Views: 0
Views: 0
Dizem-me que os transportes na ilha de São Miguel estão configurados à moda dos anos 1970-1980 e às necessidades de então. Não estou a falar das cidades onde existem alternativas, mas das pequenas freguesias que polvilham a ilha, onde as pessoas que não disponham de viatura própria têm imensa dificuldade para se deslocar devido aos horários infrequentes e pouco convenientes da transportadora pública, como é o caso, na costa norte, da CRP. A este problema acresce a vetusta idade dos autocarros, a falta de cumprimento de horários, o excesso de velocidade e de lotação das viaturas, a que muito ocasionalmente a GNR (quando recebe uma queixa) se dedica a multar fazendo parar a carreira.
O que acontece na zona onde habito e entre a Lomba da Maia e a Ribeira Grande é um reboliço, os autocarros são menos, andam a desoras, vão apinhados de gente em pé (convido-vos a fazer a viagem Lomba da Maia – Ribeira Grande de pé), e os alunos chegam atrasados para além da tolerância de dez minutos na entrada
Não sabemos quando é que a Direção Regional de Transportes pensa adotar modelos do século XXI para transportar os habitantes da ilha que se deslocam às cidades, nem sabemos quando e como fiscaliza o cumprimento (ou incumprimento) das obrigações contratuais firmadas para o transporte de passageiros. Não sei sequer se é permitido o transporte perigoso de pessoas, em pé, nos autocarros nestas estradas regionais, mas creio que é tempo de se fazer uma revolução nos meios de transporte existentes que insatisfazem a população. Nem sonho já com um metro de superfície já que a hipótese de comboio, infelizmente, foi abandonada no início do século passado.
Quando o meu filho estava a estagiar no Nonagon na Lagoa, levantava-se pelas sete horas para apanhar uma camioneta para a Ribeira Grande, depois outra para Ponta Delgada e antes das dez da manhã chegava à Lagoa… e era a única forma de se transportar em coletivos para percorrer uma distância de 30,1 km… felizmente libertou-se desse calvário quando adquiriu uma velha viatura para se deslocar, demorando em média 29 minutos via EN4-2A and EN1-1A.
E os idosos que têm consulta no hospital ou médico, ou outros afazeres na cidade, e não têm carta de condução nem meios para adquirir viatura própria? Decerto que com as pensões miseráveis que auferem não disporão de 60 euros para irem e virem de táxi…
Mas é preciso agir para mudar este estado de coisas com autocarros velhos (em muitos já deve ter expirado o prazo de validade…), sempre a avariarem (alguns já arderam nos últimos anos durante o percurso), autocarros lotados, horários que não se cumprem (ora chegam mais cedo, ora chegam mais tarde e quem não está na paragem na hora de passagem, estivesse…), lotados nas horas de ponta (em especial nas carreiras das 07.30 e 08.00), passageiros em pé aos solavancos e sem segurança em caso de travagem súbita.
Senhores dos Transportes, responsáveis pela inexistente política de transportes coletivos capazes para as freguesias fora das cidades acordem para o século XXI e façam aumentar a frequência das carreiras, fiscalizem os horários e as condições de transporte…. Modifiquem contratos para se substituírem os velhinhos autocarros por outros mais modernos e mais pequenos para serem rentáveis … só peço que saiam dos vossos gabinetes confortáveis e inspecionem anonimamente os percursos entre Ponta Delgada, e Furnas ou para o Nordeste…levantem-se cedo e vejam o que é viajar na carreira das 07.30 ou das 08.00 da Lomba da Maia para a Ribeira Grande…afinal é para isso que vos pagam, o povo que paga impostos e não tem um serviço de transportes coletivos digno e capaz.
Views: 0
Nessa tarde não resisti e voltei aos Moinhos, já com meia centena de banhistas. A minha leitura, iniciada esta manhã no mesmo local, foi interrompida pelo tonitruante som do vozear de um senhor atarracado, de cabelo curto, alourado, acompanhado de uma jovem com tranças, de 4 ou 5 anos, permitindo as habituais conjeturas sobre se seria pai solteiro, viúvo, divorciado ou meramente um pai que foi com a filha à praia enquanto a mulher foi ao cabeleireiro ou às compras. O senhor que se sentara na mesa ao lado, debatia-se freneticamente com dois telemóveis e não se coibia de receitar Nimed e Amoxil a um pobre senhor Joaquim, do Porto, a quem fizera uma intervenção cirúrgica dentária há meses e que obviamente manifestava uma infeção no maxilar donde lhe extraíra os dentes. Sem dúvida que a memória desses dentes voltara para o assombrar e atormentar esta tarde, em pleno gozo das suas – crê-se que merecidas – férias numa soalheira tarde na esplanada dos Moinhos. Há dentes assim, depois de retirados do maxilar, ficam com saudades e querem voltar para assombrar o dono do maxilar. Poderia ser este o caso. Ouvia-se falar de troca de receitas, medicamentos retirados de circulação, e recomendações de antibióticos sem recorrer à penicilina e sem descurar a cortisona a que o doente podia ser alérgico, mas não era, dado que já lha receitara antes.
O – possivelmente ilustre veraneante – médico dentista e cirurgião, em férias, ali na esplanada dos Moinhos de Porto Formoso, impotente, com dois telemóveis nas orelhas a falar, ora com o doente, ora com o protésico, ora com a sua secretária para que esta marcasse a consulta de urgência ao senhor Joaquim para o seu colega que ficara de serviço, deixava a pequena lambuzar-se de gelado, sem notar que o mesmo se derretia e ia escorrendo para o fato de banho. E eu em busca de sossego e do marulhar dei comigo a pensar na saga dentária do Cristóvão de Aguiar que quisera poupar e fora ao Pico tirar os dentes. Também teve problemas com o maxilar, teve de fazer um enxerto de osso do ilíaco, mas apanhou uma infeção, com enorme hematoma, que o pôs numa cadeira de rodas durante meses, a mastigar papas de bebé, sem dentes, sem poder caminhar e a gastar muito mais em médicos, clínicas. Depois, teve de contratar um advogado para intentar uma ação contra o afamado cirurgião dentista, formado em Paris, a quem atribuía a sequência de males de que padecera durante longos meses. Acalentei secretamente a esperança de ser o mesmo dentista, o que tornaria a crónica mais interessante pela coincidência (que como sabem, não existem, mas têm causas matematicamente prováveis), mas tive de me contentar com a atrás narrada cena. O Português Contrabandista de J. Martins Garcia a piscar-me o olho e eu sem o poder desfrutar numa leitura de remanso nesta manhã. Terei de regressar em mais idílico momento, pois há pessoas que usam o telefone móvel como um megafone para que todos se inteirem das conversas em direto e ao vivo, como se a alguém pudessem interessar. É pena não haver um padrão universal para telemóveis, poderia ter emprestado os auriculares… Esta ilha é linda, mas digo-vos do outro lado só há mar….
Views: 0
Views: 0
Na celebração de trinta anos do aniversário da Revolução maoista, a República Popular da China decidiu abrir as portas aos diabos estrangeiros. Era 1 de outubro de 1979 e logo, me aprestei a colocar o nome na lista dos candidatos a visitar a RPC. Nenhuma viagem se realizaria antes de janeiro de 1980 e mesmo assim só me calharia a vez lá para março desse ano. Em cada mês apenas deixavam ir uma dezena de pessoas e calhou-me a data de 28 de março a 1 de abril de 1980 para passar 5 dias e quatro noites na China. Ainda tinha a noção adolescente de que o maoismo seria um dos melhores sistemas políticos à face da terra, e após a visita enterrei-os seis pés debaixo de terra.
A expetativa era enorme, e o grupo era reduzido, ao custo unitário de 1450.00 MOP (patacas, seriam hoje 150 euros). Não eram aceites pessoas com passaportes de Israel, Coreia do Sul, África do Sul e Rodésia (ainda não era Zimbabué). A acomodação era feita na base de duas pessoas por quarto, com banho privativo, e não se podia levar divisa estrangeira a menos que declarada, devendo-se adquirir previamente Renminbi (yuan). O documento que recebemos antes de partir explicava os costumes e normas de cortesia e aqui fica pela curiosidade que ora representa quando as viagens para a China são comuns, ao contrário de então. Perdoem a tradução literal do inglês.
O programa iniciou-se em Macau dia 29, bem cedo, rumo a Chung San para visitar a aldeia de Cuiheng-Cun, onde nasceu o primeiro líder chinês Sun Yat-sen, seguido de almoço em Sheak Kei. Depois, até Shun Duc para visitar uma fábrica de algodão, com descanso na Casa de Hóspedes de Shun Duc e visita à Comuna Tchong lòng Tam (Clock Fall Pond) e à Brigada de Produção Long-Rui na Comuna de Shiqi (Sha-qi), condado de Zhongshan, com uma área cultivável de 3600 acres (1450 ha ou 14,5 km²).
Em Cantão, o alojamento era no Hotel Bayun (Pak Wan) em Huanshi Road, seguido de ida ao Hotel Tung Fóng para visitar um clube noturno tradicional e ouvir música.
No dia 30 além da visita à comuna podiam apreciar-se as vistas, visitar o hospital, uma casa particular, um jardim-de-infância e uma loja do povo para fazer compras. Da parte de tarde após o almoço na comuna uma visita ao zoológico, a uma loja do povo e jantar no hotel. Depois, noite cultural com ópera no parque citadino em Cantão.
Dia 31 pequeno-almoço às 7 e meia, indo para Foshan, visitar o velho templo, a fábrica de cerâmica, uma de recortes artísticos em papel (paper cutting) e almoço em Foshan. De tarde, visita a uma loja de cinco andares, parque, à fábrica de marfim seguida de jantar no restaurante do hotel pelas 18.30.
Dia 1 – seis da manhã, verificação de bagagem e partida para a estação de comboio rumo a Hong Kong.
O panfleto dizia que Cantão era tão conhecida como Pequim ou Xangai pela Feira Internacional criada em 1957 (bianual, na primavera e no outono). Localizada no delta do Rio das Pérolas a 120 km de Hong Kong, Cantão era recomendada para se visitar o Instituto Nacional do Movimento Campesino, fundado pelo Presidente Mao, o Memorial ao doutor Sun Yat-sen, o Parque dos Mártires da Revolta de Kwang-chow, o Mausoléu dos 72 Mártires em Huanghuakang, o Parque Cultural no Rio das Pérolas, o Parque da Montanha em Paiyun (Nuvem Branca) e o Parque Yuehsiu, o Parque Liuhua (corrente de flores), além do zoológico de Kwang-chow onde habitam os tradicionais Pandas gigantes, indústrias cerâmicas, de seda, de moldes metálicos em Foshan, a antiga residência do doutor Sun Yat-sen na aldeia de Tsui Hang em Chung San, entre a Comuna Shek-kei e Macau. Cantão tinha então dois milhões de habitantes (hoje vai nos 12 milhões) e desfrutava da sua história de mais de dois mil anos.
Não constava do programa, mas conseguimos autorização para uma curta visita à Cidade Proibida dos Estrangeiros em Shameen (ilha de Shamian) onde vimos habitações das missões estrangeiras acreditadas em Cantão no tempo da Guerras do Ópio. Nela encontramos a casa que servira de Consulado e onde vivera o Cônsul Português, avô da minha mulher, até ao fim da Segunda Grande Guerra ((houve relações ininterruptas entre Portugal e a China até 1949, depois de Tomé Pires em 1517 ter desembarcado em Cantão como primeiro embaixador ). Shamian foi um importante porto de Guangzhou (Cantão) para o comércio internacional desde a dinastia Song à dinastia Qing. Do séc. 18 a meados do séc. 19, os estrangeiros viviam numa série de casas seguidas, conhecidas como as 13 Fábricas, junto das quais ancoravam barcos com milhares de pessoas. Era um ponto estratégico vital para a defesa da cidade durante as Guerras do Ópio (1856-1860).
Em 1859, o território foi dividido em duas concessões, a francesa (1/5) e a inglesa (4/5 da ilha) e ligado ao continente por duas pontes que fechavam diariamente pelas dez da noite. A ponte inglesa era guardada pela Guarda Real de soldados Sikhs, e a francesa por soldados Anamitas do Vietname. Havia companhias mercantis da Grã-Bretanha, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, Alemanha, Japão e Portugal ali estabelecidas, em mansões de pedra ao longo da marginal, em construções tipicamente europeias de telhados inclinados e largas varandas.
A ilha presenciou um sangrento e mortífero episódio entre cadetes da Academia Militar e estudantes, que ficou conhecido como o “incidente de 23 de junho de 1925”. Permanecem até hoje (1980) em bom estado de conservação a católica Igreja de N. Sra. de Lurdes (dos franceses em 1892) e a protestante Igreja de Cristo (construída pelos ingleses em 1865).
Nas últimas décadas todos os edifícios foram reconstruídos e recuperados, com placas a comemorar a utilização anterior, mas quando os visitei em 1980 estavam decrépitos e albergavam dezenas de famílias, cada um deles, numa ocupação selvagem ditada pela anexação em 1949, quando se converteram em edifícios públicos, apartamentos e fábricas. Por curiosidade fui agora mesmo ver na internet, Cantão e a zona de Shamian estava irreconhecível.
Dos velhos edifícios decadentes, sobrepovoados e quase em ruínas, restauraram as velhas mansões coloniais ao seu brilho de há século e meio atrás com todos os requisitos da moderna civilização. Estava rejuvenescida Shamian, podia ser Paris ou Londres com as alamedas de frondosas árvores, a traça larga das avenidas e as mansões resplandecentes. As estátuas ocidentais que pontuam as várias ruas lineares na visita de 1980 estavam em avançado estado de decomposição mas foram igualmente recuperadas. O consulado português, segundo creio, é hoje um Café Starbucks…
Voltemos agora ao roteiro de 1980 e a essa viagem mágica da primeira incursão na China de Mao. De início tudo correu bem até verem que a minha mulher macaense e a guia de Macau, que acompanhava o senhor Chen (guia oficial chinês), eram fluentes em cantonês. De facto, estavam a traduzir mais que o senhor Chen, pois este deixava de fora muita informação e desinterpretava muita coisa do que se dizia e se perguntava, mormente na Comuna.
Aqui, além de vermos os patos, galinhas, gansos, a produção de arroz, outros cereais e vegetais fizemos perguntas à dona da casa sobre o marido. Ela disse que se encontrava num campo de trabalho (de concentração?) a dias de viagem e há anos que não ia a casa. A tradução oficial do senhor Chen foi de que o competente trabalhador se dispusera a ajudar outra comuna que precisava mais dos seus serviços e da sua experiência….
Quando se quis saber como é que uma mulher que vivia só com dois ou três filhos pequenos (estavam na creche da comuna) tinha uma cozinha com tantas cadeiras, a resposta original era de que tinha de ter cadeiras para visitantes como nós, mas a tradução oficial dizia que lá se reuniam os membros da comuna para tratar de assuntos relacionados com a produção agrícola da comuna…. Ela tinha aquelas cadeiras todas por ser do Partido!
A visita ao hospital regional perto da comuna de Tchong lòng Tam foi assustadora (logo à entrada) com a enorme exposição pública de frascos e amostras de fetos com deformações várias, e sabe-se lá que mais ali estava em exposição. Uma verdadeira viagem ao mundo do Dr Jekyll e Mr Hyde acompanhada da nauseabunda explicação da diretora clínica. Se era um hospital modelo só suplicávamos que ninguém adoecesse na viagem. A precariedade das instalações, os equipamentos anteriores à Grande Guerra e um estado geral de abandono e decadência eram assustadores. Ainda se – ao menos – tivessem caiado as paredes depois da Grande Guerra…. Era de fugir…
Excecionais e memoráveis foram as visitas às fábricas de marfim, da seda, de “paper cutting (recortes de papel)” salientando-se na primeira, a detalhada explicação sobre a morosidade do trabalho mais fino e a precisa manipulação de instrumentos para as partes em filigrana de marfim. Era deveras impressionante como se conseguia colocar uma bola dentro de uma peça de marfim antes de estar completa para que não caísse depois. Semelhante às bolas que estão na boca dos dragões que adornam a entrada de muitos templos. Acabei por trazer além de uma pequena peça, elaboradíssima e complexa em marfim, um grão de arroz com o meu nome inscrito nele.
(Nota triste do autorJ:) – o destino ingrato deste grão de arroz foi o esgoto da cidade do Porto. Uma empregada doméstica, a violenta dona Violante, no começo do século XXI deixara cair a pequena caixa onde estava o grão de arroz, coberto por um minúsculo vidro, e para que ninguém notasse que a peça se tinha partido, foi buscar o aspirador e eliminou as provas do crime, sem nada dizer! Motivo para despedimento na hora com justa causa.
As fábricas de algodão e de seda eram deveras interessantes, a fábrica de metalurgia sem novidades. O local onde cortavam o papel de arroz para fazer figuras filigranadas era outro espanto de paciência chinesa e de precisão. Ainda hoje guardo religiosamente inúmeras amostras destes trabalhos artísticos tão originais.
A pior parte foi quando tentei que o guia me autorizasse a falar com o diretor da estação de rádio. Ocidentalizado como era, pedira como quem pede um copo de água, para fazer uma curta transmissão para Macau como previamente organizara (e levava documento comprovativo) com a TDM/Rádio Macau. O guia e o porta-voz oficial da estação começaram a falar em mandarim, a perderem a compostura, em voz altissonante, como se acabasse de cometer um crime insultuoso contra o Grande Líder, Mao Tse Tung (Máo Zédōng).
Sem perceber o que se passava (ninguém entendia mandarim) acabei por ser informado que era altamente ilegal tentar fazer uma transmissão da China para o estrangeiro e que jamais seria autorizada. Como resultado do pedido a visita à estação de rádio acabou cancelada logo ali, do lado de fora do gradeamento. Passei a conter-me mais, a partir desse momento, para não ser considerado um perigoso espião a passar segredos de Estado ao estrangeiro sobre o atraso de vida que era a China na época.
As estradas eram um susto, cheias de buracos, piores que as estradas municipais de Portugal, toda a gente conduzia e apitava ao mesmo tempo e ninguém pensava duas vezes se cabiam duas viaturas ou não, tentavam ambas passar em simultâneo. Os sobressaltos na estrada eram tantos que deixei de olhar em frente e passei a olhar para os lados, para os campos na esperança de ver algo interessante. Também ao observar as estradas, aí residira nova surpresa: nesses campos, em plena berma da estrada, onde quer que calhasse, vi muitos chineses e chinesas fazerem as suas necessidades em plena vista de todos, com o ar mais descontraído do mundo. Houve mesmo quem acenasse ao nosso autocarro…. Grotesco …. Ali na China, nem sequer estava disponível o buraco no chão, tão típico destas regiões asiáticas (como na Indonésia e Tailândia). Pelo que vi nos campos (e pelo que, mais tarde, li), em plena vista de todos, fazia-se tudo, amanhavam-se as terras, plantava-se e colhia-se o arroz, defecava-se, urinava-se e até nasciam crianças numa curta pausa, para não interromper o ciclo produtivo das massas operárias. Seria assim que pensavam aumentar a produtividade?
Com efeito, desde a ida ao hospital, era enorme o meu desencanto pelo atraso de tudo o que nos rodeava. Os templos eram soberbos, mas tinham sido construídos séculos antes. De facto, a grande revolução cultural mais não fizera além de matar a intelligentsia e enviar para campos de concentração os literatos, intelectuais e artistas e destruí-los. Na visão genocida de Mao todo o saber e conhecimento eram burgueses. (Deve ser por isso que hoje há tanto ignorante em Portugal, não querem que as massas sejam burguesas!) A coletivização dos campos limitou-se a tirar as terras a quem as tinha e substituir quem lá estava por trabalhadores iletrados e com poucos conhecimentos sobre a agricultura (uma espécie de má reforma agrária no Alentejo, mas em escala muito grande). Habituados a trabalhar, em funções repetitivas, sem capacidade de iniciativa nem conhecimentos técnicos, os trabalhadores que passaram a gerir os coletivos revelaram-se um desastre total. Da quase autossuficiência passou à necessidade de importar e à fome generalizada. Assim, a China virou, de celeiro do mundo a importador de comida. Grande Mao. Grande líder que assim me enganaste. Nada do que vi tinha correlação com o Livrinho Vermelho nem com os grandes placards de publicidade ao maoismo. Apenas certificava a enorme campanha de lavagem ao cérebro do povo iletrado, educando-o contra quem o regime pensava que eram os inimigos (de classe, claro) e pretendendo que era o povo quem mais ordenava. Muito orwelliano…nesta visita tudo o que era belo e despertava a curiosidade era anterior à Grande Revolução de massas e à Grande Marcha, nada havia para ver, pelo contrário. Apenas a derrota do inimigo capitalista.
Do quarto de Hotel, pelas seis e meia da manhã, não se viam carros (poucos havia ainda nesses idos de 1980, eram os do partido e poucos mais) mas sim autocarros bem antigos e fumegantes (a poluição ainda não era o perigo insalubre que seria mais tarde) e milhares, senão mesmo, milhões de bicicletas. No entanto, o barulho de buzinas fazia prever que se estava em Carachi ou Bombaim. Ao fim da tarde o espetáculo repetia-se em sentido inverso, da esquerda para a direita do meu campo visual, com o regresso das massas trabalhadoras aos locais de origem, nos dormitórios fora de Cantão.
A ópera chinesa no parque fora uma grande “seca” de mais de duas horas, com a habitual peculiaridade de homens maquilhados desempenharem os papéis femininos, na tradição da cantoria tradicional chinesa. Por outro lado, já o clube noturno fora uma agradável surpresa e uma viagem no tempo, com um grupo de instrumentistas e cantantes vestidos à moda da década de 1920, a interpretarem temas de música norte-americana do fim do século XIX ou princípio do século XX. Parecia o faroeste revisitado com olhos em bico. Todos os presentes se mostravam muito curiosos com estes diabos brancos que os escutavam, ainda se não tinham habituado a ver caras brancas (e uma delas era loura) pois poucos turistas tinham ainda entrado no país. As lojas do povo foram outra deceção pois poucos produtos estavam em exposição, lembravam as velhas prateleiras dos supermercados dos países de leste durante a Guerra Fria. Nada havia de interessante ou diferente para comprar, além do vinho de arroz e outras bebidas exóticas. Não havia dúvidas de que a China dava os seus primeiros passos na abertura a Ocidente.
Espantoso é ver o que conseguiram em trinta anos, como comprovei na curta visita de um dia à zona de Zuhai, no fim do 15º colóquio em 2011. Sem comparação, haviam convertido a China numa versão oriental das grandes metrópoles ocidentais com todo o consumismo que isso implica e a disponibilização de todos os bens. Não havia paralelismo possível entre o que observei em 1980 e o que via agora. Dava vontade de viver na China e partilhar a pujança económica de crescimento acelerado se considerarmos que se trata da pátria de 1,4 biliões de pessoas. Era a mesma pujança que vi em Macau trinta anos depois, nesta visita de 2011. Infelizmente, a missão a Macau durava apenas dez dias e teríamos todos de regressar para aquele país europeu que se afundava lentamente, com crescimento negativo esperado por muitos e bons anos, fruto da desgovernação de décadas após a revolução de 1974. Portugal era um país que se atrasava.
No entanto parecia muito desenvolvido em 1980 quando comparado com a China de então. Assim parecera também no início da década de 1960 em comparação com a vizinha Espanha. O milagre económico da China, não tenhamos dúvidas, foi feito à custa da violação de muitos direitos humanos e de abusos e crimes quanto à proteção do meio ambiente, num regime alegadamente comunista onde o Partido ainda hoje decide tudo sobre as pessoas que estão sob o seu comando. Mas fiquem bem cientes de que a maioria das pessoas vive hoje (de um ponto de vista material e de conforto) incomensuravelmente melhor do que em 1980. Disso não devem restar dúvidas a ninguém.
Esse crescimento económico, à custa da exploração desenfreada e sem pruridos, de uma mão-de-obra extremamente barata teve e tem o seu preço, mas quem for mais santo do que eu atire a primeira pedra e decida. Por comparação, em Portugal os trabalhadores estão cheios de direitos (férias, subsídios de natal, direito à greve, e sabe-se lá que mais), que dão para reformas miseráveis. Na China estas não existem.
Pela fisionomia apenas, não creio que os portugueses sejam mais felizes do que os chineses e com a agravante de que se queixam infinitamente mais. E os portugueses não conseguem gerir e fazer crescer um país mais pequeno do que a maior parte das cidades chinesas é porque (à sua moda) copiam o ataque de Mao à cultura e educação. Em ambos os casos, vi as diferenças de regimes e os resultados que em ambos se atingiram, apenas no decurso de metade da minha vida já vivida.
Provavelmente, não viverei o suficiente para ver a China passar ao estatuto de supernação, como os EUA já foram, mas dificilmente o poderia imaginar aquando da minha visita em 1980. A história é feita de cataclismos e convulsões, guerras e desastres naturais e humanos, mas a continuar como está, o mundo ocidental está definitivamente morto e enterrado e as nações emergentes como a China e a Índia poderão, em breve, dominar esse mundo. Limitaram-se a adotar a mesma fórmula, ajustada à enorme dimensão dos maiores e mais populosos países. Vi então (1980) e tornara a ver (2011) os alunos de escolas chinesas, silenciosos, ordeiros, obedientes e disciplinados. Que diferença para a selva das escolas portuguesas.
O sistema de escrita chinesa é o resultado de um longo processo de depuração dos primeiros pictogramas, há oito mil anos, que mais não eram do que uma estilização da realidade. A sua primeira aplicação metódica seria uma espécie de linguagem em código nas mensagens trocadas entre líderes militares com ordens e informações diversas sobre o terreno das batalhas ou disposição das tropas. No sistema uniformizado de hoje os sinogramas (carateres) são módulos cujas combinações determinam o sentido final. Os dicionários dão conta de mais de 48 mil carateres, mas a esmagadora maioria caiu em desuso e sobrevive em chinês arcaico. Para se ler um jornal em chinês “só” preciso reconhecer uns dois mil carateres – padrão que a China considera nível literário médio. Os programas básicos para chinês em computador incorporam entre 6 e 13 mil carateres. A escrita de um sinograma obedece à agregação lógica de ideias e é composto por duas partes: uma semântica que dá o sentido, e a sonora. O de madeira, ou árvore 木, corresponde na estilização a uma árvore, o caratere floresta é a justaposição de dois ou três carateres de árvore 林. Também os carateres que transmitem o conceito água utilizam módulos ou radicais de água (氵) como rio (河), sumo (汁) ou baía (澳). Por exemplo, a palavra Macau (Àomén em mandarim) escreve-se com os dois carateres – 澳 e 門 – que, isolados, assumem diferentes significados. Segundo o dicionário da Universidade de Estudos Internacionais de Xangai, o caráter 澳 isolado significa enseada, ancoradouro, Austrália, baía ou Oceânia, e o caráter 門 significa porta, entrada, escola, budismo enquanto seita, ou disciplina académica. Macau é em língua chinesa, uma porta – entre a China e o mundo – localizada numa baía.
Views: 0
Absque sudore et labore nullum opus perfectum est
Se há livros que devem ser lidos e cuja releitura prodigaliza novos rumos hermenêuticos, defluindo de um redivivo “prazer do texto” que incessantemente se descobre, outros há que merecem ser estudados com denodo, como é o caso desta obra de J. Chrys Chrystello, cujo nome e sobrenome têm vindo a ser adulterados, “desde Chrysler a Christofle, Castelo, Crastelo, Perestrelo ou Costello consoante os países.” (2009: 192). Exemplo emblemático de multiculturalismo (de que CC é “confesso defensor”), claramente introduzido e firmado, em termos óbvios, pelo conceito de “circum-navegação”, ChrónicAçores é, verdade seja dita, uma obra plural e total, protagonizada por JC, alterónimo, quiçá, de CC – sua mulher, HC, “comentara, um dia, que o grande problema existencial de JC era saber qual dos dois venceria o duelo, ele ou o seu alter ego.” (2009: 179) -, sempiterno viajante, por terras reais e reinos imaginários, e “castelão” ‘atrelado’ ao seu teclado informático, para o qual vai ditando os seus périplos à medida que, pela revivescência, se vai contando…
A estrutura circular da obra em exegese é, a este respeito, dilucidativa: abalando dos Açores, onde se encontra radicado, JC ruma até ao Oriente, não sem convidar para tal romagem o seu fiel leitor, ambos findando a epopeia marítima – “De Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores” – no Arquipélago de origem.
Do Ocidente para o Oriente e do Oriente mítico para o Ocidente gerador de mitos, é-nos dado deparar com um JC jornalista e “last but not least” e escritor. A trajetória em pauta é forçosamente escandida pela alternância de tempos verbais – o presente, o perfeito e o imperfeito -, reenviando para um antes e para um depois, delineando um ontem e um hoje, ora recuando ora avançando, socorrendo-se de analepses esclarecedoras e de almejadas prolepses (no que respeita ao leitor…) e configurando um vaivém temporal dinamicamente responsável pelo retrato sociopolítico de Portugal ao longo de, grosso modo, sessenta anos – “Voltemos de novo à matança do porco” (2009: 108); “Bom, voltando aos Açores, […]” (2009: 111); “Voltando à Rádio Renascença e ao automobilismo” (2009: 244); “Voltando atrás no tempo […]” (2009: 250); “[…] como veremos adiante […]” (2009: 172). Fazendo jus ao rigor prescrito por todo e qualquer trabalho académico (mas que, nos dias de hoje, nem todo e qualquer trabalho académico detém…), valendo-se de uma ampla bibliografia caraterizadora da tese universitária e do ensaio científico, consultando uma documentação genuína, não raro de difícil acesso, destinada a evitar o papagueamento de falsas verdades geracionalmente repetidas e cristalizadas em dogmas indefetíveis, JC observa “por entre as espirais do fumo dos cigarros” (2009: 103), disseca, analisa, comenta e arquiva não só o universo circundante, mas também o seu ego, que tem a generosidade de desnudar:
“A vida passada só fazia sentido para o ego que fora, mas já não era.” (2009: 20).
“Por ser quem fora se tornara naquilo que hoje era.” (2009: 45).
Paulatinamente vai esboçando o seu autorretrato de homem ateu e não agnóstico (conquanto nostálgico da fé dos tempos idos), obcecado pelo “politicamente (in)correto”, imbuído de desencanto – proveniente da quebra de ilusões e de rejeições sucessivas – perante a vida, propugnador de uma igualdade sem discriminações, inimigo de fundamentalismos ditatoriais e cumpridor escrupuloso de todas as leis. Justiceiro tenaz e inconformista ferrenho, “hedonista perfeito em perfeito levante exótico” (2009: 380), fumador, carnívoro (2009: 132) e exterminador de formigas (2009: 202), JC, poeta sonhador (2009: 237), anda “ao contrário de todo o mundo, como os caranguejos, mas em vez de andar para trás andava sempre para a frente, adiantado em relação aos restantes.” (2009: 125). Afinal, “JC é quem continua errado e não o mundo.” (2009: 209).
…, Há que destacar os capítulos consagrados à História de Timor, diacronicamente narrada e vastamente comprovada, que já havia sido, em certa medida, objeto parcial do ensaio publicado pelo Autor em 1999 e intitulado Timor Leste O Dossiê Secreto 1973-1975. Retrocedendo, na sua crítica arguta, aos métodos de Celestino da Silva, que tirava estrategicamente partido das rivalidades entre as diversas tribos, com vista à sua ulterior dominação, e que sabiamente recorria ao serviço doméstico de espionagem facultado pelas mulheres e amantes indígenas, revisitando a obra meritória de Filomeno da Câmara, na peugada do seu antecessor, e analisando o ensaio de Teófilo Duarte, suscetível de proporcionar um sólido conhecimento dos mais marcantes eventos novecentistas, vê-se o leitor confrontado – “Nem as elites nem os jovens alguma vez leram estes episódios que bem retratam a grande nação de tribos timorenses.” (2009: 410) – com a descrição da Ilha em forma de crocodilo – contada pelo poeta Fernando Sylvan (2009: 292) -, com a autodeterminação espoletada pela Revolução dos Cravos, com a criação dos principais partidos políticos de Timor, com a sempiterna oscilação entre a Indonésia, a Austrália e Portugal no papel de países colonizadores e neocolonizadores, com a independência encarada como horizonte longínquo a atingir, com as fragilizadas condições de vida dos Timorenses, advindas do racionamento dos géneros essenciais, com as dificuldades de comunicação fomentadoras do isolamento, da ignorância e da despolitização, com a inexistência de sistemas rodoviários, marítimos e aéreos, com o deficiente aproveitamento de plantações insulares (sobretudo a do café, verdadeira fonte de riqueza) e com a questão da lusofonia ou, por outras palavras, da preservação da língua e da cultura portuguesas.
Bem interessantes, a todos os níveis, se revelam quer os comentários políticos, breves e incisivos, com que JC brinda certas notícias publicadas no Portugal Diário e na Fonte Lusa de 21 de junho de 2006, ou no Blogue Causa Nossa e no jornal Público de 25 de junho do mesmo ano, quer o balanço final da controversa situação política timorense, retoricamente martelado pela quádrupla recorrência do sintagma verbal “Foi pena…”: “Foi pena que os líderes […] pensassem serem apenas umas pequenas ondas […] Foi pena que […] não se tivessem dedicado a emprestar pás e enxadas para ocupar os guerrilheiros desocupados […] Foi pena que […] não tivessem ‘nonas’ (amantes) para lhes contar o que se passava nos quatro cantos de Timor. Foi pena que tenham sido apanhados desprevenidos por esta insurreição tão bem orquestrada pela Austrália, […]” (2009: 471).
A tradição versus a inovação ou a regressão contra o progresso (e não serão as primeiras privilegiadas?) não escapam, numa perspetiva multifacetada, ao monóculo de lança em riste de JC, para o qual “a realidade já ultrapassou a ficção há muito.” (2009: 213): assim é que desfilam, em quadros visuais reforçados pela visualidade da escrita, a morosidade das viagens efetuadas entre Trás-os-Montes e o Porto (2009:31), bem como a celeridade, em termos relativos, dos antigos comboios “Foguetes”, ligando o Porto a Lisboa; a tradição de as famílias transmontanas, como a de sua Mãe, irem a banhos para a Póvoa, enquanto sua Avó e seu Pai elegiam, como estâncias de vilegiatura, as praias nortenhas da moda, como a Foz, Matosinhos, Miramar, Granja e, posteriormente, Espinho (2009: 45); a saudação amistosa dos ‘acinzentados’ cantoneiros que, no antigamente, desempeciam as bermas das estradas de uma indesejada vegetação invasora (2009: 97-98); o romantismo emanado pelos bilhetinhos sentimentais (2009: 121) que o jovem Romeu ou Lovelace endereçava às ‘encarceradas’ donzelas dos seus sonhos (batizada de Tina, neste caso concreto…), muito provavelmente tomado de empréstimo ao camiliano Amor de Perdição e Amor de Salvação ou, então, ao idealismo rural de Júlio Dinis que A Morgadinha dos Canaviais e As Pupilas do Senhor Reitor revelam à saciedade; a solicitude ancilar ou a prestabilidade das serventes ou sopeiras que, embora fardadas, se integravam naturalmente na família; a designação da bica – “Pavoni” e “Cimbalino” – no decénio de 60, que, metonimicamente, reenviava para a marca da máquina de café expresso (2009: 103).
Nos antípodas do passado mítico irrompe o presente desmistificado – “mudam-se os tempos.” (2009: 227) -, alvo certeiro da sátira cáustica e da ironia corrosiva: os cantoneiros, abandonados, deixaram o palco continental, tendo sido votadas ao olvido as suas castiças cabanas, em virtude do desaparecimento da Junta Autónoma de Estradas que, apesar dos escolhos, lá ia cumprindo a sua missão (2009: 99); a terminologia simples de antanho ‘complexificou-se’ (como é sólito dizer atualmente…), a fim de contornar eventuais réstias de complexo conotadas com as profissões mais humildes (2009: 29-30); a linha do Tua, que ofertava uma paisagem de beleza ímpar, viu-se e vê-se seriamente ameaçada, a par dos “Foguetes”, entrementes sumidos, que “apodrecem em Elvas” (2009: 210) e tendem a ser substituídos por luzidios e frenéticos TGV; quanto à vida sã da aldeia, ela dá a sensação de haver sido marginalizada, e até petrificada, – em proveito do urbanismo – num museu envidraçado, passível de visita, qual fenómeno arqueológico, pelos jovens citadinos desconhecedores da rusticidade e do primitivismo: “O campo é bonito para se passear nas férias e levar lá os putos (como quem os levava dantes ao zoológico) […] ” (2009: 211).
Sobrelevando a análise social, eis a História que fascina JC, “saudosista desses tempos de antanho a viver ancorado no futuro” (2009: 51-52), embora conhecendo de antemão a inviabilidade de alterar a visão estereotipada e convencional dos factos históricos. Nesta conjuntura, o mais insignificante caso de vida, o mais ínfimo detalhe social e a mais prosaica questão quotidiana não deixam de se revelar propícias à sua evocação, posto que “toda a gente fala, mas ninguém se deu ao trabalho de estudar a História…” (2009: 470).
É o caso da vida da Rainha Maria Pia de Saboia (2009: 35), das conjeturas tecidas, a partir dessa utopia e ucronia conducentes ao mito da Atlântida, sobre a descoberta das Ilhas açorianas (2009: 52-53), da ‘errância’ lendária das encantadas “Sete Civitates” (2009: 56), da enumeração de certos milagres atribuídos a N. Sra. do Açor (2009: 58-59), da digressão de teor explicativo – posto que JC também é professor: “JC explica […] ” (2009: 200) – pelas nove irmãs islenhas do Arquipélago (2009: 60 a 68), da descrição, por etapas sucessivas, do terramoto que arrasou Vila Franca do Campo (2009: 77 a 80), do elenco de alguns eventos telúricos açorianos ocorridos em Oitocentos (2009: 82 a 85) e da génese da devoção ao Senhor Santo Cristo dos Milagres (2009: 81).
Esta busca quase enciclopédica do saber surge evidenciada pelo culto do pormenor, atestando a profundidade da pesquisa e/ou a amplitude da investigação, traduzidas tanto pela diversidade genológica (lendas – Lenda dos Cavaleiros das Esporas Douradas e Lenda de Frei João Hortelão -, “faits divers” – ‘casos’ domésticos -, crónicas – sobre o rato de Cabrera, o lince-ibérico, o lobo-marinho, a truta-marisca e outras espécies em vias de extinção – e poemas – “Da Europa ao Oriente-do-Meio”) como pela variedade de tons (lírico, irónico e jornalístico, entre outros) que repassam a obra em apreço.
Aprende-se, nesta sequência, que o Renault 4CV foi produzido entre 1946 e 1961 (2009: 42), que o total de casais reprodutores de cagarros (e não de charros…) aponta para mais de noventa e cinco mil (2009: 101-102), que o processo de transformação do chá engloba sete fases – emurchamento, enrolamento, fermentação, secagem, escolha, armazenagem e embalagem – (2009: 107-108), que o Festival da Eurovisão, ao qual o povo lusitano rendia preito (ainda lho renderá hoje?), teve início em 1956, que o último modelo da Toyota adquirido por JC em Macau – Cellica A40 Liftback ST de 2 litros – nunca aparecera em Portugal (2009: 126) e que o protagonista-alterónimo, vindo de Bragança, passou a residir, na Lomba da Maia, num T2 + 2 com um sótão, onde o senhorio construiu dois quartos para João e um pequeno escritório para seu pai JC, onde cabem duas secretárias, duas estantes, os PC e os arquivadores (2009: 72).
Este prazer do detalhe gostoso apresta-se a desaguar na avaliação estatística, domínio no qual JC é exímio: assim é que, na Lomba da Maia, o clima parece ser, embora não seja, mais húmido e mais fresco do que em Ponta Delgada, com temperaturas variando entre 21º C e 25º C (2009: 72); por sua vez, e no ano da graça de 2005, duas botijas de gás custavam 22 euros (preço inferior ao praticado no Continente), a empregada ou auxiliar doméstica (servente ou sopeira de outrora) auferia 25 euros por 8 horas de trabalho, montante este que recebia o jardineiro por se ocupar da horta e do jardim; para mais não referir, e no que respeita ao mesmo ano, tomava-se, em muitas casas, um único banho por semana, havia tão-somente dois canais televisivos – RTP-1 e RTP Açores – e, num universo de aproximadamente 250 000 lares, apenas 32 000 se encontravam ligados à TV Cabo (2009: 86).
Mas onde a vertente economicista do economista JC deflagra de modo mais flagrante é, sem sombra de dúvida, na apresentação de projetos concretos visando, no futuro, o desenvolvimento dos Açores: a diversificação de queijos de qualidade, a exportação de produtos agrícolas, a criação do turismo marítimo subaquático, o incremento de passeios de barco ao largo das costas e a internacionalização dos cortejos etnográficos e do folclore português (2009: 498-499).
Comentador da sociedade em evolução debruça-se sobre o desajustamento das crianças mimadas e sobre a depressão dos jovens hodiernos e queda-se na ‘transferência’ ou ‘transposição’ da silhueta maternal para a mulher que reputa capaz de colmatar as suas carências afetivas), jornalista (iniciando esta longa carreira com a reportagem, seguida de muitas outras, do “Circuito Internacional de Vila Real” e da “Fórmula 3”) e cultor da etnologia [basta reler as sumarentas páginas sobre a Bragança da sua adolescência – Vimioso e Alfandega da Fé, em particular -, revisitar os deliciosos episódios passados na sua mátria Austrália – “país onde viveria o resto da sua vida” (2009: 347) – e seguir a explicação exaustiva sobre a bem curiosa cerimónia balinesa da cremação], JC é, igualmente, um perito em tradutologia (quem se não lembra da tradução, para inglês, de O pastor das casas mortas de Daniel de Sá?) e um romancista nato, ao qual não é alheia essa operação de espírito, sinónima de disfarce, que é o humor.
Não parece despiciendo, a este propósito, apresentar alguns exemplos, poucos que sejam… Aquando da visita aos Açores de sua filha mais velha, marido e neta, ouviram-se, uma certa noite, alguns “gritos porque um grilo estava no quarto deles e não deixava a miúda e a mãe dormir… Ia sendo uma verdadeira tragédia, pois, como sabem, aqui nos Açores, os grilos cantantes são descendentes dos dinossauros… Se, por acaso, uma barata entra em casa (não podem ter as janelas fechadas todo o dia) nem queiram saber a tragédia familiar que se coloca.” (2009: 74). Por seu turno, e no tocante aos sismos de 2006, reportados em jornal íntimo e sísmico, comenta JC que “O aeroporto fica na metade ocidental da ilha. Como o Audi A4 não nada nem voa, não terão hipóteses de sair…” (2009: 80).
Do mesmo modo, e no que respeita aos infindáveis dias de trabalho dos Açorianos, é o leitor informado de que “quase todos os locais [habitantes] trabalham pelo menos seis dias de longas horas, quando não é na agricultura que aí são sete dias… que as vacas não seguem calendários, nem feriados ou dias santos.” (2009: 86). Ainda nesta ordem de ideias, se é “devido aos professores que não faziam nada que o país está nesta crise”, esses mesmos professores terão doravante “de se matar a trabalhar para o país sair da crise.” (2009: 86). Prosseguindo neste contexto, confessa JC que não esteve presente no casamento de sua irmã, “que ia, finalmente, dar o nó com o Gil, que não era Grissom, como o da série CSI, antes pelo contrário.” (2009: 379). Quanto a Mia, terceiro grande amor de sua vida, ela “faleceu nos anos 80, JC estaria agora viúvo.” (2009: 257).
Parece ter soado a hora não do Juízo Final, mas de determinadas considerações, porventura impertinentes, sobre o valor e a originalidade indubitáveis de ChrónicAçores.
Primo: Obra de cariz autobiográfico, alternando pendularmente entre as memórias aconchegadas no baú (2009: 348), o autorretrato e a autoficção, ela é narrada não na primeira pessoa, como é sólito neste subgénero autorreferencial específico, mas na terceira pessoa ou, por outras palavras, numa não-pessoa (suporte de um discurso proferido por um eu e destinado a um tu) responsável pelo distanciamento algo irónico instaurado entre o Autor e o protagonista, entre CC e JC.
Secundo: Longe de privilegiar a narrativa retrospetivamente linear de uma existência em devir (e quem não desconfia da falácia dessas autobiografias cujo incipit é quase invariavelmente “Nasci”, nunca podendo ser o explicit “Morri”?), CC e JC tanto rumam a Timor e embarcam para Bragança como singram para a Austrália e arribam a Bali, percorrendo, desta feita, as várias fases da vida que, paralelamente às etapas da evolução social (os primeiros troleicarros que, em 1959, se estreiam no Porto, os entretenimentos dos anos 60 – King, canasta e paciências -, o programa 23ª hora na Rádio Renascença e a TV Rural de Sousa Veloso), se fundem e confundem, voluntariamente convocadas e mais ou menos inconscientemente interrompidas.
Tertio: Livro do conhecimento e da cultura, ele é, inequivocamente, um manual de aprendizagem – “Para quem não sabe”, informa JC (2009: 185) – nos mais variados domínios do saber, desde a geografia e a história, passando pela etnografia e pela sociologia, e desembocando na tradução e na arte do romance, proporcionando ao leitor o aprofundamento de uma ou de outra matéria precisa, deste ou daquele aspeto específico. Romance de um romancista de nome JC, e ao serviço do metarromance, a “circum-navegação” não deixa de servir os intuitos do antirromance, problematizando as fronteiras entre o imaginário e o real, equacionando os limites do vivido e do sonhado e questionando o tradicional conceito de romanesco, que começa, de súbito, a vacilar. A prova é que Daniel de Sá entra, nesta “circum-navegação” inovadora, como personagem, a par de João que, da personagem convencional, retém apenas um nome fictício…
Quarto: Surge, desta feita, o conceito de “circum-navegação”, suscetível de ser definido, em termos geográficos e literários, como narrativa autobiográfica de viagens. Se o espaço múltiplo vai fazendo o homem ao longo dos tempos do Tempo, o Autor vai escrevendo o livro ao mesmo tempo que se escreve a si próprio e que escreve sobre o outro que ele também é…
Tal escrita catártica (oscilando entre o passado ilusoriamente ressuscitado e o esboço do presente desatualizado) é regida quer pelo anelo de aprofundar o conhecimento do seu eu (não era “Conhece-te a ti próprio” a divisa do templo de Delfos?), quer pela vontade de fazer um balanço de vivências transatas, estabelecendo uma ponte para projetos futuros, quer pela ânsia de vencer o tempo e de triunfar sobre a morte…
Quinto: E que dizer, depois de conjugar o verbo circum-navegar, dos Colóquios da Lusofonia e dos Encontros Açorianos da Lusofonia, cujo Presidente, poeta da Crónica do quotidiano inútil e autor do Cancioneiro Transmontano, parece não ser J. Chrys Chrystello, mas JC, sequaz acirrado de uma certa lusofonia?
JC, aliás, irrita-se com a insignificância portuguesa “com manias de grandeza, que agora se reproduz em dez campos de futebol para estarem às moscas, para um aeroporto faraónico sem futuro, um TGV para espanhol ver e outras quejandas. É esta a Lusofonia que JC não quer.” (2009: 127-128). Aguardemos pacientemente o segundo volume da trilogia ChrónicAçores para podermos desvendar este enigma policial: No ‘rasto’ de JC…
Maria do Rosário Girão Ribeiro dos Santos, Fumane (moriente die), 6 de agosto de 2009