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UMAS CRÓNICAS DE 1971 MAS PODIAM SER DE 2024

crónica 2. a quem me ler, maio 17, 1971
  1. Há dias, conversava eu com um político, antigo ministro, homem ainda novo, inteligente, de trato afável, conciso e lúcido, e admirava nele o seu poder crítico. Discutia-se no ar, numa daquelas discussões sem bases nem fins determinados em que palavras vão puxando palavras, as pessoas vão ficando suspensas nelas e pouco mais. Nós, os dois, que até então ficáramos aparte, interviemos na contenda: eu como ouvinte e espetador, ele como contendor…e então, coisa curiosa, todos se voltavam contra ele num nítido esforço de confundir, baralhar, e ele, calmo, apenas clamando para ser ouvido, um a um, os ia aparando, aos golpes, até que na discussão só ficaram dois. Ele, com os seus 50 anos, mentalidade jovem, aberta, elástica, e o outro, um jovem de 30 e poucos, já habituado ao comodismo das posições catedrais defendendo a sua torre de marfim. Pois seguia eu empolgado a rápida cavalgada que os dois faziam e vi o espírito lúcido do mais velho voltar sempre ao ponto de que derivavam, mas com uma segurança e um saber que me extasiaram. No meu quase silêncio, fui-me sentindo, aos poucos, batido por aquele homem extraordinário e vi toda a sua juventude, a sua força, enquanto o outro com a sua reduzida agilidade mental se remetia a uma esporádica intervenção, em que se desdizia, e a cada contradição, ia cedendo campo ao opositor. Mas, dizia eu, que conversava com esse homem, que considero brilhante, e ele com a sua linguagem aberta ia descrevendo situações, narrando abusos e enganos e, ao mesmo tempo, criticava toda uma estrutura errada. Considerava desacertada a forma como se recolocavam ministros e similares e aos lugares de favor chamava espelhos de uma certa corrupção, pois dos negócios estrangeiros passara ele a diretor da junta nacional de frutas. Comentava, jocosamente, que gostando apenas de batatas, ananases e laranjas tinha de fazer planeamentos sobre a cultura de tomates. E tinha um horror danado aos tomates, tinha vontade de mandar trocar essa cultura pela de ananases. E perguntava, como se pode ser eficiente, como programar devidamente, se dos negócios externos passara aos problemas internos das frutas? Mal vai a governação no meu país, mas pior iria se nos negócios estrangeiros houvesse um produtor de frutas… Citando Brecht (sem insultar ninguém):

“Não há pior analfabeto que o analfabeto político. Ele não ouve,

não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. O analfabeto

político é tão burro que se orgulha de o ser e, de peito feito, diz

que detesta a política. Não sabe, o imbecil, que da sua ignorância

política é que nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de

todos os bandidos, que é o político vigarista, desonesto, o corrupto

e lacaio dos exploradores do povo.” Bertold Brecht (1898-1956)

  1. Está muito em voga agora uma espécie de moda nova e única: que as famílias de bom-tom e com pergaminhos, sempre que se reúnem, seja por festa ou luto, chamem a essas reuniões forsytianas[1]. Aqui está como eu admiro a democratização de uma ideia aristocratizante, apenas não serei capaz de perdoar que tal seja provocado pela exibição na TV de uma série chamada “The Forsyte Saga” da autoria de William Galsworthy. Mal vão as pessoas na minha terra vendo boa televisão. Veio tudo isto a respeito de um funeral onde estive presente e onde tal foi dito para meu espanto. Nos funerais, aprecio, até certo ponto, a parte social pois se fala, se discute, mas – no fundo – se convive. Por vezes, nem nos lembramos que estamos ali por causa de uma morte; aliás, o significado de morte vai variando com as idades, para nós – mais novos – e para os muito velhos quase nem a sentimos, uns por afastamento, outros por proximidade, mas os de meia-idade esses apanham choques grandes. Ainda não estão suficientemente perto dela para a sentirem e temerem mas não estão já tão longe quanto pensavam e começam a sentir-se não envelhecidos, mas velhos. Afinal, o que será a morte, o fim da vida ou uma nova vida? Para nós, cujas conceções religiosas do mundo andam arredias ou são peculiares, morte é apenas um ponto na vida, tal como o havia sido o ato de nascer. O nascer, para nós, parece-nos sempre insensível e é assim que pressagiamos a morte e, no entanto, cruzamo-nos com ela diariamente num desafio constante do qual – muitas vezes – nem nos chegamos a aperceber.
  2. Há arreigada em mim uma noção que gosto imenso de expor, apesar de incrédulo e cético. Acredito – e acredito mesmo – na evolução seja em que campo for (estético, artístico, musical, político, histriónico, etc.). Começo por fazer um aparte: à moda, como sendo aquilo que em algum momento agrada a uma maioria por muito minoritária que seja, mas não quero exprimir qual a espécie de agrado, nem suas causas e efeitos. Portanto, evolução não será moda. Evolução será – em períodos longos – a passagem de um estágio inferior a um necessariamente superior (não interessa quanto), portanto, um movimento vertical, ascendente, logo, dinâmico. Involução será a atitude estática, horizontal em que partindo de “A” se chega a um “B” que, embora diferente, não é superior, ou, por recriação de um ∂ anterior a “A” que obviamente não levará a “B”. Involução será também, aqui já, noção dinâmica embora num momento (estática em relação a períodos longos), um ciclo que se conclua num estágio intermédio, uma derivação pois intermédia de “A” a “B”.

Voltando à evolução e dado admitir a intelectualidade no homem, aquela levará necessariamente à perfeição, embotar aqui deva excluir a criação involutiva como é óbvio, que, pelas razões anteriormente apresentadas, não levará a nada.

Tudo isto serve para poder afirmar agora que discordo das pessoas que fazem inventários ou balanços do presente, pois tal só poderá ser feito num futuro indeterminado em que todas as coordenadas à distância do tempo possam ser tomadas em consideração, ao estádio anterior e ao próximo. E se há definitivamente coisa que eu não veja neste país, é evolução.

[1] Não do escritor Frederick Forsythe mas da “Saga da Família Forsyte” de John Galsworthy


crónica 3. napoleão e eça. 20 maio 1971

Aqui. Sentado. Deitado.

Neste silêncio mudo

Envolto por montanhas de livros

Inicio um problema matemático:

Conto os anos de vida e os livros

E nem tempo terei para ler os prefácios.

E Napoleão à minha espera algures, desejando mais do que nunca com a força própria do despotismo e a linguagem doce do exílio, que me debruce sobre ele e o examine, o estude, o disseque até ao mais profundo recanto da sua alma. Dizem que – pela análise bioquímica feita aos seus cabelos – o imperador morreu vítima de uma excessiva dose de arsénico. Apetece-me viajar e ir até Santa Helena reconstituir – um a um – os passos do prisioneiro e apurar uma certeza que pudesse ser histórica, mas Phillip Roth diz que mais urgente seria ler “Portnoy’s Complaint” (1969).

Mas, no canto mais sagrado da mesa-de-cabeceira há ainda um amigo silencioso que está certo que mutuamente jamais nos abandonaremos. Morto há setenta anos, ele é terrivelmente atual e espero, a qualquer momento ouvir bater à porta, e de seguida alguém entrar a anunciar-me a chegada dele. É tão atual como se vivesse hoje. Espera-se a cada página de leitura que fale de nós, como se tudo o que está escrito se referisse apenas a um dia de ontem extraordinariamente presente. A sua fluência e o seu ecletismo temático conduzem-nos e subjugam, são a sua imaginação e as suas vivências quem nos chama do lado de lá do abismo onde, isolados, repousámos à espera do milagre. É um deus que desce do Olimpo para nos chamar à realidade, descrevendo – a cada passo – a podridão celeste, e – nós – boquiabertos e indefesos o admirámos e invejámos. Cremo-lo maior do que Napoleão e os seus Impérios foram sempre reduzidos, embora construídos em bases que se consolidaram na razão inversa do escoar do tempo. É a ti, meu Eça (de Queirós) que me entrego, e é com as tuas asas que desejo voar. Espero que me perdoes a ousadia.

Não asfixio ainda por entre os livros mas anoto alguns mais que talvez consiga adquirir na Feira do Livro. Pergunto aos que lá passam e não param como podem viver sem livros, a menos que já vivam sem pão nem água. Mas não, não acredito nesses eremitas. Os que compram livros por comprar decerto se gabam de comprarem a cultura e aqueles que lhos vendem se gabam de a venderem. Mas nada tenho a comprar ou a vender, tenho apenas de estudar e de ler necessito para aprender. Que me interessa a Economia no curso do mesmo nome, se nunca me perguntam sobre Eça? Por que me obrigam a estudar sem ler? Só lendo se aprende…e já Napoleão cercado de abutres no leito de morte agoniza. Escrevem-se bilhetes sobre bilhetes e há sempre uma nova última vontade a firmar em papel. Quando acabar por morrer será ainda ele quem está escrevendo a História enquanto os vivos nem nas entrelinhas figurarão. E, general ou imperador foi sempre um homem ambíguo que se foi matando aos poucos. O arsénico só serviu para abreviar a morte corporal. Aos poucos Santa Helena, a ilha ia aniquilando a alma mais do que o corpo moribundo. Nela vimos o mesmo génio que chorava ao lembrar a pátria e o que dela havia feito. Sonhou tão alto que acordou antes de acabar o sonho. Todos os anos irei lembrar-me de lhe honrar a memória a 5 de abril, mas nada mais prometo não vá o Eça ter ciúmes. Vai longa esta missiva onde as ideias se libertam e se evolam deixando a palavra suspensa pelo pensamento.


crónica 4. outubro 12, 1971
  1. É muito vulgar agora ouvir-se falar de turismo, suas vantagens, necessidades, criação de estruturas e de bases, planeamentos, urbanizações, e todo um mar de termos vagos e imprecisos que nos asseguram – de antemão – que nada virá a ser feito como devia. Por outro lado, começam a ecoar – apenas agora – protestos já repetidos de zonas mais atingidas pelo flagelo e ouvimos falar de subidas de custo de vida, níveis de preços, inflação, hipertrofia económica, redes hoteleiras, canais de distribuição, etc.,…De tudo isto, nós, subdesenvolvidos ouvintes, quase leigos em tais assuntos, não nos podemos impedir de encolher os ombros de incompreensão, mas algo está indo terrivelmente errado pois, por experiência pessoal, constatámos como é caro dormir e comer no Algarve. Não nos vestimos lá nem tivemos dinheiro para diversões. Facto curioso: durante uma semana, conseguimos falar em português a três pessoas! “No smoking” – “Pas de pourboir” – “Hier gibt es Deutsche zeitungen” Estes e outros dísticos vi por aquelas paragens e andei horas à procura de um “Aqui fala-se Português” sem ver nenhum. Começa a ser triste ser-se português em Portugal, a menos que surjam reformas…
  1. Nesta época do ano aos hospitais públicos acorrem muitos velhos com doenças imaginárias. É curioso vê-los chegar, trémulos e encolhidos com vozes cavernosas, dores e queixumes, reais ou improvisados. Os internos, compreensivos dão-lhes baixa e eles ficam radiantes. Com as suas maleitas inventadas vão ficando ao longo dos corredores cloroformizados em camas de emergência, piscando os olhos já inseguros às enfermeiras mais azougadas. Passadas algumas semanas, esgota-se – para cada caso – a boa vontade dos clínicos empenhados em ajudar outros tantos que aguardam vez. Dos que saem, os curados vão contrafeitos pela troca de um lar pela outonal temperatura das noites nos jardins, inquietos ex-clientes de comida abundante e aconchegada dormida naquela Hospedaria da Caridade sub-reptícia, mas esses não tardam a esgotar a paciência dos médicos. Esse benfeitor corpo clínico é impotente e inoperante num problema a nível geral, onde as estruturas de apoio à terceira idade falham na sua rudimentar fase de projeto irrealizável…assim, apenas se vão minorando problemas quase individuais num perpétuo adiamento dos direitos básicos. Desses pseudodoentes muitos não voltam, nem deles se ouve mais falar. Outros, acabam por morrer iludidos no hospital com um ténue sorriso nas suas bocas desdentadas. Ninguém irá reclamar os seus corpos cujas ossadas acabam por ocupar as mesas dos laboratórios de anatomia servindo de cobaia às experiências de caloiros despreocupados. IMPÁVIDOS e SERENOS vamos assistindo indignados mas MUDOS às mortes que se repetem, onde, como e quando calha, sem alguém efetivar as reformas de que tanto se fala.
  2. …por falar em reformas veio-me à ideia, a do ensino superior. Qual não foi o meu espanto – há dias – ao passar pela Universidade e vê-la fechada com o seguinte aviso: “Encerrada para limpezas…“ verdade seja dita que a Reforma tinha de começar por algum lado…
  1. Escreveu Roland Barthes: ”O prazer do texto, tal como o simulador de Bacon pode afirmar: “Nunca se desculpar, nunca se explicar”. Nunca, nada se nega: “Volverei o meu olhar, essa será pois a minha única negação!” Ficção de um individuo (qualquer senhor Teste ao contrário) que por si mesmo aboliria todas as barreiras, as classes, as exclusões – não por sincretismo, mas pelo mero desembaraçar do velho espetro – “a contradição lógica” que amalgamaria todas as linguagens, mesmo as reputadas incompatíveis; que suportaria, mudo, todas as acusações de ilogismo, de infidelidade; que permaneceria impassível face à ironia socrática (levando o “outro” ao supremo opróbrio: contradizer-se) e ao terror legal (quantas provas penais baseadas numa psicologia da unidade!). Tal homem seria abjeto para a nossa sociedade. Os tribunais, a escola, o asilo, a conversação: “Quem suporta sem vergonha ou contradição?” mas este anti-herói[1] existe: é o leitor do texto, no momento em que atinge o seu prazer. Então se desfaz o velho mito bíblico, a confusão das línguas não mais é uma punição, o sujeito ascende ao clímax[2] pela coabitação das línguas que trabalham, lado a lado. O texto do prazer é BABEL FELIZ. Que esse seja também o vosso.

[1] Contre-héros.

[2] Jouissance: Terminologicamente ainda vacilante…de qualquer forma haverá sempre margem para indecisões: a distinção não será fonte de classificação segura, o paradigma, o sentido não será precário, revogável, reversível, implantável


o que mudou desde 1971? leiam esta crónica

1. crónica 1, maio 15, 1971

 

Daqui bem longe donde vos escrevo, o tempo vai, como é seu hábito meteorológico, influenciando a disposição das pessoas. É assim que me encontro com a chuva ao dar ao papel mais umas impressões deste país onde os homens vão tendo, cada vez mais, coisas para os preocupar.

Também é de chuva o ambiente intelectual pois as cabeças, cada vez menos, vão servindo para pensar e, creio até, que algumas nunca o fizeram.

Podia até dizer que é de crise a época se não o tivessem sido todas, mesmo as mais brilhantes e prósperas.

Na realidade, os homens andam arredios dos livros e eu compreendo-os: de há uns meses a esta parte, o marasmo, a calma e a inatividade livreiras e livrescas transmutaram-se a ponto de já não as reconhecermos. Sob o pretenso título de qualidade, o mercado tem sido invadido por tremendas doses de livros de bolso de todas e mais algumas editoras, num movimento que desmente toda a estagnação.

A única nota saudável deste ataque, tem sido, até agora, dada pelos preços que se apresentam otimamente reduzidos, e agora os editores nem se queixam de lucros, margens, impostos, etc. Eu sei que quando há fogo em nossa casa lhe deitamos água e só depois vemos que, embora nada esteja queimado, ficou tudo horrivelmente manchado e molhado. Assim os livreiros se empenharam em lançar obras e mais obras com todas as facilidades e agora que começam a fazer contas são eles a precisarem de facilidades.

 

De política isto não está indo muito melhor ou pior, embora o senhor Presidente do Conselho há dias se mostre apreensivo – e por um hábito que há muito se mantém neste país – quando um presidente está apreensivo, todo o povo o acompanha, mesmo aqueles que normalmente votam contra ele. Se está apreensivo é por que não sabe o que há de fazer a um problema que não é de agora, melhor dizendo, é de sempre.

Pois cá neste ocidental país, quando alguém sai de um ministério, caladinho e sem dizer nada, ei-lo que aparece logo a seguir sentado à mesa da presidência de um conselho de administração de alguma opulenta empresa. Pois então, porque não? Foi ministro, deu o seu contributo à nação, é justo agora que seja a nação a cuidar dele, e para tal, nada melhor que as cómodas cadeiras dum conselho de administração. E por outro prisma, por que haveria ele de voltar a ser quem era dantes? É necessário manter o progresso e evolução. Depois, o povo vê, o povo lê e começa a tecer comentários. Como sabem, um presidente teme sempre os comentários do seu povo, em especial numa democracia como a portuguesa.

Por outro lado, todo o ministro ou ex, tem amigos, tem influências, e afinal como vai ele presidente dizer-lhe: “Olhe o senhor não vá para esse lugar, deixe-o para os que são mais competentes.” E logo o ministro se sentiria reformado, que é a coisa mais aviltada que um ministro pode sentir e é por isso que vai para um conselho de administração.

E, afinal o elevado nível de vida e as receções? Como iriam ser mantidos esses bons e saudáveis hábitos desta república?

É por tudo isto que o presidente do conselho anda apreensivo e aquele sorriso que todos nós lhe conhecíamos anda agora menos aberto, mais mortiço. É que no fundo, ser presidente é uma estopada, isto de ter todos os dias nove milhões e meio de dores de cabeça é um pouco forte!

 

Falámos de livros e política e falta-nos falar em pessoas, sociedades, festas, enfim em todos esses atributos sociais que de nossos avós herdamos. Também aqui o tempo se tem feito sentir ensopado, pois depois da “molhada” queima das fitas, esta cidade [do Porto] continua mais pacata e trabalhadora que nunca, cada vez mais metida consigo própria. No entanto, pelo que dela conhecemos, é bisbilhoteira, como se fora uma vila de província. Nisso, provavelmente, se tornará, com toda a futilidade que, apesar do trabalho e dos que trabalham, vai caracterizando a sua outra face. É um snobismo pobre e até, um pouco ordinário, como o daquelas velhas que nada tendo nelas de atrativo, se vão empoando todas para passear em Santa Catarina e tomar o chá das 5 na Confeitaria Confiança.

À noite, continua parecida com uma cidade fantasma em que os espetros – oh monotonia – são sempre os mesmos nas mesmas esquinas. É sem dúvida agradável ter uns manes e uns vates como os nossos, além do mais, é saudável e já vai indo longa esta crónica, mais enfadonha que todas as outras e mais chuvosa também.

É bom, por outro lado, estar aqui neste isolado país, afastado de tudo e de todos. É despreocupante. É bem próprio de nós, este amolecimento em que vamos consentindo, nesta preguiça de estar longe da Europa. Este torpor que tão bem se dá com aquilo que ainda há em nós, de latinos, apesar das misturas de sangues e raças. E por o sol já se ir alevantando, aqui vos deixo.

 

 

OUTRAS PÁSCOAS

Outra recordação duradoura, indelevelmente associada à infância passada na casa da Rua de Maria Pia (19534-1959(, é a dos saltimbancos que apareciam, uma ou outra vez por ano, já não recordo exatamente quando, creio que na época da Páscoa ou natal, para fazerem as suas acrobacias na rua em troco duns tostões. Eram em geral famélicos e escanzelados e divertiam-nos com as suas habilidades. Iam desde os palhaços a um outro a vomitar fogo, a outros marchando em cima dumas “andas” que chegavam ao primeiro andar onde eu os observava, e outros números que a memória deixou escapar. Nunca excediam uma meia dúzia de artistas que assim ganhavam a vida: o que mais me espantava é que houvesse já mulheres naquele meio, numa era em que estavam quase totalmente apagadas da sociedade caseira que lhes era imposta.

 

12.22. DOMINGO DE PÁSCOA, 16 ABRIL 2006 CRÓNICA 17

 

Hoje não irei falar da estação festiva para muitos crentes pois – cada vez mais – deixou de ser um momento de reflexão. Similarmente ao Natal converteu-se num apelo ao consumismo de chocolates e amêndoas e ninguém se dá ao trabalho de pensar porque existem estas férias e feriados. É irónico que seja um não-crente, ateu até ao tutano, a falar disto, mas cada um é como é e não renego as origens cristãs embora professe um profundo respeito por todas as crenças e religiões desde que não sejam fundamentalistas ou exacerbadas por ódios ancestrais. Para mim a Páscoa é uma época de reflexão sobre o caminho terreno de cada um de nós (perdoem-me se isto começa a parecer uma homilia), sobre a inevitabilidade causal desta curta passagem, sobre a ineficácia de tentarmos deixar uma marca dessa passagem, sobre a futilidade de nos tentarmos afirmar enquanto seres vivos, sobre o materialismo exacerbado que nos preenche o quotidiano, sobre a falta de amor e caridade com que permeamos os dias, e a incapacidade de perdoar e ser perdoado.

Não, não era sobre isto que vos queria falar, sinto-me (como antigamente se dizia) um bota-de-elástico, démodé, ou (como se usa correntemente) um “cota”. Pois é, cada vez mais a vida se aproxima da ficção de Quentin Tarantino, realizador obcecado pela violência e brutalidade. Cada vez menos tenho paciência, mas é uma luta desigual, basta abrir um telejornal, folhear as páginas dum jornal ou fazer pesquisa sobre um qualquer tema e aí está o genocídio, a morte gratuita, o ódio racial, religioso ou económico. Cada vez mais me revolto por ser um ente isolado e minoritário neste mundo que me rodeia.

Quando vejo um Tribunal Português a entender que um castigo corporal a uma criança deficiente até faz bem, quando vejo os deputados a fazerem ponte em véspera de feriado e a não permitir a aprovação de leis por falta de quórum, quando sei da responsabilidade dos serviços secretos franceses em forjarem um documento falso (a falsa compra de urânio no Níger por Saddam Hussein) para impelirem os EUA mais depressa para a invasão do Iraque, quando sei que os franceses que nos deram a guilhotina e a Revolução Francesa estiveram coniventes no genocídio do Ruanda e mataram um fotógrafo português em Auckland no Rainbow Warrior, navio da Greenpeace, quando me questiono sobre as Torres Gémeas e danos do Pentágono em que nenhum avião ou destroços aparecem…, ou sobre o direito dos fanáticos israelitas usarem armas nucleares recusando-se ao Irão as mesmas (por que tem de ser excluído, só porque os seus representantes são fanáticos? E os dos EUA não?) … Não posso deixar passar esta oportunidade para saudar o atraso dos juízes do Supremo Tribunal (obviamente vivem no séc. XIX) pois ilibaram e absolveram a “educadora” que dava palmadas às crianças deficientes (a seu cargo) e as fechava em quartos escuros quando se recusavam a comer. Para além da decisão, em si mesmo incompreensível, o fundamento da mesma raia a loucura. O Supremo ao legitimar castigos corporais esquece o direito à dignidade, ignora a psicologia infantil e não tem em conta a sua honra.

O acórdão do Supremo Tribunal vai longe demais ao afirmar: “Qual é o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo dum filho que se recusa a ir para a escola, que não dá uma bofetada a um filho…ou que não manda um filho de castigo para o quarto quando ele não quer comer?” O Supremo acaba por vir dar razão a todos os que alegam que a justiça está de rastos neste país. Bater é grave. Uma criança, e para mais uma deficiente mental não vê a conexão entre os seus atos e os castigos, que têm um valor muito limitado porque as crianças não reagem por compreensão, mas por medo. Em vez de se castigar deve-se levar a criança a sofrer as consequências do seu agir.

Quem se recusa a comer não deve alimentar-se até à próxima refeição, mas não deve ser fechado num quarto às escuras nem sofrer castigos corporais. Reservemo-los para quem os merece: os juízes do Supremo Tribunal. O exemplo dado pelos familiares ou educadores e a confiança neles são fundamentais para a determinação da educação. O educando sabe que o afeto dos educadores depende do seu comportamento.

Muitas vezes, os educandos pagam as incapacidades, insatisfações e fracassos dos progenitores assoberbados, por uma sociedade cada vez mais exigente, que lhes não deixa tempo ou espaço para poderem criar uma base de diálogo com os filhos, a vida. A falta de objetividade e de distância emocional, a falta de pessoal e de formação profissional serão motivos para desculpar a educadora em causa. A compreensão da situação não pode, porém, acontecer à custa da outra.

Neste julgamento os juízes agiram como bons pais para com a educadora e argumentaram contra a criança como maus pais. Dum modo ou outro deram um péssimo exemplo a um país recheado de abusos e violência doméstica contra jovens e mulheres, um país de esqueletos nos armários, muito fruto da geração nascida do medo e do silêncio que os 48 anos de obscurantismo e repressão criaram. Num país em que há pais e avós a matarem crianças por não terem paciência para as aturarem, esta decisão veio dar consolação aos que usam e abusam da pretensa posição de poder, como maridos ou pais. Para ser reposta a normalidade sugiro que os juízes sejam publicamente humilhados com uns açoites e fiquem uma semana de castigo no quarto escuro.

Tudo isto questiono, farto de violência, desde os putos norte-americanos que se chateiam e pegam na arma do pai e limpam o sebo aos colegas, aos condutores portugueses que se comportam como assassinos ou aos vendedores de armas que vão de terra em terra a fomentar mais uma guerra civil.

…….

ALF~ºANDEGA DA FÉ:

Após a longa viagem que temos vindo a recriar por estradas que perduram vigiando de longe as novas rodovias e vias rápidas, chegava-se à Eucísia com a sede imensa que só podia saciar-se na fresca água da Grichinha, fonte milagreira em plena terra das feiticeiras. A água potável vinha da fonte da Gricha que ainda hoje dá água. Por cima, perdura a mais romântica, pequena, mas carismática fonte da Grichinha, modernizada com tosca escadaria cortada na rocha, a poucos metros dum lampião que ali implantaram para alumiar as noites, acabando com as memórias dos namoros furtivos seculares ocorridos. Uma dúzia de degraus de xisto levavam agora os poucos turistas que se aventuravam até essa fonte de mil tradições, em plena aldeia das feiticeiras com meras dezenas de habitantes. Em férias não havia nem burros nem burras suficientes para transportar a água necessária. Era preciso acarretá-la em grandes quantidades para depois aquecer ao lume. Tomávamos banhos diários, um hábito deveras estranho para as pessoas da aldeia, que, raramente, o faziam (como a anedota que dizia “banho? Olhe senhor que tomei pelo natal”, e era Páscoa). Para os de imersão usávamos uma larga tina cinzenta, de latão, feita pelo ferreiro lá do sítio, e depois pintada de branco, onde se podia tomar banho de semicúpio. Tudo feito com tempo e paciência que isto de pressas era para os da cidade. Na aldeia tudo tinha uma velocidade diferente. Só voltaria a encontrar essa mesma vertigem quando me mudei para os Açores. Também no arquipélago o tempo era mais lento, como se tivesse parado na década de 1950 ou 60 e se recusasse a aceitar a inabalável voragem do progresso.

 

Não posso precisar quantas vezes estive na Eucísia (talvez – pelo menos uma vez ao ano – todos os anos entre os 5 e os 17), mas lembro, em particular uma Páscoa, talvez em 1959, quando se juntaram os tios, primos e primas, do clã Magalhães, desde Alfândega da Fé ao Azinhoso, Mogadouro, ao Sendim da Ribeira, ao Porto e a Vila Real quando a enorme sala de jantar velha (que fora o quarto do meu bisavô) era pequena para tanta gente. Estava a abarrotar e até se conseguira encher a mesa comprida de doze lugares na sala de jantar nova dos meus avós. Havia duas cozinhas a funcionarem. As enormes salas de jantar cheias de gente. Essa será a única Páscoa que consigo evocar vivamente apesar de  muito jovem. No dia seguinte a refeição foi na casa da Quinta  cuja varanda era pequena para tanta gente como se pode ver na foto. A família toda junta, coisa importante e hoje raramente vista. Todas as outras celebrações pascais se perderam na voracidade do anonimato e da rotina. Ou então condensei-as todas numa só. Aquela perdurou, assim como a comunhão solene da primita  na Páscoa de 1962, onde também estiveram todos, enchendo todos os quartos e camas disponíveis nesse outro enorme casarão do Azinhoso.

A Quinta é hoje Turismo Rural Bela Vista, explorado pela Beatriz Licínia, prima direita da mãe e da minha idade.

 

Ninguém podia esquecer a imagem bucólica do Vale da Vilariça (antes da construção da barragem nos anos 1970) quando da varanda de casa, nas traseiras, em frente a Sambade, me deleitava com ela enquanto devorava Júlio Verne e outras leituras de férias. Creio que li, entre muitos outros livros, toda a coleção de 78 livros de Júlio Verne (em versão ortográfica de 1886) nessas férias, na varanda de casa com vista para o vale da Vilariça. Apesar da velha orthographia oitocentista, nunca dei conta de que essas leituras embotassem os meus dotes de escrevinhador e – por isso – ainda me custa a entender os opositores do Acordo Ortográfico de 1990, devem ser muito retardados.

Vi rostos e tradições do tempo dos Cristãos Novos, ainda envergonhados da herança marrana. E todas as recordações da memória quase soçobraram quando assisti com pesar, numa tarde quente em 2004, ao desmantelar dos móveis da sala de jantar dos avós. Evoquei um leilão de escravos, sem saber porquê. Eram cobiçados pelas primas do Azinhoso, agora da cidade. Comparei aquilo a um ataque da marabunta sobre tudo o que aparentasse ser velho ou ter algum valor. Ali estava eu, impotente, sem os poder comprar para, seguidamente, os libertar. Eram ambicionados pela prima do Azinhoso e milionárias filhas, cujo único fito na vida é amealhar e comprar. Reproduzir dinheiro como quem multiplica coelhos. Ridículo foi ela ficar com as chávenas do serviço que a Sical oferecia gratuitamente nos anos 60 por pensar que tinham valor e eu fiquei com um serviço da Vista Alegre que ela desdenhou.

Nas traseiras da casa havia uma enorme ânfora, de metro e meio de altura que armazenava tudo. Até azeitonas. Ficava mesmo por baixo da lendária figueira – favorita da mãe – cuja data se perdia na memória dos vivos de então, e que sempre fizera as delícias da minha mãe. Depois, por volta de 2005, a ânfora centenária foi ostensivamente roubada por uma das primas ricas do Azinhoso na sua voragem de tudo arrebanhar. Que a leve para a cova e nela se proteja dos fogos do inferno.

Por entre as grossas paredes da parte de frente da casa, onde havia os janelucos, revivi memórias agradáveis de tempos e de gentes que já não voltam mais, admirei-me com os finos tabiques que separavam os dois quartos na casa dos avós. Regressei temporariamente a um passado alegre e sem preocupações. Senti saudades. Sei bem o significado da palavra como já não o experimentava desde que cheguei a Timor em 1973. São as saudades que mantêm os sonhos vivos, dissera-me a outra avó paterna, um dia.

Foi doloroso voltar a percorrer os salões, os quartos nos baixos, ao lado das lojas, a enorme sala de jantar com vista para o Vale da Vilariça, o salão onde dormi pela última vez em 1988 (ou 1992?) agora que a casa estava esventrada de móveis. Os olhos humedeceram ao visitar os baixos onde dormi, em criança, nas férias da Páscoa quando os primos e os tios também lá iam. As lojas, no andar térreo, onde dantes se acumulava o azeite e seu vasilhame estavam limpas e vazias, já ninguém matava o porco, ninguém colhia o azeite. Já não havia colchas nem lençóis de linho para a procissão pascal, depois dos dias de silêncio e de dieta forçada. Nesses dias ninguém comia carne pois era um pecado que nos levava a todos para a autoestrada do inferno. Felizmente Bento XVI acabaria por decretar em 2008 que o Inferno não existe. Ufa, que alívio. Era a vingança de tantos temores infantis sempre ilustrados por imagens do catecismo que graficamente me haviam implantado por volta dos sete anos e que ainda me arrepiavam, mesmo sem crer. Tanto remorso inútil, tanto arrependimento desnecessário por que passara, tanto sentimento de culpa supérfluo.

Há sessenta anos, ainda existia a vergonha de se dizer que se descendia dum abade, cónego ou padre, tão comum a tantas famílias da região. Uma mescla de respeito, medo e veneração ao Cristianismo, que se impusera primeiro aos mouros da rica Alfandagh, para depois ser temporariamente mesclado com judeus que fizeram desta uma zona bem rica, antes de sofrerem os efeitos da conversão forçada e a clandestinidade, quando não a morte, o exílio ou a Santa Inquisição. Hoje, séculos depois do êxodo judaico, a região está mais pobre do que nunca, sem a riqueza assinalável que a história descrevia no tempo de romanos e de mouros, sem as riquezas dos judeus que tornaram esta terra fértil. Perderam-se também as histórias de princesas e mouras encantadas, sem avós que as contem pois já não há netos ou netas nas terras abandonadas.

Depois de falar em clero, nobreza e fidalguias não podia eu, ironicamente, deixar de evocar a retrete ali existente em tempos da minha infância e juventude. Era um buraco circular, aberto em tábuas de madeira, que descarregava para uma espécie de quarto fechado que não era senão uma fossa sética no andar térreo, mesmo por baixo da varanda das traseiras, com vista para o Vale da Vilariça. Não era preciso autoclismo, uns tantos jornais ou o luxo urbano do papel higiénico.

A “nova” casa de banho (ora transformada em pombal desde que a janela empenada se recusou a fechar e deixou entrar as pombas) foi construída no quarto que eu ocupava quando ia para lá. Data do final da década de 1960 quando ainda não havia água canalizada. Só mais tarde chegou o gás butano em botijas para aquecer o precioso líquido. A burra ia, dezenas de vezes ao dia, com os cântaros à fonte buscar água para bebermos e nos lavarmos. Não havia fonte artesiana ou outra, nem em casa, nem nos terrenos que desciam a encosta. As águas municipais só haveriam de chegar décadas depois, já, ia alta a revolução dos cravos.

Acalentei a utopia de recuperar o velho casarão, fazer obras, modernizando o interior e os confortos, sem perder a traça original e a sua simples fachada oitocentista onde sobressaiam janelucos pouco maiores que seteiras. Depressa me apercebi que, mau grado a idade, jamais deixara de ser um sonhador. A dura realidade trazia-me sempre de volta à mesquinha contabilidade dos números e cifrões. Aprendi que custava menos construir uma casa nova, de raiz, do que recuperar aquela. Para nenhuma hipótese tinha financiamento capaz. Além disso, havia o problema das partilhas que se arrastam por décadas. Todos querem acrescentar uns míseros tostões aos vinténs que já têm. No caso vertente, nem isso, apenas havia uma parte interessada. A outra apenas se manifestara contra a venda sem apresentar alternativas. Na sofreguidão de tudo querer, seria responsável pelo abandono e incúria a que a não-venda votara a casa. Tudo por causa de um primo direito meu, co-herdeiro juntamente com a minha mãe, que por entender que o casarão valia mais, não vendera quando havia outro primo interessado. Assim se desvaneceu a hipótese de ser restaurada e permanecer na família. Depois de ruir não faltará muito para acontecer o mesmo ao resto da aldeia.

Tal como gerações de nativos da aldeia em tempos idos, também eu me fui no vórtice impiedoso que a vida de cada qual impele. Entrementes, a existência tem de ser envelhecida onde existe trabalho e não onde as memórias e o respeito pelos antigos mandam. Sem querer, sem quase o pressentir o destino viera e ditara-me novo rumo. De um dia para o outro deixei os sonhos de parte (nunca os devia ter retirado do baú das memórias de infância, deviam lá ter permanecido adormecidos para sempre. Muitos foram perpétuos acompanhantes pelas quatro partidas do mundo, Timor, Macau e Austrália). Foi assim, que um dia parti, de novo. Embarquei dessa ilhoa transmontana onde vivi de 2002 a 2005, para arribar no meio do Oceano Atlântico, num arquipélago da antiga Atlântida, mais conhecido pela sua história de fogo e outras calamidades, meros montes cataclísmicos flutuando à deriva entre a Europa e a América.

Deixei para trás os vestígios de roedores e suas marcas fecais onde outrora pousaram mãos de crianças. Tantas ali nasceram e todas morreram já, sendo a minha mãe a última dessa geração. Há toda uma miríade de insetos e pequenos animais, que, lentamente, se empossam da habitação. Os bichos sabem, que vivalma ali entra agora que eu partira… Fui eu, com o meu profundo amor à terra e à memória dos avoengos, quem manteve o espírito da casa sempre vivo, com os sonhos e deambulações peripatéticas por projetos de reabilitação imobiliária. Ideias que nunca sairiam do papel para onde nem sequer chegariam a ser transpostas.

Contra o silêncio e ausência dos proprietários e verdadeiros herdeiros. A casa dos meus sonhos fora fantasiada pelos meus bisavós e seus descendentes, toda a prole se fora sem deixar rasto e idêntico fim estava reservado ao vetusto casarão. Não adianta sonhar. Dificilmente a casa aguentará muitos mais invernos. Acabará por tombar como os seus anteriores donos. Cairá para o lado, para dentro ou para fora. Desabará como um baralho de cartas, assim sem aviso ou alerta. Não o saberei logo que hoje estas notícias demoram a chegar de aldeias desabitadas, como dantes as notícias do mundo demoravam a chegar lá. Se cair para a rua terão de levar as máquinas e escavadoras para retirar todos os pedaços dos meus sonhos, perdidos e escaqueirados em mil pedaços, sem cola que os salve.

Evoco com saudades o tempo em que a avó materna, as tias-avós e primas faziam a matança e em outubro enviavam as primeiras alheiras; na Páscoa, os folares e bolas de carne; e no verão, a compota de ginjinha. Seguiram-me para todos os países menos para a Austrália que ali não podia entrar comida estrangeira. Comera alheiras e ginjinha feitas pela família em Timor e Macau. Ainda sentia no palato o sabor distinto, que sempre me acompanhara como um cordão umbilical. Há paladares como os odores, nunca se apagam do subconsciente.

 

Há muitas experiências de vida que seria útil partilhar e trazê-los de volta a um tempo em que a família era alargada, mas mesmo assim convivia nas festas de natal e Páscoa. Lembro-me da série Família Forsythe e creio que aquilo que se passou na mudança do séc. XIX para o XX está a suceder a um ritmo bem mais acelerado. Qualquer dia só nos conhecemos virtualmente através do Facebook ou qualquer outro instrumento virtual. Talvez seja melhor e assim haja menos intrigas e desavenças familiares. É mais difícil brigar com estranhos, em especial se não soubermos que são da mesma família… Bem, resumindo foi um Natal à moda antiga.