponível em:, acedido a 10 de janeiro de 2025.
    Jung C.G. 1932. The Psychology of Kundalini Yoga. Notes to a Seminar Given in 1932. Ed. Sonu Shamdasani, Princeton: Princeton University Press.
    Kwok, Man-Ho. 1997. Chinese Astrology. Forecast your Future from your Chinese Horoscope. Singapura: Asiapac Books.
    Revista Circuito (Redação). “2025 é o Ano da Serpente no Calendário Chinês. A Energia Predominante será a da Madeira Yin”. Revista Circuito. Disponível em: https://www.revistacircuitcom/2025-e-o-ano-da-serpente…/, 10 de janeiro de 2025, acedido nesta data.
    Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. “A História da Serpente Branca”, in Mitos e Lendas da Terra do Dragão, Lisboa: Caminho.
    Zhao Qingge (赵清阁) .1998. The Legend of White Snake. Beijing (北京): New World Press (新世界出版社)
    Ana Cristina Alves
    (Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM)
    Jornal Hoje Macau, 10 de Janeiro de 2025.
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