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surrealismo 1972

e-33 o futuro é hoje ago 10 1972

era como sentir um deus dentro de mim e depois aquilo começava a mexer, a mexer, borbotando, saía da pele, trespassando os ossos, raspando o ar ao mesmo tempo que as mãos: como quem corta um pão enquanto permanece imutavelmente estático, sem queixas, sem gemidos nem dores, moldado ao gesto, elástico.

era como sentir o tempo parado amanhã e apenas se visse o futuro em tudo, até no nevoeiro que crescendo dentro de nós já era húmido cacimbo, lá fora objetos mudos, quietos como jamais, nem dez segundos tinham passado e já era amanhã, vermelho, gorgolejante (o futuro às vezes pregava destas partidas).

olhos sem brilho desorbitados, vagos, num qualquer espaço que nenhum de nós sabia identificar: como se estivéssemos do lado de lá e quando nos mirássemos, esconder-mos-íamos com pavor.

então, vinha o espelho, as pessoas perguntavam por si próprias e as imagens lá perduravam, as pessoas não.

os rostos abrigavam-se num qualquer buraco à procura da luz que não vem dos buracos, já era dia, as ideias cavalgavam os minutos à desfilada por entre mudos sorrisos tolerantes de loucura. ninguém acreditava na linguagem dos olhos que já eram pó e habitavam um qualquer caixão. no entanto, ali estavam indesmentíveis, lembrando-nos como continuávamos vivos, de pé, naquele templo de morte.

era costume pendurarmo-nos no tempo e os minutos eternos e futuros brincavam connosco, puxando-nos as cordas para nos balançarmos aflitos e temerosos já que não saberíamos viver noutro tempo.

e já tudo era música, vinha dos olhos, penetrava o sexo até os dentes rangerem de prazer. tudo era música incluindo o encarnado das paredes nuas (jamais haviam sido caiadas – como numa acusação) e vinha dos poros de suor, do cabelo empastado como bolas à chuva de verão (que jamais tombará!). sempre a música, na luz, nos sons irrepetidos, mijando na lua, na poesia, na inutilidade de corrermos atrás do que sempre nos fugirá, irremediavelmente parados num vasto campo atulhado de urnas vazias – JAMAIS ALGUÉM EXISTIU LÁ. –

o som alucinado, as pessoas bem bebidas saindo com passos trôpegos, proclamando profissões entre confissões que nunca serão assinadas porque sinceras.

e um cão sem sexo pois nunca foi cão, encosta-se a um poste, fitámos o animal como se ele existisse e nos chamasse e houvesse poste, depois afagávamo-lo com o olhar, dormiríamos descansados com o poste seco, sempre esteve, apenas poste, nada mais.

um gato mia lugubremente a um guarda-noturno, sem rua nem farda, pois nunca foi admitido e continua a viver iludido, enquanto lhe pagam a fome com sorrisos de comiseração, e diariamente se arrasta pelas portas que lá não estão mas deviam, e já há quem lhe atire pedras, as quais não lhe acertando o trespassam, caindo atrás dele como se não o tivessem atingido, o que é mentira, pois as pedras tombam magoadas com restos de sangue coagulado, e o sangue das pedras é vermelho como o das estrelas que não brilham enquanto houver uma chávena de café para estancar o sangue com merda.

já é noite, sempre o foi, mas o sol não acreditou até ver uma ratazana morta de medo e um polícia à paisana num bordel, vestido de luxo como morcego de raça, por entre pedras preciosas de mil enganos fosforecendo na treva.

um mendigo busca um lato de lixo bem conservado e próspero para deitar os seus restos (que civismo! – comentarão e a esses responderei que nada disto existiu). depois, alguém irá, na sua opulência, remexê-los (inventar-lhes-á um nome, talvez banquete, palavra que conhece por ouvir dizer) e continuará de mãos bem estendidas sem que alguém vá e as acaricie (exceto com a saliva do desdém).

a rua vazia como se ninguém a ativesse atravessado desde há séculos, o que também é mentira (outra), pois das pessoas sobraram sombras (ficam sempre para alguém ir e guardá-las) e cabeças de crianças que não nasceram, espetadas no chão para exemplo.

passavam sem as verem, pisavam-nas e elas sem um grito, até que uma tropeçou e todos se calaram, era tarde, já chegara a hora de recolher, não havia tempo de arquivar imagens de agonia. já as gentes voavam mesmo sem quererem, incapazes de saberem como evitar pisar essas flores estranhas que ninguém colheria.

cansadas em casa sem asas nem memória (que esta é uma dor), queriam dormir tranquilas e drogavam-se, pílulas coloridas, cada uma era cabeça de criança em tamanho de alfinete sem ponta nem voz.

o sangue jorrando continuadamente como cascata em sonhos, como alguém quase a afogar-se querendo acordar para não morrer e logo acordando nadavam desesperadamente, não havia já quarto ou sala ou casa e ninguém restava para se lhe narrar o sonho.

era assim naquele tempo até que um génio inventou a fala e todos gritaram como se fora vital, então, outrem gritou a lembrança de que já antes se entendiam por gestos e daí nasceu o silêncio.

depois o hábito, o esquecimento, sem saberem o que existira antes do silêncio, e então já eram sapos de enormes bocas abertas, nem precisavam de nadar para (não) morrerem, pegajosos agarravam-se à paisagem evitando a todo o custo cair nela, dando-lhe cor sem movimento; como tinham o dom genial da voz sempre que respiravam e não sabiam que o faziam, logo morriam de novo (desta vez sufocados).

filmes mudos não havia, eram todos toupeiras à custa de terem os olhos vendados (para não dizerem do que viam), escavavam, sem uma palavra, incitamento, e tudo ruía por toda a parte.

deus não fora ainda inventado – nem era preciso – ninguém pensava e se o faziam, pensavam que não podiam, e acreditavam que não (assim estava determinado para não se contestarem dogmas).

foi nessa altura que a estrela se intitulou um qualquer nome e desatou a rodopiar, percorrendo o espaço em fuga interestelar, deixando para trás um rasto invisível que só tomava forma na imaginação das outras estrelas, as quais vinham de noite passear o cosmos, afastando poeira à sua passagem, desafiando o tempo, essa sucessão de instantes inacabados, infindavelmente continuados e perdidos desde o início, pois tudo foi sempiterno (até o silêncio) por nunca ter existido.

esta noção de amanhã é falsa, equívoca, ainda falta inventar o “agora” como quem pede desculpa e não sabe, e já de trás todos gritam dizendo que sim para se suspenderem da sua total ignorância sem terem de admitir e confessar a sua inexistência, e então, de novo, inventam algo chamado “ontem” para se autodesculparem, e logo lhes agradecemos sem sabermos porquê.

não estamos desesperados para nos suicidarmos com palavras, lá no íntimo nem a certeza de termos jamais nascido, tudo vago, sem contornos, sem cor nem forma.

e.35. a um natal que nunca chegou a ser. dez, 26. 1972

algo sem nome, premeditado (como quando se vê um boneco de barro decapitado), agitava-me pelos milhares longínquos demograficamente mortos no cataclismo nicaraguano.

correndo, desenfreado, retomava consciência do meu corpo, ofegante.

parava perscrutando o brumoso ar que a cidade me reservara: sempre igual, monótona, saturante.

virava costas, enganando-me com um qualquer sorriso de ocasião (dos que chegavam apócrifos e vinham pousar nos meus olhos desencantados) e seguia, buscando na extremidade dos meus sapatos uma solução: a resposta.

caminhava, alheado de mim e da catástrofe, as respostas variavam obcecantes – vãs esperanças em cada passada – à distância exata de mim próprio.

pontapeava uma razão nova, uma ordem nova por entre a terra enlameada (chegaria muito mais tarde).

atitude política – diriam, mais tarde, os carrascos do tribunal das ideias repetidas – mas, foi assim que [em 1972] cheguei à idade de 23 (vinte e três), já o vento da insatisfação varria a casa estranha da experiência por soletrar.

transido chegou dezembro como quem anuncia a lua nova, o natal, porquê negá-lo?

havia luzes, é certo, um pinheiro engalanado como quem quer depor palavras gastas, nunca inventadas (afinal, sempre existiram).

tudo era decalcado, espelhado, até mesmo os sapatos na chaminé-mistério, não fossem os miúdos desconfiar…

nascia revivificado um sorriso arrancado à força, as frases de ocasião e o mais.

no entanto algo destoava – talvez eu – naquele universo de múmias empoadas, até meus pais quereriam sentir-se diferentes mas não conseguiam, apreensivos, por todos os natais arderem tão depressa, impiedosamente.

tudo me irritava, músculos faciais contraídos (seria aquele o sorriso próprio?), acabrunhado pelos bolos, pelos doces tão tradicionaizinhos, tão habituaizinhos, tão sem-senso.

no instante futuro dei comigo do lado de fora, especado de pé à porta, como um estranho, nunca como mendigo pois é aviltante pedir no natal, usufruindo da pseudo-tomada de consciência dos incoerentes habitantes-do-dia-a-dia.

jamais esqueci o horror, a afronta sacrílega de ter saído na mais bela noite do ano, de amor e compreensão universais, blá, blá, blá e blá.

andei à sorte, nem sei já por onde, em que nuas e ventosas calçadas e ruas.

nem um só café aberto aquela hora, era natal e eu só na cidade sem rosto, só com os meus passos vagabundos errando sob catadupas de luz.

nem um carro, apenas aqui e além o alarido quente de casas habitadas.

até os pobres haviam emigrado.

desci até à baixa, lá onde as pessoas e as gentes se acotovelam pejando ruas e passeios durante o dia, e nem um guarda-noturno (será que os ladrões não comemoram o natal?), nem um lixeiro, nem um bêbedo, ninguém da fauna costumeira.

num solitário banco de madeira deixei que o tempo voasse sobre nós com aquela carícia quente de quem já não mede.

indiferente ao frio pensei, deitei contas à vida, senti-me infinitamente minúsculo ali no centro da minha curiosidade, da minha sinceridade ofendida.

ergui-me (muitas estrelas haviam já aparecido e passado sobre mim, alheadas da data-estátua-de-todos-os-calendários), voltei a casa, mãos vazias e vagas, todo eu me desvanecia na conclusão a que chegara.

em casa, as pessoas endomingadas, caras alegres, cor de tição (ou seria carmim?), o bom fogo, a alimentação farta, as conversas amenas e despreocupadas de natal (que tal achas o meu vestido para a “passagem”? as notas do …inho foram muito boas e as tuas …inha?), por vezes a puxarem ao sentimento (quem sabe onde estaremos nós daqui a um ano?), para resvalarem até à queixa familiar e improfícua da enorme subida do custo de vida, etc.,.

então, não sei bem porquê fiz-lhes sentir que já nascera e estava ali acordado, discuti com raiva, berrei (talvez tenha também falado), gesticulei enquanto me deixaram, agitei as pseudotranquilas consciências, adormecidas pelo calor de rebanho que ali eram; gritei tudo o que era verdade e haviam calado, afirmei direitos, incongruências, apelei para a falta de senso de semelhante reunião onde tudo cheirava a mofo (até as ideias), falso e malsão, derrubei as fachadas, as palavrinhas doces (próprias das sobremesas).

vi os rostos animados e alegres transfigurarem-se, afogueados, incomodados – quase até à congestão – ai, cambaleei no ardor excessivo da nova luta e calaram-me, isto é, calei-me, esgrimira sozinho até me sentir acossado e ninguém me perdoaria por ter despertado o que se esforçavam por manter em permanente letargo.

jamais esqueci esse natal, o primeiro, talvez único, em que senti a plenitude do seu significado.

era como ver presépios nus, árvores tão-só árvores, homens sem roupagens de fingimento, sem esses falsos trejeitos de fraternidade, sem caridade instituída por calendário, derrotados, amarfanhados como se fossem homens – nada mais.

vi-os a todos vencidos, como maus atores, péssimos amadores sem terem ensaiado a peça que só é levada à cena uma vez ao ano, e, conscientes da exigência do público sempre predisposto a deles exigir tudo.

foi um dia, talvez igual, mas um natal diferente sem esoterismos, mas mais sentido na sua milimétrica dimensão.

nesse longínquo ano não nasceu o menino-jesus para eterno descanso do homem, nem houve um pai-natal descendo da chaminé, foi um dia (de natal) como todos, triste…morrera apenas uma decrépita tradição, ultrapassada pela rotina de cada dia, com a beleza gasta dos astros que não brilham porque incansavelmente lutam pelo direito à vida.

para além do espanto amordaçado às bocas estarrecidas, para além da incompreensão, as crianças ficaram marcadas, perdida que foi a ingenuidade, não pularam, nem tampouco gritaram de alegria.

as prendas pareceram muito mais modestas (aliás, pareceram ter o seu valor real e exato), as caras, outrora gaiatas, moldaram-se fúnebres, enquanto as cabeças abanavam lentamente (último refúgio), para não aceitarem o pesadelo, um estranho (já não eu) rompera as tréguas do natal, algo se perdera para sempre, talvez a quase-sensação de paz eterna e imorredoira.

hoje, já quando a voz se me entaramela um pouco ao peso dos anos (consumidos numa voragem acelerada) escuto um quase-vazio dentro de mim, como um tremendo “punch” por ter perdido o meu natal.

lá fora, a vozearia, a alegre música da exaltação infantil, movimento desenfreado perpetua-se a data-acontecimento, as ruas regurgitam, há crianças impacientes e ainda ingénuas (até quando?) que anseiam pela hora sagrada de descobrir a chaminé como fonte de mistérios dum só momento.

algures, longe no tempo ou no espaço, outras combatem uma qualquer guerra sem idades, ou choram à chuva, ao frio, ao medo e ao vento seco da fome, na ignorância dessa palavra quente e mágica: natal.

tiritam, unhas fincadas na pele que escorre dos dedos, ossos sorvendo o calor das pedras e dos remendos multitudinários.

hoje para elas é dia de jejum (mais um!) porque ignoram que não é Páscoa.

só amanhã ou mesmo já logo pela madrugada haverá restos nos latos de lixo (para elas é sempre amanhã, é amanhã a resposta única que a esperança tem para calar o hoje).

também hoje morrerá gente, para sempre, aqui ou na Nicarágua, em guerras, calamidades, acidentes ou incidentes, do mesmo modo que naquele já longínquo ano morreu a tradição.

por tudo isto, estou mais só, triste e apagado: a partir de hoje já não tenho natal

a vida antes do 25 abril…estórias da minha terra. jun. 12, 1972 1.

https://blog.lusofonias.net/wp-content/uploads/2024/04/e32.pdf

 

stórias da minha terra. jun. 12, 1972

endormido corpo de pisar pedras

notívago leito

proibidos sonhos

sensacionalista da miséria alheia

o repórter bateu a chapa

primeira página de amanhã

cidadão-sem-rosto

identificado

o corpo de madrugar

pagará taxa de turismo

(a cidade

ruas e jardins

são do povo

não os usurpem!).

2.

oito anos descalços

duas estrelas cavas

na puída esquina

policromático recorte

remendos de olhar severo

faces nuas e suplicantes

“dois pensos uma c’roa”

(aqui começa

hoje

a ficção infinda do orgulho

em destino de pobre)

3.

“quem compra?”

soletra sem futuro adolescente

nas novas avenidas da mentira

fachada de estômago às moscas

pregando revoltas de dores postergadas

ilusórios ecos de recusa

silêncio-da-fome-sem-dias

perdida pressa de passos

nem mãos nem afagos

murchas violetas

cestos de eterna-espera

(decidida

incisivamente

estrangulemos esta voz

pobreza incómoda nos desperta

compremos um sonho

já sequestrado

na-fome-da-ilusão-sem-dias).

4.

criança sem escola

também a ti

interditaram a imagem e o invento

não vendas

parcas esmolas em retrato-de-esquina

apregoa tão-só

pensos de curar todas as misérias

árdua aprendizagem do dia a dia

inditosa saciedade do ócio

(nenhum óbolo

paternalista

caritativo

sofreará o vício de séculos espoliados).

5.

famílias há

aos gritos

morrendo onde calha

qualquer sol

qualquer ocaso

sugadas dia a dia

gratuitamente

promíscuas enxergas

moribundas

subvivas

sem heroicas gestas

prostradas

resignantes

(surdas rebeldias

assanham-se homens

assacam-se cães

CUIDADO! silenciam a voz do povo

com místicas perigrinanças)

6.

dileta terra

aqui o clima

a natural beleza

turísticos pósters da indigência

mascarem-se de pedintes os indígenas

todos

decorem-se cidades

ruas

vilas

praias

esplanadas-do-torpor-repetido

depois

cobrem-se as esmolas

todas

(milhares de fardas por pagar

dezenas de conselheiros a engordar).

7.

saudade

palavra rara

sonorífero da vontade

sempre adiada

repartida

palavra antiga

dor nova

(re)fundida

desolados

extensos feudos e baldios

para turista vir-ver-voltar

e já partiam novos e velhos

colonizadores da ambição desvairada

eterna

embaladora

esventravam povos

lendárias famas

viúvas de vivos

vozes de fábula

(no reino-do-clima-do-perpétuo-sol

nunca espantou saber

única

a saudade

  • certeza histórica

de todas as cruzadas).

8.

opiados nasciam

analfabetos

ministros havia

tecnólogos da (des)informação

instituíam concursos

festivais

eleições de misses

para as massas

folclores de aluguer

touradas

fados

mulheres

no reino-sem-esperança

o povo

anestesiado e grato

bebia

o suor

calado

bailava o vinho

chorava fadas de folhetim

batia palmas

ao sagrado retrato

insensíveis olhos

via inaugurações

escolas

fontanários e pontões

via casacas

ministros

presidentes

banquetes

jantares

comemorações

9.

esqueletos de domingo

marginais habitantes do trabalho

sem futebol

longa espera

plácida contemplação

perdidos oceanos

da morte mais lenta

sonâmbulos visionários do sacro império

perene destino de colonizadores

bronzeados pelo sol

(pouco e tímido porque grátis)

rastejavam

esmoleres de fim de semana

milionários-da-ilusão-repercutida

heróis-de-todo-o-ano

à conquista de um só mês

(onde o dinheiro para comprar um verão decente?)

que restava senão endormir o desejo insatisfeito?

convictos sebastianistas

do nevoeiro

povo

de discursos ouvidor

de impostos pagador

gente

cantada

decantada

desencantada

escrava-do-sempiterno-senhorio-da-tradição

por que arrastas imagens de liberdade?

promessas que não saberias usar.

10.

vou ficar atento

anfitrião

alguém pode espertar

sou urgente para o adeus

(espanto desfraldado

ingénuo bandeirante

quem me acredita?)

alguém pode morrer

defraudado

longe

antes do tempo?

NO INSTANTE EXATO EM QUE FALAR!)

cenas da cidade 1971

e.29. cenas de cidade, set 24, 1971

1.

por vezes vemos faces curiosas, rugas e cãs a assomarem às janelas, enquanto dentro do elétrico nº 214 vamos percorrendo as ruas e imaginado com fértil imaginação esse catálogo de pessoas idosas, sem filhos, viúvas (a grande maioria pela forma como vestem), fechadas num mundo a que chamam casa, limitando-se a esperar com paciência o dia em que deixarão de ser.

até lá matar-se-ão aos poucos com o sopro de vida que ainda respiram enquanto se amedrontam com o que se passa cá fora. outras haverá solteiras, há muito habituadas a partilharem a solidão com inofensivos animais domésticos, vítimas de carinho e amor excessivos não extensivos a outro ser humano. sempre que passo por essas personagens velhas de olhar triste e vago, começo a imaginar quantas histórias não teriam ali para me contar, histórias de amor, de famílias felizes que nunca chegaram a ser, mas contento-me – como membro da sociedade protetora dos animais – que nunca tenham sido.

enquanto pachorrentamente o elétrico vai percorrendo esta cidade velha, olho os jardins plenos de viço e calmamente passeio pelas sombras sob as quais se abrigam jovens enamorados, amantes com medo que o mundo acabe já, para quem mais ninguém conta num egoísmo de corpos que se encontram.

mais adiante, à soleira de uma porta (prédio escurecido pela idade e pelas rendas fixas) numa irreverência profunda de bocas duas bocas unem-se num beijo prolongado enquanto as mãos – distraídas – buscam um pretenso porto de abrigo.

lá fora passam carregadores numa qualquer estiva, gente e mais de trabalho árduo, que param e comentam, afastando-se lentamente com anseios de escândalo bailando nos olhos lúbricos. para os que insistem em ficar especados às portas há sempre uma ou outra careta grotesca do par. mais adiante nessa mesma rua há uma construção, cinzenta, pouco acolhedora onde se asilam sonhos desfeitos de pessoas cujo fim chegou antes da data marcada, muito antes, muito antes da morte.

nesse albergue de fome e frio as almas que esperam morrem lentamente de miséria, sem coragem para enfrentarem a esmola e a incerteza do dia-a-dia. para eles e elas a esperança é vã e a assistência social à terceira idade é um mito sob o qual nem abrigar-se podem.

3.

foi neste albergue que muitos anos passados, reconheci o par do portal com as mãos enrugadas, a pele mal segurando o peso dos ainda magros ossos, olhos ainda não-apagados sobre bocas murchas, e as caretas que neles notei já não eram de escárnio nem de sofrimento, mas de um longo e resignado amor na pobreza.

por vê-los assim e por ainda acreditar no amor decidi não mais andar neste elétrico.

UMAS CRÓNICAS DE 1971 MAS PODIAM SER DE 2024

crónica 2. a quem me ler, maio 17, 1971
  1. Há dias, conversava eu com um político, antigo ministro, homem ainda novo, inteligente, de trato afável, conciso e lúcido, e admirava nele o seu poder crítico. Discutia-se no ar, numa daquelas discussões sem bases nem fins determinados em que palavras vão puxando palavras, as pessoas vão ficando suspensas nelas e pouco mais. Nós, os dois, que até então ficáramos aparte, interviemos na contenda: eu como ouvinte e espetador, ele como contendor…e então, coisa curiosa, todos se voltavam contra ele num nítido esforço de confundir, baralhar, e ele, calmo, apenas clamando para ser ouvido, um a um, os ia aparando, aos golpes, até que na discussão só ficaram dois. Ele, com os seus 50 anos, mentalidade jovem, aberta, elástica, e o outro, um jovem de 30 e poucos, já habituado ao comodismo das posições catedrais defendendo a sua torre de marfim. Pois seguia eu empolgado a rápida cavalgada que os dois faziam e vi o espírito lúcido do mais velho voltar sempre ao ponto de que derivavam, mas com uma segurança e um saber que me extasiaram. No meu quase silêncio, fui-me sentindo, aos poucos, batido por aquele homem extraordinário e vi toda a sua juventude, a sua força, enquanto o outro com a sua reduzida agilidade mental se remetia a uma esporádica intervenção, em que se desdizia, e a cada contradição, ia cedendo campo ao opositor. Mas, dizia eu, que conversava com esse homem, que considero brilhante, e ele com a sua linguagem aberta ia descrevendo situações, narrando abusos e enganos e, ao mesmo tempo, criticava toda uma estrutura errada. Considerava desacertada a forma como se recolocavam ministros e similares e aos lugares de favor chamava espelhos de uma certa corrupção, pois dos negócios estrangeiros passara ele a diretor da junta nacional de frutas. Comentava, jocosamente, que gostando apenas de batatas, ananases e laranjas tinha de fazer planeamentos sobre a cultura de tomates. E tinha um horror danado aos tomates, tinha vontade de mandar trocar essa cultura pela de ananases. E perguntava, como se pode ser eficiente, como programar devidamente, se dos negócios externos passara aos problemas internos das frutas? Mal vai a governação no meu país, mas pior iria se nos negócios estrangeiros houvesse um produtor de frutas… Citando Brecht (sem insultar ninguém):

“Não há pior analfabeto que o analfabeto político. Ele não ouve,

não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. O analfabeto

político é tão burro que se orgulha de o ser e, de peito feito, diz

que detesta a política. Não sabe, o imbecil, que da sua ignorância

política é que nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de

todos os bandidos, que é o político vigarista, desonesto, o corrupto

e lacaio dos exploradores do povo.” Bertold Brecht (1898-1956)

  1. Está muito em voga agora uma espécie de moda nova e única: que as famílias de bom-tom e com pergaminhos, sempre que se reúnem, seja por festa ou luto, chamem a essas reuniões forsytianas[1]. Aqui está como eu admiro a democratização de uma ideia aristocratizante, apenas não serei capaz de perdoar que tal seja provocado pela exibição na TV de uma série chamada “The Forsyte Saga” da autoria de William Galsworthy. Mal vão as pessoas na minha terra vendo boa televisão. Veio tudo isto a respeito de um funeral onde estive presente e onde tal foi dito para meu espanto. Nos funerais, aprecio, até certo ponto, a parte social pois se fala, se discute, mas – no fundo – se convive. Por vezes, nem nos lembramos que estamos ali por causa de uma morte; aliás, o significado de morte vai variando com as idades, para nós – mais novos – e para os muito velhos quase nem a sentimos, uns por afastamento, outros por proximidade, mas os de meia-idade esses apanham choques grandes. Ainda não estão suficientemente perto dela para a sentirem e temerem mas não estão já tão longe quanto pensavam e começam a sentir-se não envelhecidos, mas velhos. Afinal, o que será a morte, o fim da vida ou uma nova vida? Para nós, cujas conceções religiosas do mundo andam arredias ou são peculiares, morte é apenas um ponto na vida, tal como o havia sido o ato de nascer. O nascer, para nós, parece-nos sempre insensível e é assim que pressagiamos a morte e, no entanto, cruzamo-nos com ela diariamente num desafio constante do qual – muitas vezes – nem nos chegamos a aperceber.
  2. Há arreigada em mim uma noção que gosto imenso de expor, apesar de incrédulo e cético. Acredito – e acredito mesmo – na evolução seja em que campo for (estético, artístico, musical, político, histriónico, etc.). Começo por fazer um aparte: à moda, como sendo aquilo que em algum momento agrada a uma maioria por muito minoritária que seja, mas não quero exprimir qual a espécie de agrado, nem suas causas e efeitos. Portanto, evolução não será moda. Evolução será – em períodos longos – a passagem de um estágio inferior a um necessariamente superior (não interessa quanto), portanto, um movimento vertical, ascendente, logo, dinâmico. Involução será a atitude estática, horizontal em que partindo de “A” se chega a um “B” que, embora diferente, não é superior, ou, por recriação de um ∂ anterior a “A” que obviamente não levará a “B”. Involução será também, aqui já, noção dinâmica embora num momento (estática em relação a períodos longos), um ciclo que se conclua num estágio intermédio, uma derivação pois intermédia de “A” a “B”.

Voltando à evolução e dado admitir a intelectualidade no homem, aquela levará necessariamente à perfeição, embotar aqui deva excluir a criação involutiva como é óbvio, que, pelas razões anteriormente apresentadas, não levará a nada.

Tudo isto serve para poder afirmar agora que discordo das pessoas que fazem inventários ou balanços do presente, pois tal só poderá ser feito num futuro indeterminado em que todas as coordenadas à distância do tempo possam ser tomadas em consideração, ao estádio anterior e ao próximo. E se há definitivamente coisa que eu não veja neste país, é evolução.

[1] Não do escritor Frederick Forsythe mas da “Saga da Família Forsyte” de John Galsworthy


crónica 3. napoleão e eça. 20 maio 1971

Aqui. Sentado. Deitado.

Neste silêncio mudo

Envolto por montanhas de livros

Inicio um problema matemático:

Conto os anos de vida e os livros

E nem tempo terei para ler os prefácios.

E Napoleão à minha espera algures, desejando mais do que nunca com a força própria do despotismo e a linguagem doce do exílio, que me debruce sobre ele e o examine, o estude, o disseque até ao mais profundo recanto da sua alma. Dizem que – pela análise bioquímica feita aos seus cabelos – o imperador morreu vítima de uma excessiva dose de arsénico. Apetece-me viajar e ir até Santa Helena reconstituir – um a um – os passos do prisioneiro e apurar uma certeza que pudesse ser histórica, mas Phillip Roth diz que mais urgente seria ler “Portnoy’s Complaint” (1969).

Mas, no canto mais sagrado da mesa-de-cabeceira há ainda um amigo silencioso que está certo que mutuamente jamais nos abandonaremos. Morto há setenta anos, ele é terrivelmente atual e espero, a qualquer momento ouvir bater à porta, e de seguida alguém entrar a anunciar-me a chegada dele. É tão atual como se vivesse hoje. Espera-se a cada página de leitura que fale de nós, como se tudo o que está escrito se referisse apenas a um dia de ontem extraordinariamente presente. A sua fluência e o seu ecletismo temático conduzem-nos e subjugam, são a sua imaginação e as suas vivências quem nos chama do lado de lá do abismo onde, isolados, repousámos à espera do milagre. É um deus que desce do Olimpo para nos chamar à realidade, descrevendo – a cada passo – a podridão celeste, e – nós – boquiabertos e indefesos o admirámos e invejámos. Cremo-lo maior do que Napoleão e os seus Impérios foram sempre reduzidos, embora construídos em bases que se consolidaram na razão inversa do escoar do tempo. É a ti, meu Eça (de Queirós) que me entrego, e é com as tuas asas que desejo voar. Espero que me perdoes a ousadia.

Não asfixio ainda por entre os livros mas anoto alguns mais que talvez consiga adquirir na Feira do Livro. Pergunto aos que lá passam e não param como podem viver sem livros, a menos que já vivam sem pão nem água. Mas não, não acredito nesses eremitas. Os que compram livros por comprar decerto se gabam de comprarem a cultura e aqueles que lhos vendem se gabam de a venderem. Mas nada tenho a comprar ou a vender, tenho apenas de estudar e de ler necessito para aprender. Que me interessa a Economia no curso do mesmo nome, se nunca me perguntam sobre Eça? Por que me obrigam a estudar sem ler? Só lendo se aprende…e já Napoleão cercado de abutres no leito de morte agoniza. Escrevem-se bilhetes sobre bilhetes e há sempre uma nova última vontade a firmar em papel. Quando acabar por morrer será ainda ele quem está escrevendo a História enquanto os vivos nem nas entrelinhas figurarão. E, general ou imperador foi sempre um homem ambíguo que se foi matando aos poucos. O arsénico só serviu para abreviar a morte corporal. Aos poucos Santa Helena, a ilha ia aniquilando a alma mais do que o corpo moribundo. Nela vimos o mesmo génio que chorava ao lembrar a pátria e o que dela havia feito. Sonhou tão alto que acordou antes de acabar o sonho. Todos os anos irei lembrar-me de lhe honrar a memória a 5 de abril, mas nada mais prometo não vá o Eça ter ciúmes. Vai longa esta missiva onde as ideias se libertam e se evolam deixando a palavra suspensa pelo pensamento.


crónica 4. outubro 12, 1971
  1. É muito vulgar agora ouvir-se falar de turismo, suas vantagens, necessidades, criação de estruturas e de bases, planeamentos, urbanizações, e todo um mar de termos vagos e imprecisos que nos asseguram – de antemão – que nada virá a ser feito como devia. Por outro lado, começam a ecoar – apenas agora – protestos já repetidos de zonas mais atingidas pelo flagelo e ouvimos falar de subidas de custo de vida, níveis de preços, inflação, hipertrofia económica, redes hoteleiras, canais de distribuição, etc.,…De tudo isto, nós, subdesenvolvidos ouvintes, quase leigos em tais assuntos, não nos podemos impedir de encolher os ombros de incompreensão, mas algo está indo terrivelmente errado pois, por experiência pessoal, constatámos como é caro dormir e comer no Algarve. Não nos vestimos lá nem tivemos dinheiro para diversões. Facto curioso: durante uma semana, conseguimos falar em português a três pessoas! “No smoking” – “Pas de pourboir” – “Hier gibt es Deutsche zeitungen” Estes e outros dísticos vi por aquelas paragens e andei horas à procura de um “Aqui fala-se Português” sem ver nenhum. Começa a ser triste ser-se português em Portugal, a menos que surjam reformas…
  1. Nesta época do ano aos hospitais públicos acorrem muitos velhos com doenças imaginárias. É curioso vê-los chegar, trémulos e encolhidos com vozes cavernosas, dores e queixumes, reais ou improvisados. Os internos, compreensivos dão-lhes baixa e eles ficam radiantes. Com as suas maleitas inventadas vão ficando ao longo dos corredores cloroformizados em camas de emergência, piscando os olhos já inseguros às enfermeiras mais azougadas. Passadas algumas semanas, esgota-se – para cada caso – a boa vontade dos clínicos empenhados em ajudar outros tantos que aguardam vez. Dos que saem, os curados vão contrafeitos pela troca de um lar pela outonal temperatura das noites nos jardins, inquietos ex-clientes de comida abundante e aconchegada dormida naquela Hospedaria da Caridade sub-reptícia, mas esses não tardam a esgotar a paciência dos médicos. Esse benfeitor corpo clínico é impotente e inoperante num problema a nível geral, onde as estruturas de apoio à terceira idade falham na sua rudimentar fase de projeto irrealizável…assim, apenas se vão minorando problemas quase individuais num perpétuo adiamento dos direitos básicos. Desses pseudodoentes muitos não voltam, nem deles se ouve mais falar. Outros, acabam por morrer iludidos no hospital com um ténue sorriso nas suas bocas desdentadas. Ninguém irá reclamar os seus corpos cujas ossadas acabam por ocupar as mesas dos laboratórios de anatomia servindo de cobaia às experiências de caloiros despreocupados. IMPÁVIDOS e SERENOS vamos assistindo indignados mas MUDOS às mortes que se repetem, onde, como e quando calha, sem alguém efetivar as reformas de que tanto se fala.
  2. …por falar em reformas veio-me à ideia, a do ensino superior. Qual não foi o meu espanto – há dias – ao passar pela Universidade e vê-la fechada com o seguinte aviso: “Encerrada para limpezas…“ verdade seja dita que a Reforma tinha de começar por algum lado…
  1. Escreveu Roland Barthes: ”O prazer do texto, tal como o simulador de Bacon pode afirmar: “Nunca se desculpar, nunca se explicar”. Nunca, nada se nega: “Volverei o meu olhar, essa será pois a minha única negação!” Ficção de um individuo (qualquer senhor Teste ao contrário) que por si mesmo aboliria todas as barreiras, as classes, as exclusões – não por sincretismo, mas pelo mero desembaraçar do velho espetro – “a contradição lógica” que amalgamaria todas as linguagens, mesmo as reputadas incompatíveis; que suportaria, mudo, todas as acusações de ilogismo, de infidelidade; que permaneceria impassível face à ironia socrática (levando o “outro” ao supremo opróbrio: contradizer-se) e ao terror legal (quantas provas penais baseadas numa psicologia da unidade!). Tal homem seria abjeto para a nossa sociedade. Os tribunais, a escola, o asilo, a conversação: “Quem suporta sem vergonha ou contradição?” mas este anti-herói[1] existe: é o leitor do texto, no momento em que atinge o seu prazer. Então se desfaz o velho mito bíblico, a confusão das línguas não mais é uma punição, o sujeito ascende ao clímax[2] pela coabitação das línguas que trabalham, lado a lado. O texto do prazer é BABEL FELIZ. Que esse seja também o vosso.

[1] Contre-héros.

[2] Jouissance: Terminologicamente ainda vacilante…de qualquer forma haverá sempre margem para indecisões: a distinção não será fonte de classificação segura, o paradigma, o sentido não será precário, revogável, reversível, implantável


o que mudou desde 1971? leiam esta crónica

1. crónica 1, maio 15, 1971

 

Daqui bem longe donde vos escrevo, o tempo vai, como é seu hábito meteorológico, influenciando a disposição das pessoas. É assim que me encontro com a chuva ao dar ao papel mais umas impressões deste país onde os homens vão tendo, cada vez mais, coisas para os preocupar.

Também é de chuva o ambiente intelectual pois as cabeças, cada vez menos, vão servindo para pensar e, creio até, que algumas nunca o fizeram.

Podia até dizer que é de crise a época se não o tivessem sido todas, mesmo as mais brilhantes e prósperas.

Na realidade, os homens andam arredios dos livros e eu compreendo-os: de há uns meses a esta parte, o marasmo, a calma e a inatividade livreiras e livrescas transmutaram-se a ponto de já não as reconhecermos. Sob o pretenso título de qualidade, o mercado tem sido invadido por tremendas doses de livros de bolso de todas e mais algumas editoras, num movimento que desmente toda a estagnação.

A única nota saudável deste ataque, tem sido, até agora, dada pelos preços que se apresentam otimamente reduzidos, e agora os editores nem se queixam de lucros, margens, impostos, etc. Eu sei que quando há fogo em nossa casa lhe deitamos água e só depois vemos que, embora nada esteja queimado, ficou tudo horrivelmente manchado e molhado. Assim os livreiros se empenharam em lançar obras e mais obras com todas as facilidades e agora que começam a fazer contas são eles a precisarem de facilidades.

 

De política isto não está indo muito melhor ou pior, embora o senhor Presidente do Conselho há dias se mostre apreensivo – e por um hábito que há muito se mantém neste país – quando um presidente está apreensivo, todo o povo o acompanha, mesmo aqueles que normalmente votam contra ele. Se está apreensivo é por que não sabe o que há de fazer a um problema que não é de agora, melhor dizendo, é de sempre.

Pois cá neste ocidental país, quando alguém sai de um ministério, caladinho e sem dizer nada, ei-lo que aparece logo a seguir sentado à mesa da presidência de um conselho de administração de alguma opulenta empresa. Pois então, porque não? Foi ministro, deu o seu contributo à nação, é justo agora que seja a nação a cuidar dele, e para tal, nada melhor que as cómodas cadeiras dum conselho de administração. E por outro prisma, por que haveria ele de voltar a ser quem era dantes? É necessário manter o progresso e evolução. Depois, o povo vê, o povo lê e começa a tecer comentários. Como sabem, um presidente teme sempre os comentários do seu povo, em especial numa democracia como a portuguesa.

Por outro lado, todo o ministro ou ex, tem amigos, tem influências, e afinal como vai ele presidente dizer-lhe: “Olhe o senhor não vá para esse lugar, deixe-o para os que são mais competentes.” E logo o ministro se sentiria reformado, que é a coisa mais aviltada que um ministro pode sentir e é por isso que vai para um conselho de administração.

E, afinal o elevado nível de vida e as receções? Como iriam ser mantidos esses bons e saudáveis hábitos desta república?

É por tudo isto que o presidente do conselho anda apreensivo e aquele sorriso que todos nós lhe conhecíamos anda agora menos aberto, mais mortiço. É que no fundo, ser presidente é uma estopada, isto de ter todos os dias nove milhões e meio de dores de cabeça é um pouco forte!

 

Falámos de livros e política e falta-nos falar em pessoas, sociedades, festas, enfim em todos esses atributos sociais que de nossos avós herdamos. Também aqui o tempo se tem feito sentir ensopado, pois depois da “molhada” queima das fitas, esta cidade [do Porto] continua mais pacata e trabalhadora que nunca, cada vez mais metida consigo própria. No entanto, pelo que dela conhecemos, é bisbilhoteira, como se fora uma vila de província. Nisso, provavelmente, se tornará, com toda a futilidade que, apesar do trabalho e dos que trabalham, vai caracterizando a sua outra face. É um snobismo pobre e até, um pouco ordinário, como o daquelas velhas que nada tendo nelas de atrativo, se vão empoando todas para passear em Santa Catarina e tomar o chá das 5 na Confeitaria Confiança.

À noite, continua parecida com uma cidade fantasma em que os espetros – oh monotonia – são sempre os mesmos nas mesmas esquinas. É sem dúvida agradável ter uns manes e uns vates como os nossos, além do mais, é saudável e já vai indo longa esta crónica, mais enfadonha que todas as outras e mais chuvosa também.

É bom, por outro lado, estar aqui neste isolado país, afastado de tudo e de todos. É despreocupante. É bem próprio de nós, este amolecimento em que vamos consentindo, nesta preguiça de estar longe da Europa. Este torpor que tão bem se dá com aquilo que ainda há em nós, de latinos, apesar das misturas de sangues e raças. E por o sol já se ir alevantando, aqui vos deixo.