“Há vários anos que se discute o tema da devolução de bens patrimoniais aos países de origem. Muito se disse, muito se discutiu. Ainda nos lembramos de Melina Mercouri, ministra grega da Cultura, que, há mais de 30 anos, exigiu a devolução dos mármores ditos Elgin, com origem no Pártenon e levados para Londres há mais de dois séculos.
De vez em quando, um “activista” africano ou europeu, um ministro mais atrevido ou até um presidente mais decidido (Macron, por exemplo) voltam a levantar o problema. Assim pretendem dar nas vistas, seduzir governos africanos, dar contrapartidas para negócios de matérias-primas ou mesmo contribuir para o que entendem ser as novas relações de cooperação. Estamos agora num desses momentos em que políticos e activistas decidiram renovar a polémica.
Mais: já houve vários museus, públicos ou privados, europeus ou americanos, que decidiram devolver umas peças com origens mais controversas ou mesmo escandalosas. Em Portugal, a polémica chegou tarde, mas chegou. Ou antes, está a chegar. O ministro da Cultura, Adão e Silva, referiu-se ao problema. Ainda há poucas reacções públicas, mas já conhecemos o ponto de vista crítico e muito certeiro de um conhecedor destes problemas, o historiador João Pedro Marques (Observador de 7 de Dezembro).
Ao tornar públicas as suas intenções de estudar a questão da eventual restituição, o ministro da Cultura acertou. Esteve bem igualmente ao garantir que qualquer decisão seria precedida de investigação cuidadosa sobre a origem e o modo de aquisição desses bens. Também não esteve mal ao iniciar o envolvimento oficial neste processo que está na moda há dezenas de anos.
O ministro errou ao anunciar, não que mandava estudar, sem preconceitos, mas que iria analisar o problema tendo em vista a devolução. Quer isto dizer que a intenção está manifesta e que já se está a preconceber as conclusões. Pior ainda, que se está a condicionar os “investigadores”. O ministro não pretende apenas conhecer a situação, quer restituir e devolver, só que não sabe o quê, a quem e como.
Esteve mal ainda quando veio a público anunciar que não haveria debate prévio ou simultâneo. Não faz sentido, em democracia, que um assunto de interesse geral, público, nacional e cultural, não seja livremente debatido na praça pública.
O ministro da Cultura errou ao garantir que a missão seria reservada, séria e discreta. Não disse a palavra “confidencial”, mas deixou bem claro que era disso que se tratava. Enganou-se absolutamente ao afirmar que o debate sobre uma matéria como esta, por ser polémico e delicado, deveria ser precedido de estudos reservados. Ora, tudo leva a crer que é exactamente o contrário: por ser controverso e difícil, o problema deve ser objecto de discussão aberta e ampla, para a qual toda a gente possa contribuir, sejam académicos, activistas, coleccionadores, comerciantes, profissionais e amadores. O assunto interessa não só a pessoas com ligações directas aos bens, mas a qualquer pessoa preocupada com a cultura, a identidade, a política e as relações internacionais.
O ministro da Cultura foi desastrado ao dar a entender que o Estado deverá ter uma visão de conjunto, que é como quem diz um plano de restituição, antes de ouvir toda a gente interessada e de conhecer as opiniões fundamentadas. O ministro mostrou a intenção de devolver bens patrimoniais às antigas colónias, como se não houvesse bens de outros países, adquiridos noutras comunidades, de outros Estados ou através de intermediários de países independentes.
É possível, provável mesmo, que se tenham cometido roubos e actos violentos para obter objectos de arte. É certo que alguns desses bens foram objecto de massacres, assassinatos e saques (no Benim, por exemplo). Mas também é certo que tal se fez em todos os tempos, em todos os países, em todos os continentes e relativamente a toda a espécie de bens. Como é verdade que alguns países foram autores desses actos (Portugal, por exemplo), ou vítimas (Portugal, por exemplo), ou intermediários (Portugal, por exemplo). Como ainda é certo que muitos desses bens vieram de países já independentes, colonizados ou não. Quer dizer: saqueados, roubados, oferecidos ou comprados. Que fazer com esta variedade de situações?
Como agir com os bens em mãos privadas, adquiridos no mercado ou recebidos em herança? Deverá fazer-se uma lista de pessoas? Um exame às casas privadas? Uma exigência de declaração? Só os bens públicos é que serão objecto de investigação e eventual devolução? E os bens privados, tão ou mais valiosos?
De que bens e de que culturas estamos realmente a falar? África, Ásia, América Latina, Pérsia, Índia, Egipto… E os bens com origem em Portugal? E os bens portugueses em mãos europeias? Que fazer com bens transaccionados dezenas de vezes entre europeus, asiáticos e africanos? Que fazer com milhares de bens, muitos de grande valor e raridade, transaccionados todos os anos nos mercados e nos leilões de todo o mundo, com origem em países africanos e asiáticos já independentes? E se os vendedores são comerciantes conhecidos?
Não custa imaginar que, caso a caso, um país ou uma instituição decida devolver um bem a um outro Estado. Sobretudo se pensarmos, por exemplo, em bens que fazem parte do meio construído, como sejam pirâmides, esculturas, baixos-relevos, obeliscos, edifícios, muralhas e outros bens “pesados” que foram literalmente arrancados. É também admissível que certos saques tenham sido particularmente ilegítimos e violentos. Há casos conhecidos que poderiam ser analisados com o espírito aberto. Há ainda lugar para devolução de bens reclamados por legítimos proprietários. Mas, proceder a uma lavagem da história e a uma reescrita da mesma é do domínio do mais baixo oportunismo.
Até a ideia de inventário deve ser eliminada. De que estaríamos a falar? De elenco público e privado? Feito por quem e com que poderes? E o património português que ficou em África? E os bens de portugueses apropriados por africanos? E o património português que se encontra em países europeus? E o património africano em mãos de portugueses de origem africana? E o património chinês, tailandês, indonésio, colombiano, mexicano, persa, egípcio e árabe vindo de países que nunca foram colónias portuguesas? A mera ideia de inventário pressupõe logo roubo, ilicitude, apropriação indevida, desconfiança e suspeita. Ora, não se pode só suspeitar de uns e não de outros. Não se pode suspeitar de brancos e não de negros, nem de mestiços, chineses, indianos ou árabes.”
Algures entre o Polígono de Acústica Submarina e o Forte/Castelo do Cabrestante. O que será feito daquele canhão? O que será feito daquela estrutura?
Em 1999, quando foi gravado o programa “Horizontes de Memória” da RTP em Santa Maria, ainda estavam 2 canhões junto ao Forte/Castelo de São João Baptista, e outros 2 canhões junto ao local do Forte de Nossa Senhora dos Anjos. E desses? O que é feito?
Disse José Hermano Saraiva, segurando numa mão fragmentos de um dos canhões:
«Em breve, dos canhões só há a lembrança de que outrora eles estavam aqui. (…) Eu já mostrei isto faz agora meia dúzia de anos e volto a mostrar. Porque meia dúzia de anos depois ainda é mais urgente, e o estado destas peças ainda é mais lamentável.»
Acrescentou:
«Nós não temos outro passado. Se deixarmos perder este, o que é que nós temos para nos recordar aquilo que já fomos?»
E não diziam só os “de fora”. Ouçamos um “de cá”:
1) «A tua ilha tinha condições para haver guardado todas as memórias construídas desde a primeira casa de pedra que abrigou gente. (…) É certo que eles não saberiam que estaríamos tão interessados nessas relíquias do passado, mas isso não alivia a nossa sensação de perda.»
2) «Todos éramos guardiões dos lugares onde vivíamos, e por isso nesse tempo não era preciso haver zonas classificadas e protegidas oficialmente. Mas agora é. (…)»
3) «(…) E tudo em Santa Maria é demasiado precioso para que alguma coisa se perca.»
(Daniel de Sá, em “Santa Maria, a ilha-mãe”)
Afinal, o que é preciso para que se comece (mesmo) a valorizar e a preservar património em Santa Maria? Desde a fortificação mais antiga, à torre de controlo do aeroporto, não faltam “memórias construídas” que, anos após anos, décadas após décadas, nós, os “guardiões dos lugares”, elegemos como não prioritários na constante construção da nossa memória colectiva. E isto tem um custo. Quantas memórias construídas ao longo de mais de 500 anos deste lugar de memória e de futuro já deixámos ruir? Precisamos de classificar tudo? Precisamos de deixar cair a última pedra? Afinal, de quanto tempo mais é que precisamos para agir?
40 anos depois desta foto, e 20 anos depois do episódio no “Horizontes de Memória”, os trabalhos de investigação sobre a História de Santa Maria e o seu património são consideráveis, e as formas de preservação/salvaguarda de património também evoluíram. Saibamos aproveitar estes valiosos contributos. Mas saibamos também ser guardiões dos nossos lugares.
Não se esqueçam:
«(…) é .»
(Daniel de Sá, em “Santa Maria, a ilha-mãe”)
* Fotografia: ©J.H.C.Loura | ©J.P.Santos | ©ÂdSL
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