Categoria: ChronicAçores

  • Como ensinar a envelhecer

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    Crónica 578. Como ensinar a envelhecer 24.3.2025

    Ao tempo que esta Humanidade que conhecemos existe (podem ter havido outras), com a constante introdução de novas disciplinas no currículo escolar e ainda ninguém se lembrou de uma “Como ensinar a envelhecer em 3 variantes: saudável, doente, demente”.

    A falta que isso faz só se nota quando já é demasiado tarde e normalmente sem possibilidade de recuperação.

    O mais grave é que os interessados nesse currículo, na maioria dos casos, nem se apercebem.

    Os primeiros sintomas nem são visíveis a olho nu, e ocorrem quando se olham ao espelho de casa. Se, como eu, não foram partidários de fotos tipo autorretrato (a que pomposamente chamam “selfie”) nem se apercebem. Basta orientar a câmara do telemóvel para a sua cara, que logo entende o que é o envelhecimento.

    E não é nada gracioso, é brutal, nas comissuras do rosto escalavrado pela idade e vicissitudes da vida.

    É um susto, aquela cara não é a minha, nem eu me reconheço nela, não sou eu naquela imagem de telemóvel, são esgares de um velho, um idoso já muito acabado.

    Assustado, posso tentar rever a minha face no espelho de casa, mas mesmo aí a imagem já está avelhentada, agora que a vimos em formato “selfie”.

    Se a estes sintomas iniciais se juntarem doenças ou demência (hoje, vulgar e comum à maioria dos idosos), a necessidade do dito curso intensivo torna-se mais imperiosa.

    Para mim, já não virá a tempo, mas vou sugerir à Secretária Regional da Educação que pondere esta alteração curricular.

     

  • chrónicaçores 577. A FAMA, O DINHEIRO, A SOLIDÃO E GENE HACKMAN, 16.3.2025

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    577. A FAMA, O DINHEIRO, A SOLIDÃO E GENE HACKMAN, 16.3.2025

    Regularmente lemos nos diários relatos arrepiantes de pesoas que morreram sós, na mais abjeta miséria e abandono, e só foram descobertas muito tempo depois.
    Logo surgem comentadores bem-intencionados (ou oportunistas) a falarem das famílias que os esqueceram e abandonaram (em casa, no hospital, na vida), da ingratidão das novas gerações (a quem preconizam idêntica sorte futura).
    E as pessoas que leem isso nos jornais, nas redes sociais, ou na própria TV ficam por momentos, breves instantes compungidas e temerosas, imaginando que lhes pode suceder o mesmo. Eu nunca fui dessas pessoas, nunca me imaginei a viver só e a morrer só, e ao contrário de gene Hackman sem fama nem posses. A morte dele (nonagenário demente) e da sua jovem mulher (trinta anos mais nova) com uma semana de diferença em total solidão leva-nos a pensar. Todo o dinheiro, uma mansão enorme, a fortuna multimilionária e passaram-se dez a quinze dias sem que a empregada fosse lá a casa ver se estava tudo bem, ou o jardineiro, motorista, etc…já nem falo dos filhos e ne-tos…
    Eu que nem fama nem dinheiro tenho sempre imaginei que nunca morreria sozinho, e, de repen-te, o filho de 28 anos sai de casa, a mulher morre e fico sozinho com uma cadela. Eu, a pensar que só acontecia aos outros! Recordo e atualizo um extrato do que escrevi em 2024 sobre este tema:

    A grande solução dos problemas do quotidiano é a de haver sempre um amanhã. Até um dia em que não haja. A recente morte da minha mulher obriga-me a pensar nisso e equacionar novos paradigmas, duvido sempre se haverá amanhã. Quando a deixei no Hospital nunca imaginei que para ela não haveria outro ama-nhã. A vida nunca mais foi a mesma, amar em morte é doloroso, reaviva os 1001 momentos bons que parti-lhamos e dos quais tenho saudades.
    Sei que a memória vai fraquejando com a idade, tende a confundir tudo e a dar leituras erradas, mas a viu-vez em idade avançada conduz a pensamentos filosóficos variados, como a descoberta da teleofobia. Essa condição está relacionada à ansiedade ou insegurança, quem sofre desse mal pode ter dificuldades em fir-mar compromissos ou criar metas de longo prazo. Também não sou do tipo dos que aceitam um qualquer metaverso, um ambiente digital compartilhado onde pode interagir com outras pessoas, jogar, trabalhar ou viver uma vida virtual. Grandes empresas de tecnologia, como o Facebook (agora Meta), estão investindo nisso.
    Bem a propósito surge no ecrã a citação de Charles Bukowski “E quando ninguém te acorda de manhã, e ninguém te espera na noite, quando podes fazer o que quiseres, como se chama? Liberdade ou solidão?”
    Sei a resposta mas não quero essa liberdade a que chamo solidão.
    Pior do que isso ou do que aconteceu ao famoso Gene Hackman foi o caso do casal sexagenário nos arre-dores de Castelo Branco (meados de agosto 24), o marido teve morte natural, ela acamada morreu (de fome e sede?) sem assistência, ambos em lento estado de decomposição. Isso sim é solidão, numa sociedade de va-sos comunicantes. Somos todos desconhecidos, mesmo que aparentemente haja amigos no Facebook ou ou-tra rede social. Provavelmente aquele casal teria filhos e netos que os ignoraram, vivendo longe, preocupa-dos com vicissitudes das suas pequenas e miseráveis vidas, sem tempo de pensar nos velhos.
    Medito nisto e nos meus filhos. Morreria sem que soubessem, exceto a filha da Nini (que adotei como mi-nha há 30 anos) que cuida de mim à distância com a prova diária de vida, e que me telefona ao fim de cada dia.
    Se o alarme sobre o meu passamento não fosse dado com o dito telefonema diário, seria a nossa governan-ta Berta, quem me encontraria, a meio da semana, num qualquer recanto da casa, não muito decomposto nem mumificado. Pode ser que logo ao entrar na porta da rua o cheiro a alertasse ou a cadela ladrasse de forma distinta.
    É um pensamento que agora me ocorre amiúde, quando estou no duche e em especial neste mês de março 2025 em que houve uns tantos sismos fortes na ilha de São Miguel . Quase como o pensamento se houver um desses sismos saio do chuveiro como Adão no Jardim de Éden? (perdoem a latitude do pensamento, nem sou Adónis, nem a Lomba da Maia é o Jardim de Éden).
    Tento secar-me? Ou vestir-me? agarro num par de calças ou na toalha? ou decido-me a correr porta fora em busca da sobrevivência antes que tudo o mais? Imagino o riso e as caras da populaça ao ver-me naqueles preparos, lá se ia a imagem bem compostinha que tentei criar nestes 20 anos.
    Por aqui se pode calcular que em caso de sismo, estivesse onde estivesse, optaria pela solução “ó pernas para que te quero e os pruridos e constrangimentos sociais viriam depois”.
    Não entendo como as pessoas a quem tenho questionado sobre o tema, não têm (ou nunca tiveram) pen-samentos ou temores destes, nem saibam dizer-me se sairiam do duche com toalha ou roupa.
    Já por outro lado, morrer na sanita deve ser altamente desagradável, de odor desaconselhável, para quem descobrir o cadáver.
    Outra morte que, inversamente ao descrito, faz sorrir, é a do idoso (um rapaz da minha idade!), numa mis-são de infidelidade conjugal (com ou sem Viagra) que desfalece para toda a eternidade em pleno ato, granje-ando direito ao epitáfio “teve uma morte santa.” Pena teria eu da companheira de infortúnio, que em pleno exercício de atividade pessoal ou profissional, podia ficar irremediavelmente traumatizada, sem rendimento garantido e sem direito a apoio psicológico ou acompanhamento especializado.
    Creio não andar longe da verdade se disser que a maioria sonha morrer no sono, sem se aperceber do des-pertar em nova dimensão.
    Feliz ou infelizmente, cheguei à idade em que já não acredito no céu, nem em anjos e querubins a ladear um São Pedro de barbas longas e brancas, a verificar nomes na lista de admissão.
    Agora que o Papa Francisco proclamou que não há Purgatório, esse limbo, antecâmara de melhores dias, devemos interiorizar em termos de céu que o inferno este existe aqui e agora. O inferno é a vida na Terra, pe-lo que o melhor é ser otimista e imaginar outra dimensão (qualquer que seja) melhor do que esta.
    Atualmente também já não acredito no Terceiro Olho de Lobsang Rampa (que me fascinava em tempos de hippie nos anos 70) nem creio na reencarnação hindustânica. Talvez pretenda negar o temor extremo de re-gressar como barata. Como cucaracha nunca.
    E ninguém me explica como foi possível a um velho ator, nonagenário, demente, milionário, morrer daque-le modo. No meio da sua doença teria expulsado todos os funcionários em troca da solidão com que morreu?

  • crónica 576. ARTIFICIALIDADES 7.3.2025 chrys c

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    1. ARTIFICIALIDADES 7.3.2025

    esta e anteriores crónicas estão em https://www.lusofonias.net/mais/as-ana-chronicas-acorianas.html

     

    Andam os mais instruídos todos preocupados com a IA (inteligência artificial) enquanto outros há surpreendidos com a falta de inteligência. Os exemplos sucedem-se e não só nas cenas de humor que as televisões diariamente proporcionam.
    Há dias uma funcionária de uma cadeia multinacional não atendeu uma chamada de um cliente dos EUA porque não reconheceu o número e estava a chegar a hora de fecho da loja. Admirava-me que ela reconhecesse o nº telefónico sabendo que diariamente recebem chamadas de clientes locais e de todo o mundo.
    Num hipermercado há dias dei umas moedas para receber o troco certo, e a funcionária avisou-me que eu estava a dar dinheiro a mais , devolveu-me as moedas e deu-me o troco em mais moedas ainda, em vez da nota de cinco que esperava receber.
    Numa loja de artigos de papelaria, quis comprar 50 crachás, a funcionária solícita depois de eu ter feito a minha escolha do tipo pretendido, abriu a caixa de cartão, devidamente selada com a inscrição de “contém 50 crachás” e pôs-se a contar os ditos cujos, uma um…teria medo que a caixa trouxesse mais de 50???
    Quando se comparam fotos de praia nos anos 70 e agora algumas observações são necessárias, uma a da obesidade atual a todos os níveis e idades, a falsidade das formas do corpo com implantes de silicone, botox, plásticas, e sei lá que mais, tatuagens até dizer basta e outros adereços.
    Cada vez mais nos confrontamos com a IA a tomar decisões e a responder a questões nossas, sem que muitas vezes possamos explicar idiossincrasias dos nossos problemas e casos a outro ser vivo. Pos algoritmos que a IA usa foram delineados por humanos, como tal cheios de falhas, sem terem em conta especificidades e unicidades de cada caso, pelo que muitas vezes é quase impossível resolver tal problema ou caso.
    A IA nem é inteligência nem é artificial, trata-se de uma enorme coletânea de saberes e conhecimentos, trata-se de uma evolução da computação. “Não é inteligência, nem é artificial, porque depende do trabalho humano para treiná-la. É apenas probabilística, não é criativa, é uma descrição equivocada, um exagero de marketing que serve aos interesses de algumas grandes corporações de tecnologia.” Assim a definiu Nick Couldry da London School of Economics and Political Science, no Reino Unido.
    A IA incorporou-se na nossa vida quotidiana sem o pretendermos, desejarmos ou nos apercebermos das vantagens e desvantagens ou perigos de tal. “Confundir” os resultados da IA com conhecimento é cometer um erro de categoria profundo. “Se os resultados da IA, por mais eficazes que sejam como hipóteses, não podem explicar por que são plausíveis, então a IA é fundamentalmente diferente da inteligência humana”, observou Couldry.
    Couldry considera que vivemos uma nova fase nas relações entre colonialismo e capitalismo, que é o colonialismo de dados, uma ordem emergente para a apropriação da vida humana, de modo que os dados possam ser continuamente extraídos dela, com valor agregado. “O colonialismo de dados prepara o terreno para um novo modo de produção capitalista e organização socioeconómica, enquanto coexiste com o legado neocolonial. É uma continuação da tentativa do Ocidente de impor uma única versão de racionalidade ao mundo”, explicou o sociólogo.
    E atraídos por semanas de 4 dias, rendimento universal e quejandos, estamos artificialmente a aceitar as novas regras de uma escravatura cujos contornos ainda estão por definir…que proletários seremos nas próximas décadas? Quando a geração a que pertenço se extinguir que homo sapiens sapiens teremos e estará confinado a algum zoológico de História Natural da Humanidade ?