VOZES NO TEMPO
Paleolinguística, Genética e Paisagem (25)
AÇORES, NA TERRA DOS DRAGÕES (I Parte)
Os arqueólogos e pré-historiadores Nuno Ribeiro e Anabela Joaquinito, da APIA (Portuguese Association of Archeological Research), prospectaram no Monte Brasil, na Ilha Terceira, aquilo que a antropóloga Antonieta Costa interpreta como um conjunto de templos cartagineses do século IV a.C., dedicados à deusa púnica Tanit, com base numa consulta a Johanna Stuckey, professora emérita da Universidade de York, Toronto, e em informações académicas fornecidas por Moisés Espírito Santo a respeito deste culto ligado à água e a uma figura geométrica muito precisa, o trapézio, a qual formata os nichos escavados nas rochas e o tanque principal. A presença dos Fenícios nos Açores não explica, como é óbvio, a influência genética mongol e nipónica herdada por aquelas populações, mesmo que os Açores possam corresponder efectivamente às Cassitérides, ideia reforçada pela «Tabula de Ptolomeu» assinada por Nicolau Germano e editada em 1482, na qual estas ilhas lendárias são mapeadas ao largo da Galiza, por força de um rudimento característico da cartografia medieval que usava a síntese como meio de expressão, sem qualquer preocupação com a escala real dos territórios. Outra hipótese prende-se com a possibilidade de as Cassitérides não passarem de um nome genérico atribuído pelos Púnicos a todas as ilhas ou locais que contivessem estanho passível de ser minerado, ou comercializado, e aqui entrarão as Scilly (Sorlingas), a sul da Cornualha, que funcionariam apenas como entreposto, porque estanho pouco contêm, e as Ilhas Ciés, estas, sim, ao largo da Galiza, um pequeno arquipélago descoberto por Midácrito cerca de 1600 a.C., onde se minerava o estanho e o chumbo, e ao qual os Fenícios davam no nome de ‘Kicar’.
É impossível não notarmos a semelhança fonética e semântica entre Kicar e Kurga-ki, topónimo que o Prof. Sayce traduzia do Sumério como «terras do estanho, ou onde o Sol se põe», pertencentes ao império de Sargão I, as mesmas que C. Winters e A. H. Verril atribuem à Bolívia e não à Ibéria, posto que Kurga-Ki se situava além do «Mar Superior», ou seja, do Mediterrâneo, e não nele, propriamente falando. A associação entre os Sumérios e a América do Sul é também sublinhada por Jim Bailey, em Sailing to Paradise, que, com o apoio técnico de diversos geólogos e historiadores, sugere que os Sumérios conhecessem o Titicaca, «o lago do puma de pedra», pelo nome de ‘Manu’, «lago de nuvens», bem condizente com a altitude de 3 821 km a que o Titicaca se encontra.
A navegação na Antiguidade pré-clássica pouco a pouco vai largando o seu estatuto de tabu. E, como afirma Bailey, se queremos compreender estas antigas civilizações, comecemos por olhar mais para a sua matemática sofisticada, e menos para a sua cultura material. Estes homens do passado não dependiam dos almirantados nem de instrumentos de grande precisão, como os actuais radares, no entanto as suas capacidades náuticas iam muito além das nossas e da nossa compreensão. Será esta ideia assim tão extravagante perante dezenas de exemplos de animais que por si mesmos, através do seu instinto e memória, cruzam oceanos e continentes, mantendo geração após geração as suas rotas migratórias? Talvez o mesmo se aplicasse aos marinheiros de outrora, aptos a navegar os veios telúricos, guiados somente pelas aves, pelos ventos, pelas correntes marítimas e pelo Cosmos. Entre dois azuis, o do céu e o do oceano profundo, estes homens não se perdiam, conectados que estavam às subtilezas da paisagem em seu redor. Estes eram os herdeiros das civilizações imateriais, ou «pré-civilizacionais», como a que construiu Gunung Padang, povos que aplicaram todo o seu engenho e conhecimento numa outra dimensão da realidade, porque a vida material era para eles um mero reflexo do espírito, a onda tornada partícula, ou pura cimática.
Certo é que os Fenícios rumavam às ditas «ilhas do estanho», fossem estas quais fossem, para negociar e não para minerar, logo os seus habitantes seriam autóctones e não colonos púnicos, por isso susceptíveis de negociarem o seu minério com outras gentes, o que obrigava os Fenícios a manter secreta a localização do arquipélago a qualquer preço, como se verifica no caso do mercador de que nos fala Estrabão, que arriscou a própria vida para que os Romanos não descobrissem a sua rota. A serem púnicos os templos do Monte Brasil, pressupõe-se que os Fenícios tenham acabado por se fixar nas ilhas, ou que tenham influenciado culturalmente os seus misteriosos habitantes, que por força da lógica não seriam aguerridos, dado o seu longo isolamento e ausência de grandes predadores, assim como de grupos que com eles pudessem entrar em competição. Também há que lembrar que as Canárias foram colonizadas pelos Fenícios, que para lá terão levado escravos celtas e ibéricos recolhidos no reino de Tartessos e noutros locais do Mediterrâneo, podendo, inclusivamente, ter alcançado a Meso-América, o que é de todo plausível face à existência de vestígios de tabaco e de cocaína em múmias egípcias, que atestarão trocas comerciais com os povos ameríndios, também eles construtores de pirâmides e admiradores da obsidiana. A hipótese de em tempos terem existido variedades de cocaína e de tabaco em África não está fora de questão, contudo nunca o mais leve indício disto foi obtido e muito menos se explica a sua extinção, visto serem espécies altamente valorizadas.
Os sobreditos «maroiços», que se encontram em número assaz avultado, cerca de cento e quarenta no Concelho de Madalena, na Ilha do Pico, pelas suas características peculiares não podem de modo algum ser comparados a outros que recebam a mesma designação de «montes de pedras» criados pela limpeza de terrenos agrícolas. O termo «maroiço» generalizou-se, pois, sem qualquer critério, empurrando estas enigmáticas construções, que muito lembram as pirâmides aztecas, para o anonimato da trivialidade que está longe de os descrever. Não invalidando que haja nos Açores, como em qualquer outro lugar, montículos de pedras formados pela domesticação de terras, este não terá sido certamente a função dos maroiços nem dos «cairns» que abundam sobretudo na Terceira e aos quais daremos, aqui, o nome de moledros, principalmente aos que pela sua distribuição configuram padrões constelares, como o da Ursa Maior, e que se definem como altares cuja função, desde apotropaica a funerária, passando pelos cultos astrais e elementais, variou ao longo do tempo e do espaço, tal como a sua configuração, tamanho e complexidade. Com corredores por vezes longos e estreitos, dotados de câmaras no seu interior, de onde foram já recolhidos materiais líticos, anzóis, conchas, pesos de rede e fragmentos de metal e de cerâmica, os maroiços do Pico orientam-se para o Poente no Solstício de Verão, uma precisão que não esperamos encontram em simples montes de pedras. Alguns com cerca de treze metros de altura e construídos labirinticamente em degraus, culminando em pináculos decorativos, dispõem ainda de uma «praça» cerimonial, muito à semelhança de outros monumentos inscritos na mesma tipologia e erguidos em paisagens igualmente vulcânicas, como os das encostas de Tenerife e do Etna, ou os cairns franceses de Barnenez e de Gavrinis, datados do Neolítico. Tais características afastam por completo estes pretensos «maroiços» da teoria agrícola com que têm sido explicados ao longo dos últimos séculos.
O roteiro dos enigmas açorianos apenas começa aqui, pois a ele podemos adicionar a «coluna romana» de Angra do Heroísmo, que segundo António R. Colmenero é dedicada a Marco Opellio Macrino, imperador de origem berbere que reinou entre 217 e 228 d.C., mas que de acordo com Nuno Ribeiro será uma dedicatória a um «Daccios Theos» de feitura incerta; os megálitos da Terceira, com as suas pias esculpidas, iguais a tantas outras que encontramos pela Irlanda, e também na América e na Europa atlântica e mediterrânica; os hipogeus do tipo púnico no Monte Brasil, assim como outros nas Flores e no Corvo; ou as epígrafes fenícias da Gruta das Quatro Ribeiras, descobertas há quinhentos anos na Terceira, a par de um amuleto com o que parece ser também uma inscrição fenícia, encontrado em São Miguel. As grutas «funerárias» são outro exemplo que aqui nos cabe listar, assim como o «columbarium» das Lajes, que poderá ter sido uma necrópole cinerária idêntica a outras de feitura etrusca, como a de Centocamere (Grotte di Castro, século VII a.C.), ou romana, como as de Castle Boulevard, Vale de Elá e a de Beit Guvrin-Maresha, esta última em Israel, onde não foram encontradas urnas funerárias, tal como acontece na Terceira. Não nos esqueçamos da mítica estátua equestre da Ilha do Corvo, supostamente arruinada por um legado régio que tentou levá-la para a corte aquando de uma expedição à ilha, nem dos muros ondulantes como rios de pedras pontuados por bétilos, recriando dragões adormecidos e serpentes freáticas, a juntar às esculturas de leões e crocodilos, animais que por certo nunca habitaram os Açores, mas que surgem na Terceira em memória, talvez, da pátria norte-africana de alguns dos seus primeiros colonos, como expressão de uma cultura forânea que a antropóloga Antonieta Mendes Costa compara à do Egipto. Mas o maior enigma de todos é de longe o silêncio e a negligência do Estado e da Arqueologia portugueses face a este património imenso e inestimável, capaz de reescrever não apenas a História daquelas ilhas, mas a da humanidade, algo que não convém a quem governa pela ignorância, através de jogos cabalísticos e de fraudes científicas que visam trocar a realidade dos factos por quimeras políticas…
Imagem: Marcas de corte na Grota do Medo, Ilha Terceira. Sete reentrâncias que não podem ser atribuídas a um qualquer fenómeno natural. Note-se que o vértice que separa os dois conjuntos de traços, quatro à esquerda e três à direita, se encontra voltado a Norte. Fonte:
http://angrosfera.cmah.pt/