Categoria: AICL Lusofonia Chrys Nini diversos

  • DIAS DE MELO

    Views: 1

    • Nuno Gomes dos Santos
    Recordar Dias de Melo em Abril

    «Além de tudo, com a idade que tenho, importa que, entretanto, não me bata à porta o momento final». Escreveu isto o Dias de Melo, numa carta que me enviou, no dia 1 de Junho de 2006. Porém, o momento final chegou, dois anos depois de ter começado essa carta, respondendo à minha de pouco tempo antes, e que começava assim: «é sempre um consolo, no isolamento em que vivo, receber notícias de um amigo». Antes, a 26 de Novembro de 2005, escrevia-me: «parece que toda a tristeza do mundo caiu em cima de mim. A minha estrada está quase no seu termo». Nascido no dia 8 de Abril de 1925, na Calheta de Nesquim, ilha do Pico, Açores, Dias de Melo viveu os seus últimos anos numa azáfama de escrita, numa luta pela publicação dos seus livros, cada vez mais difícil dada a política editorial que em Portugal se implantou, de memória curta e de olho no lucro, sem grandes critérios de qualidade (as excepções confirmam a regra), e com pouca gente a dar-lhe o «consolo» que, por muitas razões, merecia mais do que tinha: poucos amigos, alguns familiares dedicados, muitas costas injusta e desumanamente voltadas. Foi, na opinião que sobre ele tinha Natália Correia, «o mais honesto escritor português». Escreveu poesia, foi cronista (no Diário de Lisboa, onde assinou textos numa coluna intitulada «Gente e paisagem» e fez amizade grande com Fernando Assis Pacheco), etnógrafo e, mais que tudo, romancista. Cito, apenas, alguns títulos: «Mar Rubro», «Pedras Negras», «Vinde e Vede», «Cidade Cinzenta», «Na Noite Silenciosa», saudados, em tempos, pela crítica intramuros e de fora parte, sendo traduzido em várias línguas, japonês incluído. Foi professor («recebi ontem a sua carta. Veio acordar em mim tanta lembrança e um pouco de saudade dos meus tempos de professor, embora o fosse sem qualquer vocação, que a minha era o mar», 12 de Janeiro de 2007). O mar. Aos 12 anos escreveu um texto intitulado «Desastre no Canal», que deu origem, mais tarde, ao romance «Mar Pela Proa». O título inicial foi modificado para se não dizer que o escritor ia a reboque de Nemésio e do seu «Mau Tempo no Canal». Desse canal e desse mau tempo sabia o Dias de Melo, baleeiro que foi e que sobre baleeiros escreveu, muito e bem. Homem preocupado e empenhado nas questões sociais («o negócio do livro está mau. Com a crise que aí vai, tomara as pessoas ainda poderem comprar coisa que mastigar», carta de 8 de Janeiro de 2006), Dias de Melo sempre se afirmou contra a ditadura e, até ao fim dos seus dias, pronunciou-se a favor de uma maior igualdade social, mantendo uma actividade política participativa. Tinha, com a sua idade e o seu passado, muitas estórias para contar. E contava-as com prazer e sabedoria. Como esta, por exemplo, sobre Vitorino Nemésio:«Nemésio, pelo menos no liceu, tinha grande embirração com a Matemática. Na Terceira, foi umas quantas vezes a exame e nunca conseguiu passar. Foi então ao Faial e saiu-lhe a sorte grande: teve por professor de Matemática o senhor Florêncio Terra, notável escritor, embora pouco conhecido, e homem bom. No fim do ano, no conselho das notas, ao chegar ao Vitorino Nemésio, diz para os colegas: Este aluno não merece passar. Mas vou dar-lhe o 10. O que ele vai ser é um notável escritor e não serei eu a cortar-lhe as pernash» (carta datada de 21 de Novembro de 2006). De Dias de Melo poder-se-ia escrever muito e muito mais. Creio que, também, perguntando coisas ao Fernando Tordo, um seu grande amigo dos tempos do «exílio» do grande cantautor no Faial, ali a duas braçadas do Pico, ilhas de olhos nos olhos bem captadas pela câmara de José Medeiros no documentário «Toadas do Mar e da Terra – Uma Viagem ao Universo do Escritor Dias de Melo». Por mim, vou relendo a obra do «mais honesto escritor português» e as suas cartas, que começavam, inevitavelmente, assim: «caríssimo Nuno Gomes dos Santos».

     

    ps Dias de Melo esteve em 2008 no colóquio da lusofonia da Lagoa quando o começamos a revelar e faleceu passado uns meses em setembro desse ano…leia o caderno de estudos açorianos e o suplemento a ele dedicado https://www.lusofonias.net/acorianidade/cadernos-acorianos-suplementos.html#

     

  • Pepetela ladrões honestos

    Views: 0

    “Ainda há ladrões honrados”, por Pepetela

    Redação revista África21
    05/07/2012 09:14
    “É pena que certos banqueiros, especuladores de agências de ratos, e outros ladrões de casaca e lacinho preto, não sejam apanhados da mesma maneira”

    Brasília – “É pena que certos banqueiros, especuladores de agências de ratos, e outros ladrões de casaca e lacinho preto, não sejam apanhados da mesma maneira”

    Quando uma pessoa ouve ou lê uma boa estória, fica com saudades de um tempo que talvez nunca tenha existido. Por exemplo, o tempo dos ladrões honestos, género Robin dos Bosques ou Ali Babá. Os tais que só roubavam os grandes ladrões. Infelizmente, na realidade, deparamo-nos sobretudo com os grandes ladrões que não são castigados, nem sequer pelos pequenos lhes aliviando um pouco o bolso. É mesmo de acreditar na ausência da justiça.

    De repente, no entanto, surge uma notícia e lá voltamos nós a ter esperança, talvez a Humanidade não esteja perdida definitivamente para os liberalismos de nome, os tais que enriquecem os ricos e mais empobrecem os pobres, o tal liberalismo que só autoriza os grandes latrocínios, tão grandes que até mudam de designação e se tornam respeitáveis. O capitalismo que estamos com ele.

    Mas vamos lá acender a réstia de esperança. Num desses países avançados do Sul, Austrália ou Nova Zelândia, um larápio roubou a carteira e um telemóvel de um cidadão. Ao analisar os resultados da bem sucedida operação, descobriu no telemóvel furtado fotografias de pornografia infantil. O gatuno entrou numa daquelas situações de encruzilhada, como os grandes caminhantes dos nossos matos. Que faço eu, vou pela direita, pela esquerda, sigo em frente? Porque tinha descoberto um criminoso maior que ele próprio.

    Embora fosse reincidente, com vários julgamentos e mesmo prisão por ladroagem, se considerava pessoa de princípios, talvez (não pude confirmar) até de formação religiosa. Em época de crise, mesmo em país rico, há alguns que têm de recorrer a métodos menos corretos para se manterem vivos. Esta seria a sua justificativa para as aventuras mais ou menos perigosas em que incorria. Nada comparáveis a um miserável que abusa de crianças e ainda pode ganhar dinheiro com isso, vendendo vídeos ou fotos a outros tão malucos como ele (os doidos que me desculpem a força de expressão, mas este tipo de gente não é só «perturbada mental», é maluca mesmo, maluca furiosa).

    Leia versão integral na edição impressa da revista África21 (N.º 65, JULHO 2012). Para assinar a revista contacte: jbelisario.movimento@gmail.com

    Adicionar comentário

  • GOÊS ESCREVE EM PORTUGUÊS 50 anos depois

    Views: 0

    Goan writing in Portuguese gets another close look, back home
    GOA, India: Five decades after the Portuguese language
    suddenly lost its prominence in this society, a
    researcher-priest is to come out with a detailed study of the
    literature that influenced the minds and hearts of 19th and
    20th century Goa.
    Dr. (Fr) Eufemiano de Jesus Miranda is to release a
    new book titled Oriente e Ocidente na Literatura
    Goesa (East and West in Goan Literature). The
    322-page book’s subtitle focuses on the “reality,
    fiction, history and imagination” of the writings
    from Goa’s past. It will be released on Wednesday,
    May 30, 2012 at the Margao Ravindra Bhavan’s Black
    Box at a function which starts at 4.45 pm.
    This work looks at the work of many prominent writers of the
    yesteryears — Francisco Luis Gomes, Orlando da Costa, and
    themes such as the image of Mother India in the poetry of the
    Portuguese-speaking Goan, the figure of the dancing-girl in
    Goan Lusophone literature, and the works of “Gip” and
    Augustinho Fernandes.
    Dr Miranda also looks at the creative output of other Goans
    writing in Portuguese — Floriano Barreto, Nascimento
    Mendonca, Mariano Gracias, Adolfo Costa, Paulino Dias,
    Adeodato Barreto, Sanches Fernandes, Lino Abreu, Vimala Devi,
    Laxmanrao Sardessai and R.V. Pandit.
    Eufemiano de Jesus Miranda earlier did his PhD at the Goa
    University on the topic 19th-20th century Indo-Portuguese
    Literature — a study of major themes in the socio-historical
    background (Literatura Indo-Portuguesa dos Séculos XIX e XX:
    Um estudo de temas principais no contexto sócio-histórico).
    Miranda has also been at St Xavier’s College at
    Mapusa, Goa, for ten years as a lecturer teaching
    both Portuguese and English. In 1988, he was
    awarded a scholarship from the Gulbenkian
    Foundation, Lisbon, to work on the thesis which was
    completed under the guidance of the late
    vice-principal Fr. Ivo de Mascarenhas, at the Goa
    University.
    He has continued to teach at various institutes and colleges,
    and as a priest involved actively in the pastoral ministry at
    Curca-Santana, Alto de Porvorim, Santa Inez and presently at
    Chicalim. Miranda is currently the parish priest of the
    Chicalim Church.
    Miranda has a classical formation from the seminary from 1954
    to 1960, having learnt Latin, Greek, Hebrew, French, Marathi
    and Konkani. His other passion is music, and he founded the
    Music Lovers’ Society and the Goa String Orchestra, and he is
    also president of the Stuti Choral Ensemble, Goa.
    Stuti is the Konkani word for “praise”, and he is actively
    involved in organising concerts in various in religious and
    other venues with the goal of fostering the culture of
    classical and popular music and taking it to the people.
    In his book, Miranda suggests: “The Indo-Portuguese
    writer is a ‘romantic’, a man under the spell of a
    ‘rupture’ and a ‘longing for totality’. It argues
    that this writer — ethnically Indian but often
    imbibed with Western, Christian and Latin traits,
    and also strongly influenced by the
    “Vedic-Upanishadic Hindu substratum”, was marked by
    a painful search for “self-identity and
    self-definition”.
    Though the book is in Portuguese — one of the few to be
    published in recent decades in that language in Goa — it has
    chapter summaries in the English language.
    The book has been supported in part by the Goa
    government’s Directorate of Arts & Culture, and its launch is
    being held in association with the Ravindra Bhavan, Margao.
    Its introduction is by Prof. Dr. Hélder Garmes of the
    Department of Classical and Vernacular Literature of the
    University of Sao Paulo in Brazil.
    A few Brazilian students are known to have done or are still
    doing their research on topics relating to Goan writing in
    Portuguese, a genre seemingly forgotten in its home of origin
    itself.
    Angela Goldstein has been studing the writing
    (short stories) by Vimala Devi for her Masters.
    Pedro Vinícius Leite has been doing a comparative
    study between *O signo da Ira* and *O ultimo olhar
    de Manu Mirando*, two novels by the awardwinning
    Portugal-based late Orlando da Costa who traces his
    roots to Margao.
    Octavio Carillo has been working on a comparative study
    between *O Signo da Ira* and Lambert Mascarenhas’
    *Sorrowing Lies My Land* at the undergraduate level. João
    Cunha who already did a study termed as impressive on *Jacob
    and Dulce* by “Gip”, for his Master, now, in his PHd, is
    studing the works by Jose da Silva Coelho. Prof Helder
    himself has been doing a comparative study between *Os
    Brahamanes* (1866), the novel by Francisco Luis Gomes, and
    *The Guarani* (1857), a romantic Brazilian novel by Jose de
    Alencar.
    Dr Miranda’s book has been published by the Saligao-based
    Goa,1556 named after the arrival of the first Gutenberg-style
    printing press in the whole of Asia, in Goa in that year. It
    is available via mail order from goa1556@gmail.com
    The launch function is open to interested members of the
    public.
    ###
    Contact numbers:
    Author (Dr/Fr Eufemiano Miranda) +91-832-2540099 (Portugues or English)
    PUblisher (Goa,1556) goa1556@gmail.com +91-832-2409490 or +91-832-2409490 (English only) Contact: Frederick Noronha.

     

     

     

  • Língua nacional kikongo começa ser ministrada nas escolas primárias

    Views: 0

    in diálogos lusófonos

    Língua nacional kikongo começa ser ministrada nas escolas primárias

    Tomboco – O formador provincial de línguas nacionais da direcção local da educação, ciência e tecnologia, Ngonga Afonso, afirmou domingo na sede municipal do Tomboco, província do Zaire, que a língua nacional kikongo começa a partir do II trimestre do ano em curso, a ser ministrada nas escolas do ensino primário da região.

    O responsável prestou essa informação durante a sessão de encerramento do seminário provincial de formação de formadores escolares em língua nacional kikongo, realizado naquela localidade, sob a égide da direcção provincial da educação, ciência e tecnologia.

    De acordo ainda com o formador, numa primeira fase a língua nacional kikongo será ministrada em instituições escolares de ensino primário dos municípios de Mbanza Kongo, Soyo, Kuimba, Tomboco, Nzeto e Nóqui.

    Ngonga Afonso sublinhou que a introdução da língua nacional kikongo no currículo escolar vai facilitar o processo de ensino aprendizagem no seio dos alunos, principalmente para aquelas crianças com dificuldades de se expressarem em língua portuguesa.

    “A introdução pelo mistério da educação de línguas nacionais no currículo escolar é uma medida acertada, porque a identidade cultural de um indivíduo manifesta-se pela língua”, enfatizou.

    Durante a acção formativa, foram ministradas entre outros temas os métodos de ensino em língua nacional kikongo, materiais e os cursos de elevação no ensino de leitura e os manuais de orientação para o professor e aluno.

    Participaram no seminário, 25 formadores dos municípios do Tomboco, Soyo, Nóqui e Nzeto. Este é o primeiro seminário do género que a direcção provincial da educação, ciência e tecnologia realiza a nível da circunscrição.

    [Fonte: www.portalangop.co.ao]
    __,_._,___

  • excertos de autores açorianos traduzidos para francês e inglês

    Views: 0

    leia excertos de autores açorianos traduzidos para francês e inglês
    em
    https://www.lusofonias.net/acorianidade/tradu%C3%A7%C3%A3o.html

    pode igualmente ler excertos destes e de outros em CADERNOS (DE ESTUDOS) AÇORIANOS
    https://www.lusofonias.net/acorianidade/cadernos-acorianos-suplementos.html

  • cristóvão de aguiar agraciado

    Views: 0

    http://palcopiniao.blogspot.pt/search/label/COIMBRA

    QUINTA-FEIRA, 24 DE MAIO DE 2012
    Insígnias Autonómicas de Reconhecimento para Cristóvão de Aguiar, dia 28 de Maio de 2012
    A CERIMÓNIA OFICIAL DO DIA DOS AÇORES, QUE DECORRE NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA, DIA 28 , SEGUNDA-FEIRA DO ESPÍRITO SANTO, TERÁ LUGAR, ESTE ANO, NA VILA DA POVOAÇÃO, ILHA DE S. MIGUEL.

    Nestas cerimónias, organizadas conjuntamente pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores e pelo Governo Regional, com o apoio da Câmara Municipal da Povoação, serão agraciadas com insígnias regionais de mérito diversas personalidades e instituições da Região, em cerimónia que contará com as intervenções dos presidentes do parlamento açoriano e do Governo Regional.

    O Dia dos Açores, que se destina a comemorar a açorianidade e a Autonomia, foi instituído pelo parlamento açoriano em 1980 (Decreto Regional nº 13/80/A, de 21 de Agosto).

    Serão homenageadas várias personalidades a título póstumo, e também figuras como Renato Moura, das Flores, o realizador da RTP Açores, Zeca Medeiros, ou o escritor Cristóvão de Aguiar, Ricardo Serrão Santos, que dirigiu o Departamento de Oceanografia e Pescas, na Horta, por mais de 14 anos, Luíz António de Assis Brasil (Porto Alegre), empresários como José da Costa Franco (estabelecimento comercial Riviera, em Ponta Delgada) e instituições como a Kairós ou a Federação de Bombeiros dos Açores.

    (Fonte: Assembleia Legislativa Regional dos Açores)

    Insígnia Autonómica de Reconhecimento
    Destina-se a distinguir os actos ou conduta de excepcional relevância de cidadãos portugueses ou estrangeiros que:
    valorizem e prestigiem a Região no país ou no estrangeiro ou que para tal contribuam;
    contribuam para a expansão da cultura açoriana ou para o conhecimento dos Açores e da sua história;
    Distingam-se pelo seu mérito literário, científico, artístico ou desportivo.
    É constituída por três peças (pescoço, peito e roseta).
    PUBLICADO POR LAPA ÀS 23:22:00 1 COMENTÁRIOS

    SECÇÃO: AÇORES, COIMBRA, CULTURA, CURIOSIDADES, JUSTIÇA, PRÉMIOS FUNDAMENTAÇÃO

  • códice* português do século XVI

    Views: 0

    indiálogos lusófonos

     

    História da ciência

    Descoberto códice* português do século XVI

    Por Nicolau Ferreira (http://jornal.publico.pt/noticia/19-05-2012/descoberto-codice-portugues-do-seculo-xvi-24569167.htm)

    Sabia-se que a cópia do manuscrito estava na Biblioteca Nacional, em Lisboa, mas só agora está a ser estudada nuno ferreira santos
    Passou 250 anos no arquivo de uma cidade alemã, sem que se soubesse dele. É um manuscrito de Francisco de Melo, o maior matemático antes de Pedro Nunes As 122 folhas de autoria do matematico português Francisco de Melo são um objeto único: um manuscrito, em latim, com demonstrações de teorias de Euclides e Arquimedes. O documento é “belo”, dizem os historiadores.
    Francisco de Melo também foi autor de empreendimentos cartográficos fundamentais para a compreensão da história. Os registros de documentos com mais de 400 anos nos ajudam a entender a importância de Portugal naquela época.Do resumo “Reflexões a propósito da reconstituição de um mapa corográfico de Portugal do começo de Quinhentos.” de Suzanne Daveau, onde é citado o matemático Francisco de Melo, texto publicado pelo Centro de Estudos Geográficos sdaveau@clix.pt passo um peque no trecho ( http://www.sge.org/fileadmin/contenidos/imagenes_ibercarto/actividades/Programa_workshop_Mar%C3%A7o_2011.pdf):ResumoA partir da lista toponímica e locativa de 1531 lugares de Portugal, contida num pequeno manuscrito ricamente iluminado, conservado na Staats‐und Universitätsbibliothek de Hamburgo, foi possível reconstituir os traços principais do mapa corográfico que lhe serviu de base. A marca de posse que abre o manuscrito sugere que este mapa foi oferecido, em 1526, ao Cardeal Infante D. Afonso, quando lhe impuseram o barrete cardinalício. Vários factos concordantes parecem designar o matemático D. Francisco de Melo, como o promotor do empreendimento cartográfico. A análise da repartição espacial, desigualmente exacta, dos diversos topónimos, em função da sua longitude e latitude, permite enunciar algumas hipóteses sobre as fontes e as técnicas que foram usadas na construção do mapa. Verifica‐se que os erros são maiores na faixa litoral do que na parte oriental do país e que eles crescem de sul para norte.De modo que foi o litoral noroeste que sofreu a maior deformação.
    * Códice: (ou codex, da palavra em latim que significa “livro”, “bloco de madeira”)
    Quem pode passar/partilhar mais informações do “códice português do século XVI” agora descoberto ?
    Aprendemos juntos!
    Saudações lusófonas,
    Margarida

     

    __._,_.___
    |
    __,_._,___
  • o samba do trema VASCO PEREIRA DA COSTA

    Views: 1

     

    samba do trema

    (Vasco Pereira da Costa) FLORIPAABR 2010 13º COLÓQUIO DA LUSOFONIA
    Olha que trema mais lindo
    Mais cheio de graça
    É ele o treminha
    Que vibra e que passa
    Com duas bolinhas
    A caminho do mar
    Trema do corpo embolado
    Do sol de Ipanema
    O seu rebolado
    É mais que um poema
    É a coisa mais linda
    Que já vi passar
    Ah, Por que vai tão sozinho?
    Ah, mas que trema mais triste!
    Ah, trema que não existe
    Olha lá, mas que belo treminha
    Mas que já não se escrevinha
    Ah, se o trema soubesse
    Que quando ele passa
    As duas bolinhas
    Se enchem de graça
    E fica mais lindo
    Por causa do amor
    Vou fazer este sambinha
    C’o trema de 1 bola só
    Outras bolas vão entrar
    Mas pontinho é 1 só
    Ah, se o trema soubesse
    Que quando ele passa
    As duas bolinhas
    Se enchem de graça
    E fica mais lindo
    Por causa do amor
    Vou escrever este sambinha
    Dó ré mi fá sol si dó
    Assim se faz ao treminha
    Treminha de 1 bola só
    Há muita gente pr’aí
    Que fala muito e treme nada
    Ou quase nada…
    Continua neste sambinha
    Ao trema que mete dó
    As bolas querem entrar
    Mas só dei 1 para só
    E o treminha no sambinha
    Dó ré mi si lá si dó
    Já não sabe se é treminha
    Se é ponta de 1 bola só
    em florianópolis durante o Açorianópolis durante o 13º colóquio da lusofonia
    OUVIR ORIGINAL AQUI
    https://youtu.be/edFY-YVwZgs
  • DAVID CRYSTAL E O 1º COLÓQUIO DA LUSOFONIA 2001-2002

    Views: 0

     

    Recentemente (2001) o emérito linguista anglófono Professor David Crystal escrevia dizendo ”O Português parece-me que tem um futuro forte, positivo e promissor, garantido à partida pela sua população-base de mais de 200 milhões, e pela vasta variedade que abrange desde a formalidade parlamentar até às origens de base do samba. Ao mesmo tempo, os falantes de português têm de reconhecer que a sua língua está sujeita a mudanças, tal como todas as outras, e não se devem opor impensadamente a este processo.”
    “Quando estive no Brasil, no ano passado, por exemplo, ouvi falar dum movimento que pretendia extirpar todos os anglicismos. Para banir palavras de empréstimo doutras línguas pode ser prejudicial para o desenvolvimento da língua, dado que a isola de movimentações e tendências internacionais. O inglês, por exemplo, tem empréstimos de 350 línguas, incluindo Português, e o resultado foi ter-se tornado numa língua imensamente rica e de sucesso. A língua portuguesa tem a capacidade e força para assimilar palavras de inglês e de outras línguas mantendo a sua identidade distinta. Espero também que o desenvolvimento da língua portuguesa seja parte dum atributo multilingue para os países onde é falada, para que as línguas indígenas sejam também faladas e respeitadas, o que é grave no Brasil dado o nível perigoso e crítico de muitas das línguas nativas.[1]
    Posteriormente contactei aquele distinto linguista preocupado com a extinção de tantas línguas e a evolução de outras, manifestando-me preocupado pelo desaparecimento de tantas línguas aborígenes no meu país e espantado pelo desenvolvimento de outras. Mostrava-me preocupado sobretudo pelos ismos que encontrara em Portugal após 30 anos de diáspora.
    Mesmo admitindo que as línguas só podem ter capacidade de sobrevivência se evoluírem eu alertava para o facto de recentemente terem sido acrescentadas ao léxico 600 palavras pela Academia Brasileira em 1999 das quais a maioria já tinha equivalente em português.
    Sabendo como o inglês destronou línguas em pleno solo do Reino Unido, tal como Crystal afirma no caso dos idiomas Cúmbrico, Norn e Manx, perguntava ao distinto professor qual o destino da língua portuguesa, sabendo que o nível de ensino e o seu registo eram cada vez mais baixos, estando a ser dizimados por falantes ignorantes, escribas, jornalistas e políticos sem que houvesse uma verdadeira política da língua em Portugal e alguns esforços para criar uma no Brasil.
    A sua resposta[2] em março último (2002)pode-nos apontar um de muitos caminhos, que espero ver tratados neste fórum aqui hoje. Diz Crystal:
    As palavras de empréstimo mudam, de facto, o caráter duma língua, mas como tal não são a causa da sua deterioração. A melhor evidência disto, é sem dúvida a própria língua inglesa que pediu de empréstimo mais palavras do que qualquer outra, e veja-se o que aconteceu ao Inglês. De facto, cerca de 80% do vocabulário inglês não tem origem Anglo-Saxónica, mas sim das línguas Românticas e Clássicas incluindo o Português. É até irónico que algumas dos anglicismos que os Franceses tentam banir atualmente derivem de latim e de Francês na sua origem.
    Temos de ver o que se passa quando uma palavra nova penetra numa língua. No caso do Inglês, existem triunviratos interessantes como kingly (Anglo-saxão), royal (Francês), e regal (Latim) mas a realidade é que linguisticamente estamos muito mais ricos tendo três palavras que permitem todas as variedades de estilo que não seriam possíveis doutro modo. Assim, as palavras de empréstimo enriquecem a expressão. Até hoje nenhuma tentativa de impedir a penetração de palavras de empréstimo teve resultados positivos. As línguas não podem ser controladas. Nenhuma Academia impediu a mudança das línguas.
    Isto é diferente da situação das línguas em vias de extinção como por exemplo debati no meu livro Language Death. Se as línguas adotam palavras de empréstimo isto demonstra que elas estão vivas para uma mudança social e a tentar manter o ritmo.
    Trata-se dum sinal saudável desde que as palavras de empréstimo suplementem e não substituam as palavras locais equivalentes. O que é deveras preocupante é quando uma língua dominante começa a ocupar as funções duma língua menos dominante, por exemplo, quando o Inglês substitui o Português como língua de ensino nas instituições de ensino terciário. É aqui que a legislação pode ajudar e introduzir medidas de proteção, tais como obrigação de transmissões radiofónicas na língua minoritária, etc. existe de facto uma necessidade de haver uma política da língua, em especial num mundo como o nosso em mudança constante e tão rápida, e essa política tem de lidar com os assuntos base, que têm muito a ver com as funções do multilinguismo.
    Recordo ainda que não é só o inglês a substituir outras línguas. No Brasil, centenas de línguas foram deslocadas pelo Português, e todas as principais línguas: Espanhol, Chinês, Russo, Árabe afetaram as línguas minoritárias de igual modo.”
    Por partilhar a opinião do professor David Crystal espero que no final deste encontro possam os presentes voltar para os seus locais de residência com soluções e propostas viáveis deRepensar a Lusofonia como instrumento de promoção e aproximação de culturas sem exclusão das línguas minoritárias que com a nossa podem coabitar.


    [1] Carta de David Crystal 16/02/2001 a Pedro Kaul do governo brasileiro, citada no fórum Ajudar Timor em 16/03/2001
    [2] Carta de David Crystal ao autor (Chrys Chrystello) em 25 Março 2002
  • a diarística de Fernando Aires autor a não perder

    Views: 2

    pouco mais de um ano após a sua morte, para que o recordemos:

    ANA DA SILVA     ana.silva@eses.pt in 5º colóquio da lusofonia na ribeira grande em 2006
    Licenciada em Português LVE pela Universidade de La Sorbonne-Nouvelle – Paris III (1989), Mestre em Literaturas Comparadas, Portuguesa e Francesa, Séculos XIX e XX, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1998). Curso de Doutoramento em Ciências Literárias pela FSCH-UNL (2000). Em curso de realização: Projeto de tese de doutoramento na área da animação de bibliotecas em curso de elaboração.
    1995-96: Docente de Português na Escola EB 2,3/S Bento Rodrigues, Vila do Porto, Santa Maria (11.º e 7.º anos de escolaridade).
    1995-2006: Autora de diversas publicações sobre literatura açoriana, das quais se destacam: “Matar um Boi e Comê-lo Inteiro!”, p. 12, n.º 81, 12 de novembro de 1998, do Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores; e “A Felicidade é um relâmpago”, pp. 42 a 51, nº 36, outono de 1996, da Revista Ler do Círculo de Leitores, dedicados ao escritor José Martins Garcia.
    Autora de apresentações de livros de escrita açoriana aquando do seu lançamento: Apresentação do livro (In)confidências de Gabriela Silva, aquando do seu lançamento na ilha de Santa Maria, em janeiro de 1995; Apresentação do livro O Menino Deixou de Ser Menino de Dias de Melo (Edições Salamandra) aquando da homenagem a este grande escritor açoriano, Casa dos Açores, Lisboa, 15/10/99. Autora de diversos trabalhos académicos sobre literatura açoriana, dos quais se destaca “Era uma vez um diário ilhéu”, apresentado no final do seminário de Literatura Autobiográfica, lecionado por Clara Rocha, do Curso de Ciências Literárias da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
    1998-2006: Docente da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Santarém. Orientadora de estágios (nomeadamente em bibliotecas escolares), trabalhos de investigação e projetos de intervenção nos cursos de Educação de Infância e Animação Cultural e Educação Comunitária. Diversas missões ao estrangeiro, das quais se destaca uma missão educativa de formação de professores/as em Timor-Leste no ano 2000, em representação da ESE de Santarém. De 1994 a 1998, docente do Ensino Básico e Secundário. 1992-93, Assistente de Língua Francesa em dois colégios no Essex, Reino Unido, e colaboradora de Programas Multiculturais de Intercâmbio entre escolas do Ensino Básico portuguesas e britânicas (Essex, Reino Unido).
    Autora de diversos artigos em revistas literárias e periódicos nacionais e regionais, coautora de dois livros, tem participado em diversos projetos pedagógicos e projetos de desenvolvimento e intervenção, apresentado comunicações em colóquios e conferências nacionais e internacionais. Autora e formadora de cursos de formação contínua (nas modalidades de curso, oficina e círculo de estudos) na área da animação de bibliotecas, animação da leitura e da escrita.
    ERA UMA VEZ UM DIÁRIO ILHÉU: A LITERATURA DIARÍSTICA DE FERNANDO AIRES
    Embora muitas obras da literatura açoriana tivessem um cariz autobiográfico, não havia, antes de Fernando Aires, diários açorianos. O que se pretende aqui evidenciar é a dimensão intimista que prevalece no diário Era uma vez o tempo de Fernando Aires. Com efeito, a notação diarística ocupa-se do registo de sensações e reações cognitivas a essas sensações e, muito secundariamente apenas, da transcrição dos factos do quotidiano. Parece-nos ser este um dos casos em que a ação é considerada como “cosa mentale”. Outra dimensão, digna de consideração e relacionada com a dimensão intimista, foi a inserção geográfica do diarista numa ilha: trata-se de um diário marcado pelo espaço da produção. Tentaremos mostrar como o Diário[1] de Fernando Aires, que se situa na tradição literária açoriana, pode ser considerado um protótipo do que se pode entender por diário íntimo: um diário ilhéu.
    A questão de haver uma literatura açoriana, com traços peculiares que a distinguem da literatura portuguesa em que se insere, tem sido uma questão muito debatida dentro e fora dos Açores. Mas o que a literatura açoriana ainda não tinha, passou a ter com Fernando Aires: uma literatura diarística. Apesar do cariz autobiográfico de muitas obras da literatura açoriana, das quais se destacam por exemplo Não Percas a Rosa de Natália Correia, O Jornal do Observador de Nemésio, Memórias da Cidade Futura ou Memórias das Ilhas Desafortunadas de Manuel Barbosa, Os Amores da Cadela Pura de Margarida Vitória, Gente Feliz com Lágrimas de João de Melo, Raiz Comovida de Cristóvão de Aguiar, verifica-se a total inexistência de diários açorianos antes de Fernando Aires, que, numa entrevista dada a Vamberto Freitas, avançava uma tentativa de explicação: “Este gosto pelo interior, tão nosso, tão carateristicamente nosso (…) leva-me a estranhar a ausência de diaristas nas ilhas. O meio demasiado estreito e censurado pode explicar isso. O refúgio na poesia intimista também pode ser a explicação” (Freitas, 1992: 185).
    Fernando Aires, então assistente convidado da Universidade dos Açores, onde leciona História, já com uma notoriedade consagrada pelos seus trabalhos de investigação académica e pela sua colaboração em jornais e revistas açorianos, publica a sua primeira obra literária em 1988: o volume I do seu Diário, Era uma vez o tempo. Concordamos com Vamberto Freitas ao dizer: “Publicar um diário sem obra criativa previamente feita é um ato arrojado, não pode haver falhanço, a credibilidade do autor depende por inteiro da arte com que os pessoalíssimos, gentes e coisas são aí retratados. Não existem aqui nem o refúgio num narrador fictício nem, uma vez mais, em outras obras que possivelmente tenderiam a colocar o leitor em predisposição para tudo acreditar ou perdoar” (1991: 8).
    O facto é que Fernando Aires conseguiu despertar um grande interesse e curiosidade por parte não só do público como da crítica, sobretudo a partir da publicação dos dois últimos volumes do Era uma vez o tempo[2] que, por terem sido publicados na capital continental, beneficiaram de uma maior visibilidade no mercado. Desde então, mereceu a admiração de críticos como Eugénio Lisboa, Aníbal Pinto de Castro, José Augusto Seabra e Luís Amaro, tendo, no meio académico, passado a ser objeto de teses universitárias. Na sua introdução às Páginas do Diário Íntimo de José Régio, Eugénio Lisboa refere-se a Fernando Aires como sendo “autor de um dos mais belos e sensíveis diários em língua portuguesa”.
    Pensamos que Fernando Aires foi o iniciador e o impulsionador de uma diarística açoriana que conta com escritores como António João Marinho Matos, que publicou o seu Diário I, Jornal do Ocidente (1996-97), na sua própria editora Espaço XXI, em 1998, e Cristóvão de Aguiar, autor de Passageiro em Trânsito, que decidiu finalmente publicar, em 1999, o diário que já vinha escrevendo desde 1964: Relação de Bordo (1964-88).
    A palavra íntimo, como as palavras intimismo e intimidade são difíceis de definir e, por isso, foram ao longo dos tempos conscientemente evitadas por vários críticos. Para designar o autor de diários íntimos, Michèle Leleu (1952) prefere recorrer ao neologismo «diariste» do que empregar o termo «intimiste», privilegiando assim o primeiro termo da expressão «diário íntimo». As mesmas reservas são feitas por Béatrice Didier (1976), que utiliza o mesmo neologismo, mas também a expressão «auteur de journal intime»:  «pour le critique le mot «journal» est moins fuyant, moins irritant que le mot «intime» (…) il charrie avec lui une connotation quelque peu désuète et d’un romantisme délavé, qui correspond certes à un aspect du journal, mais à un aspect seulement(1976: 9-10)
    Após uma introdução ao seu livro L’Intimisme (1989), na qual chama a atenção para o caráter impreciso, esbatido e obscuro do conceito intimismo, Daniel Madelénat tenta defini-lo no âmbito de uma cadeia verbal que inclui os termos «intimismo», «intimista», «íntimo» e «intimidade». Assim, «intimismo», substantivo que aparece no início do século XX, designa essencialmente uma estética que privilegia temas como a meditação introvertida e a vida quotidiana e uma escrita ou pintura simples, mas pode também designar uma caraterística de uma personalidade introvertida: «Est intimiste celui Qui aime vivre et exprimer les aspects intimes de l’existence sans rompre par les artifices clinquants de la représentation le calme discret et feutré, le silence d’une intimité où les sentiments et les pensées se répandent sur l’environnement immédiat» (1989: 20-21).
    Madelénat analisa em seguida o que o conceito significa para Camille Mauclair que o inventou e promoveu: « Ils cherchent [os intimistas] ‘dans le recueillement, dans le mystère, dans le calme, dans la subtilité presque musicale des tonalités, le secret d’une beauté plus intérieure, plus psychologique’ (…) l’art d’ ‘exprimer ce que les objets et les êtres, tels qu’on les aperçoit, laissent deviner de profond, le tragique et mystère quotidien de l’existence ordinaire, la poésie latente des choses’» (1989: 21). Madelénat opõe prática intimista do diário íntimo a esta estética considerada «une composition intentionnelle en vue d’un effet sur le lecteur.(no caso de Aires há uma conjugação dos dois sentidos, não?). «Íntimo» e «intimidade» designam a dimensão mais profunda das coisas ou dos seres que a observação e a análise não conseguem atingir. Num sentido mais lato, designam a arte que representa a vida interior e privada ou o ambiente que a favorece.
    Madalénat carateriza o intimismo através de um conjunto de temas fundamentais no que respeita ao género do diário íntimo que aqui nos interessa: «Quotidienneté, cercle de l’intimité familiale ou amicale et de l’humilité sentimentalisée, paysage intérieur, communions avec le cosmos: toutes ces constellations de thèmes composent la galaxie intimiste et doivent s’envisager comme un ensemble, car les écrivains, éclectiques pour la plupart, n’affirment pas un tempérament littéraire fort et n’imposent pas à leur œuvre une stylisation exclusive» (1989: 102-103).
    Alain Girard (1986) e Béatrice Didier (1991) numa tentativa de definição do género, apresentam as seguintes caraterísticas do diário íntimo:
    ·                       Escrita diária passível de tudo incluir (o género não obedece a uma poética bem definida), numa ordem qualquer (o género não obedece a uma estrutura determinada), mas de natureza fragmentária, oposta à obra composta/construída (como as memórias). A distância do momento da escrita em relação ao acontecimento é muito mais reduzida em relação à escrita de autobiografia ou de memórias. O descontínuo da escrita fragmentária alia-se paradoxalmente à continuidade dos dias. Os únicos elementos de transição entre os dias são os espaços brancos que separam na página um dia do outro e a inscrição da data e do local. Trata-se de uma escrita que se prolonga num longo período de tempo.
    ·                       Texto no qual o autor está pessoalmente presente como centro de observação. Identidade entre autor, narrador e personagem. Apesar do «eu» não ser o único pronome pessoal utilizado, é ele que prevalece, tal como afirma Béatrice Didier: «Le ‘je’ néanmoins l’emporte à tel point sur les autres personnes, que tout le journal s’organise autour de cet obsédant ‘je’ Qui perpétuellement souligne que le texte n’a d’existence, ici, que par référence á l’auteur. C’est là que le journal, si décousu, si disparate soit-il, trouve son unité. Ce ‘je’ obsédant semble la seule règle d’un genre Qui n’en connait pas (…)» (1991: 154).
    ·                       A observação é interior, ou seja, incide mais sobre o lado privado da vida do redator do que sobre o lado exterior. Diário íntimo opõe-se a «diário externo», segundo a terminologia de Georges Gusdorf (1948). Neste segundo tipo de diário, os factos/acontecimentos prevalecem sobre os estados de alma e de pensamento da pessoa. Porém, tanto para Girard como para Didier, não existe uma forma pura de diário íntimo, há sempre uma espécie de crónica quotidiana dos acontecimentos e das relações que o diarista estabelece com os outros. Béatrice Didier chama a atenção para a dificuldade atual de delimitação entre «interior» e «exterior». Para Didier, a intimidade do eu definir-se-ia hoje em relação ao inconsciente e aos vários níveis da consciência estabelecidos por Freud. Didier mostra uma grande variedade de tempos utilizados nos diários íntimos. No entanto, nos diários menos factuais, como o de Maine de Biran, Amiel ou Charles Du Bos, as distâncias temporais perdem a sua importância e prevalece, assim, um presente da continuidade.
    ·                       Segundo Girard, trata-se de um texto que não se destina a um público nem a ser publicado. Guardado como um segredo. Escrita privada. Didier contesta esta noção de intimidade, pois alguns diaristas organizam a publicação do seu diário e, mesmo quando tal não acontece, o outro está sempre presente na mente do diarista.
    ·                       A introversão prevalece sobre a extraversão. Os acontecimentos exteriores só importam enquanto ressonância, ou seja, enquanto impressões que ressoam na consciência do autor. Um diário íntimo não implica forçosamente introspeção, pois geralmente o diarista limita-se a anotar o que acontece, podendo o diário caraterizar-secaracterizar-se por um aspeto repetitivo e um ritmo lento e monótono. Para muitos autores, sendo um modo de expressão paralelo ao de uma obra em curso, o diário íntimo torna-se uma crónica da atividade criativa.
    ·                       Segundo Girard, esta escrita corresponde a períodos depressivos e pouco criativos. Pelo contrário, Didier afirma que pode muito bem também corresponder a períodos de exaltação e grande criatividade.
    Para Girard e Didier, o diário íntimo revela da parte do diarista uma tentativa de escapar à fuga do tempo (registando instantes fugidios privilegiados) e testemunha de uma procura do inexprimido. Girard tenta sistematizar uma experiência comum da noção de pessoa, determinando assim três grandes configurações aspetos do autor de diários íntimos: a procura do eu, a perda do eu e a conquista do eu.
    “Este o sentir de que somos feitos, nós ilhéus mais do que ninguém.” (IV, 30)[3] “Esta Ilha onde nasci!” (III, 131)
    Os diários de Fernando Aires são uma afirmação identitária de pertença à ilha, materializando a consciência que ele tem da açorianidade, isto é, de um sentir, de um viver e de um escrever caraterísticos do ilhéu. Lembremos aqui que Madelénat, no livro acima referido, estuda as figuras da esfera, do círculo e da circunferência como arquétipos da intimidade. Gilberd Durand, nas Estruturas Antropológicas do Imaginário (1969: 269-307) analisa a casa, o círculo e o centro como símbolos da intimidade. Tentaremos delinear os traços que a açorianidade reveste no Diário, considerando não apenas a intimidade (no sentido de Madalénat) do autor do diário, mas a intimidade de todo o povo açoriano.
     Um primeiro traço é a ambivalência da ilha. Por um lado, é cerco ou espaço de opressão: “Ilha é prisão de mar. De tédio tecida. De distância tecida. Ilha de Nemésio e de Mesquita, com aves do mar na tormenta e o torpor dos dias pasmados de distância. Que não é o mar que sufoca de prisão, mas o céu côncavo (…)” (II, 113). Por outro lado, simultaneamente, a ilha é refúgio ou espaço virgem e puro de salvação: “hoje foi um daqueles dias da Ilha em que serra, e mar e céu aparecem aos olhos como a obra espetacular acabada de sair das mãos de Deus. Ainda coberta do orvalho primitivo. (…) Estávamos ali de corpo e alma em comunhão com tudo.” Ou ainda: “De manhã, banho de mar – a água cristalina do começo do mundo, milagrosamente preservada das repetidas violações dos homens. Todas as vezes que me banho nestas águas saio puro como de um batismo. Sentimento de que recuperei a vida. De que a salvei.” (II, 83). O mar tem para Fernando Aires um incomparável poder de purificação que não implica forçosamente este gesto simbólico da imersão: “Assim me purifico do enrugado das horas a olhar o mar.” (III, 16).
    Deste primeiro traço, decorre um segundo que é a tensão entre duas forças contrárias, uma centrípeta e outra centrífuga: o apego à ilha e o desejo de fuga. Aquilo que dois críticos açorianos designam por “circularidade e fuga” (Vamberto Freitas) ou “errância e permanência” (Urbano Bettencourt): “Os espaços limitados têm isto (…) é urgente deixar a Ilha. Deixar a Ilha. Deixar a Ilha…” (IV, 99); “Descobrir até que ponto este povo a que pertenço é inesperado e paradoxal, perdido no sonho maior de buscar mundo, porém teimoso no melancólico apego a estas ilhas – pedaços desgarrados de uma Europa que quase não lhes sabe o nome.” (II, 84).
    Significativo é o facto de Gilberd Durand estudar as imagens de sepulcro e de enclausuramento  ligadas ao tema da intimidade, citando Baudouin que, na poesia de Victor Hugo, liga este complexo ambivalente do enclausuramento ao tema da insularidade (1969: 273-74). Béatrice Didier, por seu lado, estabelece uma ligação entre esta situação e a produção diarística: «Le prisonnier aura tendance à tenir un compte de ses jours monotones. Parce qu’il a du temps, trop de temps, il est saisi d’un vertige devant cette répétition décevante où le temps disparaît. Le journal est alors sa seule vie. (…). Le journal naît aisément d’une situation carcérale» (1976 : 12).
    Outro traço da açorianidade é o sentimento de degredo. A constante revolta de um povo por se sentir afastado e esquecido: “O pior é o sentimento de desterro geográfico e de esquecimento oficial” (II, 125). Este sentimento abrange todas as áreas. Veja-se como Aires exprime esse traço no que respeita ao escritor açoriano: “a deficientíssima forma como se faz a promoção dos livros de autores açorianos em Lisboa.” (II, 73).
    Um outro traço caraterístico da açorianidade é o sentimento de insegurança e de medo de quem vive desde sempre num mundo ameaçado pela contingência. As referências aos sismos são mais uma anotação intimista, pois o que sempre o diarista foca é o sentimento que nele e na sua comunidade eles provocam. “Crise sísmica (…) velhas inquietações na alma de todos nós. Memória das ilhas ligada à ameaça de rebentamento dos vulcões. (…) O medo, como uma pedra, pesando no fundo do peito.” (II, 74). Por ser em permanência alvo de fatalismo, o povo açoriano acabou por criar uma carapaça de resistência que lhe permite sobreviver: “Era mais um sismo (…) senti que os cumes da serra escondiam uma ameaça. Senti claramente a presença dessa ameaça (…) A vida das pessoas suspensa por um fio, balouçada ao sopro da contingência. O que vale é que cada ilhéu já nasce armado de carapaça e de reflexos como o guerreiro de Esparta. Não é qualquer inimigo que o desarma. E quando a desgraça vem e é sem remédio, encolhe os ombros e diz: Paciência! – os pés teimosos na terra, os olhos apontados ao horizonte como homem do mar que também é.” (II, 84). Este sentimento de insegurança faz com que, desde muito cedo, o ser ilhéu se torne desconfiado: “O ilhéu que sabe, não vai nessa – e aí aparece logo o seu estigma de nascença: a desconfiança.” (III, 149).
    De tudo isto, advém o culto de dois mitos muito impregnados na alma dos açorianos. O mito das origens: “No espelho de água, o mistério intrínseco das coisas por desvendar. A exaltante sensação de que tudo permanecia no como no começo: intocado e puro.” (II, 13). E o mito do fim do mundo, cujo símbolo nem sempre é o cataclismo: “Qualquer dia, com a humidade e a chuva constantes, a ilha destorroa-se, desfaz-se nas águas. (…) Continuará decerto assinalada nos mapas, mas nenhum navio jamais a encontrará. Quanto a ser a velha Atlântida desaparecida, os séculos se hão de encarregar de dizer.” (II, 179).
    A instabilidade do tempo meteorológico, ora chuva fina e nevoeiro opaco, ora “dia azul e oiro a explodir do céu” (II, 186), reflete-se também na alma açoriana, ora ensimesmada e melancólica, ora expansiva e eufórica: “Dualidade conflituosa entre intimismo e abertura ao mundo. Entre expansão e recolhimento interior. (…) Alma insular –cambiante e instável como o solo sísmico (…)” (II, 66).
    A relação de amor/pavor que o povo açoriano tece com o mar, assim como com as outras forças da natureza eleva-o ao conhecimento do sagrado: “a dialética dos três MM (como eu lhe chamo) à volta da qual tudo se joga: Mar-Marinheiros-Morte. A luta agónica contra a morte, de cada vez que é preciso levar o sustento para casa. (…) O homem ilhéu na sua luta contra o fatalismo, contra as raivas da natureza. (…) Com efeito, por meio e através da Natureza atinge a nossa gente o sagrado: Homem-Natureza-Deus.” (II, 56).
    No Diário de Fernando Aires, a Galera, é uma ilha mais pequena dentro da Ilha, um espaço refúgio ainda mais íntimo: “Lentamente, aquilo foi surgindo como uma ilha dentro da ilha, e já sonho com o dia em que desembarcarei nas suas praias e beberei das suas águas correntes.” (II, 73); “Nunca encontrarei resposta para explicar o sentimento de segurança que me toma quando aqui chego.” (II, 167);  “A suspeita de que será aqui, talvez, o meu lugar.” (II, 168).
    E tal como a Ilha que é a matriz com que se identifica, a Galera, geograficamente situada entre o céu, o mar e a terra, é o ponto de referência a partir do qual o escritor se define: “A nova casa da Galera já vai adiantada. Sigo os trabalhos, ansioso por me ver num espaço criado por mim. Projetado por mim. (…) Terra de pais e avós (…) Foi uma espécie de segundo útero que me alimentou. (…) é sempre lá que me situo e me decifro. Me significo e me reconheço. Daqui o valor da casa no cimo da colina, com janelas para o ilhéu da Vila e vale de cabaços. Com vista para o alto da serra e para o crescente de mar que chega até aqui em aroma e em som (…)” (II, 49).”  Constante é a exaltação da paisagem exuberante da Galera, sinédoque da beleza paisagística da Ilha e de todo o arquipélago: “Aqui só faz sentido o abandono à evidência de haver beleza” (II, 95); “Hoje. Aqui. Eu, no deslumbramento de haver beleza.” (II, 187).
    Outro traço da açorianidade no Diário de Aires, é o facto de todos os traços anteriormente analisados contaminarem a própria linguagem poética, como o atesta uma vasta panóplia de metáforas enraizadas no imaginário da ilha, à semelhança das que se seguem: “o amanhã muito provavelmente igual ao de hoje e ao ontem deste convento, onde as horas inúteis são redondas como o horizonte que nos cerca.” (II,70); “Aqui, da clausura, espreitei por uma frincha o mundo largo. Vontade de abrir as asas e desferir o voo para os lugares onde o europeu se ergueu do chão e se fez gente.” (II, 137).
    Diríamos que Aires, à semelhança de um poeta ou pintor intimista, cultiva a arte de exprimir aquilo que de mais profundo carateriza o seu eu como um ser ilhéu. Pensamos, por isso, que o intimismo, como estética literária, pode, ao contrário do que parece julgar Madalénat, ser conciliado com o intimismo como prática do diário íntimo, que a seguir analisamos.
    Há, pois, que inventar um pretexto de adiar a sentença, começar um novo livro, sem o que chegará breve a morte anunciada.” (IV, 49)
    Que Era uma vez o tempo de Fernando Aires é um diário ninguém duvidará, não só pelo pacto de leitura estabelecido no paratexto através da menção «Diário», mas também pelo facto de o autor escrever diariamente, pouco tempo após o acontecimento, inscrevendo no início de cada novo dia a data e, muitas vezes, o local onde se encontra. Chegando mesmo, por vezes, a referir o dia da semana. Assim, sabemos, por exemplo, que dia 11 de fevereiro de 1992 era uma terça-feira. Menos frequentemente, aponta por vezes o momento do dia: «De tarde» (II, 100). A única estrutura do texto é esta cronologia dos dias. O texto é de tal modo heterogéneo e fragmentário de dia para dia que, nos casos em que o autor não insere a data, o editor vê-se na obrigação de utilizar um sinal gráfico para separar fragmentos distintos.
    Era uma vez o tempo não obedece a uma poética bem definida, pois a par do discurso propriamente dito do diarista, encontramos um amálgama dos mais heteróclitos tipos de texto como cartas, entrevistas, poemas, narrativas, etc. Verifica-se também a preponderância do pronome pessoal «eu», no qual se identificam autor, narrador e personagem. Apesar, de F. Aires também utilizar este pronome no plural («nós») quando integra o seu «eu» na comunidade açoriana.
    Todavia, Era uma vez o tempo não é apenas um diário, mas um diário íntimo. E o facto de confirmarmos, no próprio texto, que o autor organiza a sua publicação não impede que seja um diário íntimo, como já o referimos acima. Girard apenas considera que o diário íntimo não se destina a ser publicado porque não tem em conta o diário moderno: «De nos jours cependant, beaucoup d’auteurs de journaux intimes n’écrivent plus seulement pour eux, mais pour un public potentiel. Le marché littéraire étant disposé à absorber tout ce qu’ils ont à exprimer, la publication de toutes sortes de journaux est devenue monnaie courante» (Boerner, 1978 : 217).
    Tentaremos pois mostrar que, neste diário, a introversão prevalece sobre a extraversão, que a observação incide muito mais sobre o lado privado da vida do diarista do que sobre o lado exterior, ou seja que nada há de factual neste diário. A única coisa que acontece é um «eu» que sente e pensa o seu destino no tempo. Veremos como este diário corresponde às três grandes configurações definidas por Alain Girard: a procura do eu, a perda do eu e a conquista do eu.                                                                                              
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  
    Esta procura do autós, no caso de Fernando Aires, está intrinsecamente ligada a uma procura do sentido do bíos, por sua vez ligada a uma procura do sentido do gráphein: “What significance do we impute to the act of writing?”, segundo as palavras de James Olney (1980: 6).
    O pilar da escrita de Aires é a consciência de que a vida é um milagre irrepetível que não se pode deixar ao desbarato um único dia. “Aproveita” (III, 8 / III, 216 / IV, 26) exclama Aires para si mesmo, tal como nos aconselha o famoso carpe diem de Horácio: “Pelos vistos, sempre compreendi muito bem que a vida não é para ser vivida um dia sim outro não.” (II, 163). E a vida é estar atento e alerta, é reparar nas coisas pequenas, é escutar em vez de ouvir (III, 37), é não ceder à indiferença da qual se queixa logo no início do terceiro volume, é não se deixar vencer pela apatia geral e alienação que equivalem a uma morte em vida: “Não podemos viver como quem caminha distraído por uma paisagem conhecida.” (IV, 74).
    O sentimento de ser diferente, original, único, tão caraterístico dos autores de diários íntimos reflete-se na quantidade de ocorrências do verbo reparar. Aires repete vezes sem conta que repara no que (a seu ver) os outros não reparam: por exemplo, um cão a farejar as sarjetas.
    E para reparar, segundo Aires, é preciso devolver aos sentidos a sua importância, é preciso reabilitá-los. Por isso, eles são aqui fundamentais, sobretudo o olfato, que “é um dom especial nos deuses” (III, 184), o ouvido e a visão: “Porque a paisagem é um estado de alma que nos vive nos olhos, nos ouvidos, no olfato.” (III, 21). O Diário está repleto de cheiros, de sons e de cores que têm o poder de fazer da vida inferno ou volúpia.
    O cheiro a fritos pela casa, o cheiro a ratos da casa fechada, a pestilência de um matadouro (de que ninguém se queixa) revoltam profundamente os sentidos de Fernando Aires, que se delicia com o perfume das açucenas, da hortelã do mato, dos incenseiros, das figueiras, com o cheiro “já esfumado e, todavia, tão penetrante” da cana brava (II, 167), com o cheiro a maresia das abróteas, com o cheiro a mosto das adegas, com o “cheiro que as coisas (e as pessoas) ganham no abandono” (II, 141), com “o cheiro da noite – um cheiro secreto. Feminino. Saído do corpo adolescente da terra.” (II, 193). Não por acaso, Aires dá conta das suas crises de alergia que lhe afetam os sentidos, sobretudo o olfato, fazendo da sua vida um verdadeiro martírio (II, 197 / III, 22 / IV, 75), confirmando também aqui a conclusão de Girard, segundo a qual o autor de diários íntimos sofre habitualmente de uma fragilidade física e/ou psicológica da qual resulta um sentimento amargo da vida.
    Na sociedade moderna, já todos se habituaram ao ruído urbano. Não é este, no entanto, o caso de Aires: “O ruído que trouxe da rua, sacudo-o aqui como se fosse poeira. Liberto-me dele.” (II, 177). Liberta-se dele para se deixar penetrar pelo cantar dos melros (um leitmotiv do Diário), pelo rumor das ribeiras, pelo grito dos milhafres, pelas vozes dos netos em correria pela casa, pelo “ruído do vento nos incenseiros e o rumor da chuva fina” (II, 106). Todavia, é no ouvir crescer os pinheiros que Fernando Aires mais se distingue dos seus semelhantes no que respeita à alegria e à paz que esse reparar / estar atento lhe propicia: “Ali hei de ficar a ouvir crescer os pinheiros” (II, 73), “ouço crescer os pinheiros” (II, 81). Qualquer homem atento poderá ouvir o roçar dos pinheiros, mas só um intimista poderia ouvir crescer os pinheiros. Através dos sentidos, Aires parece atingir uma esfera íntima que ultrapassa a superfície das coisas.
    O Diário está repleto destes reparos em que não raramente se lê uma comunhão harmoniosa dos sentidos: “o sol já descia no mar, embutido em carmim. Um frémito de luz atravessava o espaço. Pousava, devagar, na cumeeira da serra. Escorria, depois, violeta, até ao rés d’água – um vidro gelado e redondo onde se repetia, invertida, a respiração dos bosques. A terra abria-se como um ventre (…) Perfumava-se de mística e de cedros (…) O rebanho das casas imóveis apascentava o musgo das margens, bebia na água o carmim do céu. E a gente sem saber se devia acreditar.” (II, 126). Este encantamento que persiste perante as coisas, como se as visse pela primeira e última vez, carateriza o intimista que julga ser capaz de penetrar cada vez mais «o mistério e a poesia latente das coisas», por isso elas lhe aparecem sempre sob um prisma diferente.
    Uma das dimensões da escrita é pois o discurso de um intimista revela uma forma mais humana de existir que não pode ocorrer senão na intimidade de cada ser: “A sociedade alheia-se da essencialidade da pessoa. (…) Depois, nada do que diz respeito ao essencial do homem pode ser posto em execução por decreto imperial. O mais importante acontece sempre no íntimo de cada intimidade.” (II, 120). Eis porque o espaço citadino adquire, no Diário, uma conotação assaz negativa, opondo-se diametralmente ao espaço circunscrito pela casa da Galera que equivale ao locus amoenus da intimidade: “aprecio agora este silêncio do meu quarto. A cortina de plátanos e de metrosíderos a defender-me do mundo. Pondo à distância a cidade ruidosa e enlameada (…) Ter este canto, esta cadeira que é a minha. Ter esta mesa onde escrevo (…) Saber a cidade ao longe, engasgada de trânsito e de esgares irritados (…) Será que faço batota comigo mesmo para me convencer destes privilégios e poder suportar a cidade cercada e o mais que dentro de mim me constrange?” (II, 99).
    Cabe ao escritor o dever de velar por e revelar essa essencialidade, mesmo que isso venha a diminuir o número de possíveis leitores: “Numa época de tecnologias, para muitos não fará sentido um certo tipo de delicadezas e de sentimentos. Por essa razão, talvez grande parte do que aqui fica não tenha mais valor do que um velho bric-à-brac que só interessa a meia dúzia de colecionadores de velharias. Mas, por outro lado, não posso deixar de pensar que é justamente ao escritor que se pede seja guardador do imenso rebanho das interioridades e do indizível inacessível às matemáticas. (…) A única lei é que as coisas que fiquem escritas tenham dimensão humana.  (…) Que quem encha um volume de palavras se liberte dos grilhões das modas, tantas vezes empobrecedoras das oportunidades de ser. Que deixe bem vincada a evidência de que a vocação humana está na capacidade de desferir livremente o voo até às estrelas sem pedir licença a ninguém. A isto se chama criar.” (II, 148).
    A escrita, para Aires, deve funcionar como um antídoto para a falta de humanidade veiculada pelos meios de comunicação social: “Mas o mundo está repassado quase só de violências que a imprensa, a rádio, a TV não se fartam de propagandear. Falta o outro lado humano – o país silencioso e invisível do afeto (…). O espaço ainda mal conhecido do amor que falta mostrar às pessoas para que elas possam continuar a viver.” (II, 147).
    Tal como acontece, segundo Girard, com os autores de diários íntimos, Fernando Aires considera a escrita do diário como uma incontornável necessidade diária de existir plenamente e de comunicar, como uma forma desesperada de convivência, devido à dificuldade de relacionamento com os outros e à falta de comunicação real: “E vou à rua e é o mesmo: caras fechadas. As pessoas no seu fadário – curvadas de cuidados e tédios. (…) Penso que alguma coisa de muito errado se passa. (…) Afinal, esta confidência interminável tem a ver com isto mesmo: com o ar desabrido e triste dos que vejo à minha volta. Assim, a única saída é este monólogo de todos os dias.” (II, 170); “Chega mesmo o momento em que se queria, com urgência, uma casa sem gente, habitada apenas pelo nosso querer. (…) Tudo seria então à nossa imagem e semelhança e teria a dimensão da nossa exigência. ” (III, 60); “Trata-se, sobretudo, de uma necessidade. De ter alguém que me acompanhe, uma Presença com quem mantenha longa conversa de intimidade e de afeto. Se lhe pusesse ponto final definitivo, não sei o que seria.” (III, 96).
    Comment peut-on penser que dans l’autobiographie c’est la vie vécue qui produit le texte, alors que c’est le texte qui produit la vie !” (Lejeune, 1986 : 29). Assim é para Fernando Aires, que, para utilizar a expressão de Girard, consegue conquistar o seu eu através da escrita: “Só estou preso à vida por este fio de palavras com que vou tecendo estas páginas. Todos os dias as vou tecendo pelo desejo de me refugiar na ficção de me pensar vivo – e então é como se estivesse.” (II, 112).
    Conquistar o seu eu, tornando-se aquele em que acredita e que inventa para esse efeito: “vou-me certificando que o escrever é, sobretudo, necessidade. Mesmo assim, mal talhado, o escrever é necessidade. Decerto que sinto os meus limites, mas também, uma vez por outra oportunidades mentais de me esclarecer e de me inventar (…) Assim, muito mais do que o desejo de ser lido, tenho necessidade de me ver descrito e confessado em tinta e papel. Para todos os efeitos, é um retrato que fica (…)” (II, 231). Este «eu», inventado e construído pela escrita, é o seu «eu» verdadeiro e não aquele que os seus vizinhos conhecem.
    Aires coloca muito claramente o problema da verdade/falsidade e da sinceridade no terceiro volume. Uns amigos a quem lê umas páginas do diário colocam em dúvida a veracidade do relato que o diarista fez de um velório, ao que ele responde: “A verdade é mais ‘verdadeira’ quando, para estabelecê-la, se usa a ficção de dizer que se comeu amendoins no velório. (…) É nisto que consiste a arte de contar – esta mentira propositadamente inventada para se colher, da forma mais honesta, a porção da verdade possível (…)”. Esta questão é retomada e desenvolvida no volume seguinte do Diário: “Por estranho que pareça, é esta a forma de revelar a ‘verdade’: inventar para ficar mais perto da verdade, e poder comunicar essa ‘verdade’ a quem não participou nela.” (IV, 50). À semelhança dos autores de diários íntimos que Girard descreve, também Fernando Aires lê e relê páginas do seu diário para si próprio e para amigos, como uma maneira de reviver o seu verdadeiro eu (aquele que constrói através da escrita) e de confirmar a sua existência.
    Aires não admite a ideia de poder parar de escrever o seu Diário: “Por vezes anseio ‘chegar ao fim’ deste segundo volume do diário. (…) E depois de escrito, de impresso e de contemplado na estante, o que vou fazer comigo?” (II, 146); “Um Diário é assunto que não mais se acaba. Que tem de ser levado até à invalidez ou até à morte.”(II, 180).
    Como pensa Girard sobre o diário íntimo, este diário é também uma meditação sobre o tempo e a efemeridade da vida: “Sensação de que tudo é terrivelmente provisório.” (III, 152). Ainda neste mesmo registo e lugar-comum do diário íntimo escrito na maturidade, ocorre frequentemente o tema da velhice ligado à degradação do corpo: “e eu neste estado, como uma árvore de casca enrugada, de folhas cada vez mais raras e frutos cada vez mais mirrados e ácidos. O que o tempo fez de mim em tão pouco tempo.” (III, 178). A sua consciência do absurdo da morte e da constante mutabilidade dos seres leva-o a fixar os espaços íntimos do seu sentir nos quais nem sempre posteriormente se reconhece: “Escreveria agora tudo o que deixei escrito da maneira como o escrevi? Mas ninguém é nunca mais da mesma maneira. Daqui, por vezes, a dificuldade de me reconhecer nas páginas que ficaram definitivamente escritas. (…) há páginas (não sei quantas) que me desespero de não ter rasgado. Porém, apesar das páginas que eu já não diria da mesma maneira como o disse (e que me desespero, sinceramente, de não ter rasgado) ali ficou uma certa memória de mim que não repudio. (…) Afinal tudo é provisório. (…) Isto que passou já tomou ausência como se não tivesse sido.” (II, 32).
    Esses espaços íntimos são preenchidos pelo mar da ilha, pela ternura para com os netos, por uma voz de mulher com harpejos de violino, pelas valsas de Strauss e as sinfonias de Beethoven… Olhemos de mais perto para alguns desses espaços.
    Para Aires, a solidão é um privilégio. Estar só é não se preocupar senão consigo próprio e, assim, viver o prazer de andar nu pela casa, despenteado e com a barba por fazer, é não ter que vigiar a sua maneira de ser perante testemunhas e, assim, poder passar o dia inteiro a pensar na escrita ou simplesmente a olhar um pássaro ou um pinheiro.
    Estar só é ver reduzidas ao mínimo as necessidades diárias de uma casa, pois, por exemplo, basta-lhe haver pão, queijo, fruta e água para a refeição. Sobretudo, é a liberdade de conviver com o seu «verdadeiro» sem o constranger do tempo e de se despir da máscara que usa perante os outros, porque “na aparência, somos diferentes conforme estamos com estes ou com aqueles. (…) Porém, definitivamente, somos mais nós quando estamos com o nosso cão.” (III, 67): “o prazer de estar só, atenção miúda ao dentro de mim e a respeito do agora e do outrora. É a liberdade de fazer e não fazer na ausência de testemunhas. É sentimento de que se é dono e senhor do tempo e do modo. É disponibilidade de deixar de ser ator para se ser autor de cada minuto que nos cabe viver.” (II, 85), “Já disse que os meus melhores momentos é quando estou sozinho a rebuscar em mim motivos desta escrita?” (II, 144).
    Escrever, para um intimista, é um ato que exige um isolamento voluntário: “No casulo da casa, eu, como escritor, sou um homem voluntariamente solitário, na atitude do médium que espera a visita dos espíritos (…) Sou prisioneiro voluntário” (IV, 47-48). A verdadeira solidão só começa “quando o livro chega ao fim”:
    O espaço que os outros ocupam no diário de Aires é muito reduzido. Sabemos dos seus serões com um círculo de amigos muito restrito, mas quase nada sabemos acerca desses amigos. Pois, num diário íntimo, os outros ocorrem apenas em relação ao autor e para revelar a sua intimidade. É por isso que tantas vezes os amigos aparecem a ler, a ouvir ou a comentar passagens do seu diário.
    Mais significativa ainda é a ausência de Linda. O espaço que a esposa de Aires ocupa no seu diário é apenas o das cinco letras que compõem o seu nome ou quase. Linda é apenas um nome. Na maioria das vezes, ora um nome que o acompanha: “Eu e a Linda” (III, 19 / IV, 15); ora um nome que o deixa sozinho em casa: “A Linda foi de visita a Riba d’Ave, como de costume. Lá fiquei outra vez de casa vazia.” (III, 29). Contudo, nada ficamos a saber a respeito da sua maneira de ser, nem tão pouco a respeito da sua relação com o esposo.
    Não deixa de ser significativo porém o facto de serem poucas as referências ao desejo sexual e ao amor. Temas íntimos per se. Aqui, muito provavelmente, o meio pequeno onde e para o qual o autor escreve funciona como um agente de inibição. O que tal nos permite afirmar é o facto de encontrarmos no diário algumas passagens em que o autor revela uma grande fascinação por figuras femininas jovens anónimas: uma mulher que passa de lenço vermelho ao pescoço (III, 18) ou uma operadora de caixa num hipermercado com “o rosto e os seios do oval perfeito do quarto crescente” (IV, 88): “A voz dela tinha arpejos de um violino (…) Depois disto tenho a certeza de que nunca mais a esquecerás (…) e eu no desejo de ficar ali naquela sala – para sempre.” (II, 180).
    Há uma única referência a uma desordem de caráter sentimental que nos faz supor qualquer desgosto amoroso: “Compreendo, cada vez melhor, como a desordem sentimental de que padeci se vai resolvendo e compensando através da excitação intelectual que a escrita me dá.” (II, 170). No entanto, quando seria pertinente esperar um desenvolvimento desta desordem neste tipo de diário, a primeira e única referência que o diarista faz quanto a ela.
    Outro espaço íntimo deste diário é o da feitura dos livros e acompanhamento da sua divulgação. O diarista aponta a revisão de provas, o lançamento dos livros, o que eles significam para si, assim como elogios e críticas de que vão sendo alvo, o modo como surgiram os textos: “Escrevi hoje um conto que intitulei O Homem Que Se Perdeu No Mar. Já o vinha pensando há semanas e hoje saiu-me quase de jato (…) O que hoje me saiu, por exemplo, foi sentido como libertação e procura. Pretendeu ser saga e afirmação.” (II, 160). O diarista compara o seu diário a um livro de atas no qual transcreve fiel e integralmente uma entrevista de Vamberto Freitas publicada no Açoriano Regional: “Posto o que passo à dita entrevista que aqui tombarei, como se de um livro de atas este escrito se tratasse. ” (III, 51);
    No dia 20 de outubro 88, confessa a sua emoção ao rever as provas de Histórias do Entardecer. A 3 de julho 90, fala-nos de um conto intitulado “Desenraizados”, escrito em 1988, que nunca deu à estampa por pensar vir a fazer dele uma novela. Em novembro de 92, indica que vai passar a figurar no Dicionário Cronológico da Literatura e na Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa. No dia 12 de junho de 94, refere um conto intitulado “Elegia a Sul de Capricórnio” e, no dia 25 de maio de 95, revela-nos o caráter autobiográfico dos seus contos Memórias da Cidade Cercada.
    Carateriza-se este diário por uma constante autoreflexividade no que respeita à obra que se vai criando. Surgem frequentemente inquietudes e dúvidas tanto quanto ao valor intrínseco dos textos, como quanto ao facto de virem ou não a ser lidos: “Disse há dias que gostaria de escrever a dita página cheia de rasgo e de frescura que ainda não escrevi. ” (III, 55); “Acabo de reler estas páginas do 3.º volume, numa espécie de balanço geral. (…) há de tudo: passagens aproveitáveis, mesmo boas – não fossem as outras, as medíocres: forçadas, artificiais, sem aquela força por que tanto me tenho esforçado. ” (III, 61); “O insulto da escrita falhada” (IV, 10). “Mas os deuses nem vão saber que o livrinho existe.” (II, 19), “Mas quem é que me vai ler? Meia dúzia de pessoas. E daí? Pois sim, mas o estar ali exposto, mesmo sob a forma das metáforas dá desconforto. Põe-me pouco à vontade” (II, 27); “E quando sair impresso [este volume do diário] quem saberá? Quantas pessoas o vão ler? Não tenho dúvidas de que fará menos ruído do que uma pedra atirada ao charco.” (II, 232); “Vistas bem as coisas, que oportunidades tem um ilhéu, que vive no seu rochedo, de vir a ser conhecido na capital e arredores? Antero, Teófilo, Nemésio, fizeram a sua vida pela metrópole e tinham posição – além do talento que Deus lhes deu.” (IV, 12). Este tipo de queixas e a procura de elogios, como abaixo veremos, são, segundo Girard, comuns aos autores de diários íntimos (1986: 506) e caraterizam o seu sentimento de perda do eu.
    Como forma de combater este pessimismo, vai lendo os seus textos aos amigos e anotando o seu contentamento por eles agradarem: “O serão foi quase alegre, até porque tive oportunidade de ler coisas da minha lavra. Cometo, por vezes, este pecado, talvez levado pelo desejo de ser ‘centro’. Possivelmente por algo de narcísico que nos toca a todos. Também (e principalmente) por ser oportunidade de catarse, de exercício mental, de pretexto para outras conversas. Necessidade de me dar a conhecer e de comunicar. (…) Deixem-me ao menos a ilusão de me saber escutado.” (II, 158).
    Reconhece sem falso pudor que precisa de se saber lido, de ser elogiado, de se sentir amado: “Ah como me soube bem ouvir as suas palavras sobre os meus escritos! (…) Não se escreve para ouvir elogios. Escreve-se porque sim. Mas eu preciso de alguém que venha e me diga.” (II, 78); “O nosso Ego insaciável de mesuras não suportando o anonimato.” (II, 109). Grita o seu orgulho por ser alvo de elogios por parte de pessoas que respeita, tais como uma sua aluna (II, 145), Onésimo Teotónio de Almeida (II, 37), Eugénio Lisboa (II, 157), ou ainda Vergílio Ferreira: “Tive carta de Vergílio Ferreira falando que tinha lido o meu Diário. (…) Aqui no meu rochedo, recebo notícias de Vergílio Ferreira (…). Um acontecimento destes não podia ficar no segredo. Ajuda-me a amenizar os dias (…) dá-nos uma grande vontade de continuar.” (II, 162). Aires precisa do reconhecimento, não só como escritor, mas também simplesmente como homem sensível que é. Veja-se como ele espera que lhe “façam uma ovação” por ter cozinhado abróteas com batatas e hortaliças (II, 81).
    Em sintonia com os valores que inspiram a conduta de muitos autores de diários íntimos, segundo Girard (1986: 534), Aires mostra um profundo desprezo pelo dinheiro e pela atitude consumista da sociedade moderna, pela ambição política e pela “mentalidade burguesa do lucro” (II, 100), a favor dessa forma mais humana de existir que passa forçosamente pela comunhão com a natureza e com a intimidade de cada ser: “deixo aos outros os ganhos fartos em notas de banco, a conquista dos lugares importantes do Poder, (…) A mim me basta a velhice das faias e este cheiro a caruma das matas – as coisas que acrescentam vida à vida (…) ” (II, 87); “Não estou nos bastidores da política local (Devia estar?). Nem no segredo da política dos politiqueiros (…) Quando a gente sabe que tudo neles (na esmagadora maioria deles) é da natureza da flatulência (…)” (II, 102); Outra vez o Natal (…) A chamada santa quadra do Natal é isto que se vê: uma espécie de ‘estouro da manada’ (como dizem, suponho, os cowboys) e que faz desabar uma multidão enlouquecida em todo o lugar onde se compram coisas.” (II, 33).
    Aires é um espírito confessadamente religioso que recusa o catolicismo tal como é praticado. Revoltado contra os dogmas, não aceita o Deus intolerante e concebe que a fé só pode verdadeiramente ser vivida na intimidade do ser: “15 de agosto, dia de Santa Maria: “A Senhora vai sair no seu andor por entre uma chuvada de dólares, e haverá bebedeiras pelas tabernas e cascas de melancia espalhadas pelo adro. (…) Salve-nos Deus, que é quase só isto a nossa santa religião.” (II, 78); “Mas Deus, se existe, não está lá para (…) Deus não se interessa nada, mesmo nada, com aquilo que os padres insistem em dizer que Ele se interessa: por exemplo, como nós termos de acreditar que é trino e uno. E que o Filho está à direita do Pai, e assim. Deus está interessado é com o nosso coração.” (II, 189); “Dia chegará em que não será na montanha, nem no Templo, nem em nenhum altar particular que se prestará culto, mas no íntimo de cada um.” (III, 208).
    Como historiador que é, vai anotando a ocorrência de factos que marcam a história, ou lembrando datas já há muito registadas: o ano um depois do muro de Berlim (9/11/89), a queda de Ceausescu (12/89), o octogésimo segundo aniversário do assassinato de Carlos de Bragança (1/2/90), a reunificação da Alemanha (10/90), o bicentenário da morte de Mozart (5/12/91), a morte de Fernando Namora (31/1/89) ou de Greta Garbo (4/90). Através da simples seleção dos factos, mas também da sua interpretação, o que o autor pretende revelar é uma intimidade.
    Estas datas são amiúde acompanhadas de reflexões, mas sobretudo de preocupações que o diarista repudia por não suportar o sentimento de um horror perante o qual se sente totalmente impotente: “As novas que a imprensa traz, cada vez mais inquietantes. Que vai acontecer no Golfo?” II, 233: “últimas notícias sobre a crise do Golfo. Fala-se de uma nova cruzada (…) Mas agora já não é por causa da profanação dos lugares santos do Cristianismo (como foi nos sécs. XI-XII) mas por causa da profanação dos lugares sagrados do Petróleo, outro deus ainda mais universalmente adorado. (…) Com todo o seu cortejo de horrores, a guerra está aí à porta (…) Em mim um sentimento de impotência e de humilhação. Para esquecer, fui à noite ouvir Eduardo Hubert. Tocou Schumann e Ravel.” (II, 224); “No coração dói-me a amargura da impotência. A dor do mundo.” (IV, 83).
    Arquiva também nas páginas do seu diário a sua história íntima da cultura açoriana, ao registar impressões de concertos e festivais de música, exposições de pintura e lançamentos de livros, congressos e colóquios. Deixa-nos páginas de valor inestimável ao conciliar crítica literária e testemunho sobre um determinado escritor. É o que acontece, por exemplo, com os escritores Dias de Melo (II, 51-59 / III, 191-192), Daniel de Sá (III, 190), Álamo Oliveira (IV, 100-101), ou com a pintora Luísa Athaíde (III, 25-26). Chega a transcrever na íntegra o que disse acerca de um poeta em praça pública. É o caso de Ruy Galvão, que considera seu mestre e muito admira ao ponto de integrar poemas seus nas páginas deste diário (II, 64-65). No mesmo espírito de arquivista que intimamente pretende mostrar, transcreve cartas que escreve a amigos e cartas que deles recebe (II, 82).
    Pouco fala da sua atividade de professor, mas a referência a algumas aulas serve-lhe frequentemente para veicular ideias e modos de conceber a História: “Aula sobre o tema: O significado do Sebastianismo no contexto da União Ibérica. (…) Sugeriu-se por exemplo, que na península, por falta de hábitos de investigação científica, só tardiamente se demarca a fronteira entre o possível e o impossível. A realidade e o sonho. Donde a dominância do sobrenatural e da fantasia que ajudam, também, a definir a nossa alma sebástica.” (II, 143).
    “E eu lembrei a imensa manhã da minha meninice onde havia o lugar do mundo mais seguro que já me foi dado conhecer: o colo de minha Mãe.” (II, 133)
    À semelhança de Proust, em À la recherche du temps perdu, Aires procede a uma justaposição de tempos e espaços passados e presentes, tentando assim ultrapassar o tempo que nega a vida e o espaço que separa os seres. Tal como acontece no episódio da madalena, no romance de Proust, em que o sabor atual de um biscoito molhado numa chávena de chá desencadeia a lembrança do mesmo sabor experimentado num passado já longínquo e com ele ressuscita todo esse passado, no dia 10 de novembro de 1988, a chuva fina a mudar de direção conforme o vento parece ao diarista um enxame de mosquitos no ar, desencadeando a lembrança da mesma sensação experimentada num dia de desgraça para a sua avó, traz-lhe a memória de um passado não totalmente recuperável: “E foi esta chuvinha, assim como o farelo peneirado do alto, que me trouxe as vozes e um susto diluído que ainda sinto. Tudo cheio de interrupções e de coisas esquecidas para sempre.” (II, 30). A voz da Linda a chamá-lo para o almoço lembra-lhe a da mãe em semelhante situação (II, 166); o gesto de refrescar uma melancia ao fio da torneira lembra-lhe o hábito antigo antes do aparecimento dos frigoríficos (II, 222); a contemplação de uma vindima lembra-lhe “a ladeira pedregosa do Pico do Frade e os homens carregados de cestos de uvas (…)” e o ti Ermínio Cassota (II, 223); o cheiro a sardinha assada lembra-lhe o pai “em mangas de camisa, a comê-las com pão de milho caseiro.” (II, 230); o cheiro a “roupa que em tempos vinha da América para os parentes pobres das Ilhas” lembra-lhe a excitação da família ao chegarem as encomendas de Tia Silvana: “Isto era antigamente.” (III, 34).
    O cheiro, o sentido mais trabalhado por Fernando Aires, é dos mais poderosos no que respeita a esta alquimia proustiana: “De manhã a Linda trouxe tangerinas (…) descasquei uma, e o perfume intenso recordou-me tudo de uma vez: o Natal da infância, o licor que minha mãe fazia, o presépio, a consoada (…)” (III, 196); “Surpreendo-me com o poder que tem o cheiro para recriar presenças, disposições de alma (…)” (IV, 60).
    Certos lugares são também suscetíveis de ativar a rememoração do passado. É o caso do cais que lhe lembra a sua partida para Coimbra aos 18 anos (II, 151), assim como da casa da sua infância: “basta passar por ali, olhar (…) Num relance, é toda uma vida, com o que ela teve de coisas e de gente. ” (III, 57). E assim recorda Tia Querubina, D. Antónia “de luto fechada” e a caixa de música que guardavam no quartinho do meio. No quarto volume, um jantar em sua homenagem no salão do seu antigo liceu traz-lhe lembranças do tempo em que ali vinha como aluno e dá conta das leituras que fazia naquela época: “Depois dos contos de fadas da minha meninice, seguiu-se, de perto, Júlio Verne (…)” (IV, 90).
    As transformações inevitáveis do progresso que caraterizam hoje em dia Ponta Delgada acendem na memória do diarista a imagem do antigo rosto desta cidade: “Pus-me a relembrar como era a cidade de há quarenta anos. (…) Que restava de outrora?” (II, 178); “o sítio por onde antigamente se entrava na Mata da Doca (…) Agora já não é mata nenhuma. Agora é uma coisa monstruosa e de pedra (…). Pois naquele tempo, havia ali uma mata (…) Logo no começo, voltada para a Rotunda, ficava a minha escola primária (…)” (II, 227/228). A imagem deste lugar dá azo a recordações da professora e das aulas.
    Mortes e aniversários são também energia de ativação da memória: a morte de um amigo (II, 164 / III, 16), o aniversário da morte do seu pai (III, 131-132), o dia do seu aniversário (II, 149 / III, 107 /), ou do da sua esposa: “Faz hoje anos a Linda. (…) E um dia aconteceu o encontro (II, 237/238). 
    Outro meio de recuperar o passado e de travar a roda do tempo é através da leitura de velhas cartas e jornais: “Estive a ler cartas de há muitos anos e foi como se o tempo parasse” (II, 114); “Encontro num armário vários números do Açores de 1967. Folheio alguns e é como levantar a tampa de um baú onde se tivesse aferrolhado o passado.” (III, 6). Ou ainda da contemplação de velhas fotografias: “Tenho para aí retratos de antepassados (…) Torturo a memória, rebusco-a (…)” (II, 234).
    Por analogia, a sua convivência com os netos faz vir à tona impressões da sua própria infância: “Quando a sua neta Beatriz faz um ano: “E eu lembrei a imensa manhã da minha meninice onde havia o lugar do mundo mais seguro que já me foi dado conhecer: o colo de minha mãe.” (II, 133).
    A autoreflexividade que carateriza este diário é ainda um agente de transição do tempo presente para o tempo passado. Assim, na tentativa de explicar a génese do próprio diário, Aires apresenta uma retrospetiva da sua vida literária: “Desde os verdes anos me tomei de admiração por quem escreve. E, digamos, desde o liceu, no jornalinho ‘Girassol’, me pus a ensaiar aquilo que só no tempo se foi configurando em escrita. Aos 14-15 anos (imagine-se!) comecei mesmo um romance que chegou a ser batizado (‘As ruínas de Valhadolid’) e que morreu, logo ao nascer, de debilidade congénita. Com os anos fui percebendo o em que consiste a intimidade da pessoa consigo mesma (…) Começava eu então (por 45-46) a partilhar dos modos e dos sonhos do grupo do bar Jade (como eu o designo) do qual saiu, em devido tempo, a ideia do Círculo Cultural Antero de Quental e a revistinha Açória. Além da minha pessoa, constituía o grupo o Eduíno (…) o nosso grupo propunha-se em primeiro lugar (…) Depois foi Coimbra (…) Afonso Duarte (…) Foi assim que nasceu este Era Uma Vez o Tempo.” (II, 27-28).
    Através da leitura de textos antigos, Aires avalia a consistência ontológica em função da ideia de permanência, desafiando o caráter transformador do tempo: “Estive a ler cartas de há muitos anos. Foi como entrar na minha alma antiga e descobrir como muito pouco mudou (se é que mudou): as mesmas nostalgias, a mesma impaciência, os mesmos desejos. O mesmo silêncio interior onde eu próprio tenho dificuldade em entrar.”
    Apesar da aproximação que fizemos com a obra proustiana, Fernando Aires nunca poderá escrever o capítulo intitulado “Le temps retrouvé”, pois para ele os lugares da sua memória são “um estilhaçar de imagens que se incompletam” (II, 228): “No fim, não somos mais do que túmulos vivos de um passado extinto que, em grande parte, não aconteceu da maneira que se conta e, definitivamente, ficará por contar.” (II, 153); “O que temos do passado são pedaços, nomes perdidos, sombras, numa grande promiscuidade impossível de destrinçar.” (III, 196).
    Por fim, pensamos que o Diário de Fernando Aires revela uma preocupação estilística que não deve ser menosprezada e poderá ser analisada em relação com o caráter intimista que marca profundamente este texto, como o revelam metáforas tais como: “Depois a chuva para, e o ar, as casas, o chão, ficam com o desalinho de cabelos, o perfume, a frescura de pele, a ereção de mamilos de moça que acabou de sair do banho e se contempla diante do espelho.” (IV, 80). O autor utiliza variados recursos estilísticos para tentar veicular o indizível das coisas, ou mais uma vez «a poesia latente das coisas», como acontece por exemplo com as seguintes aliterações: “a luz fuzilou no espelho do quarto, azulando a escuridão. E os trovões rolaram longamente como calhaus imensos num céu oco.” (II, 118). O autor considera esta preocupação estilística como primordial, pois grava-a nas próprias páginas do seu diário como que para ainda mais a reforçar: “Estar atento ao som das vogais e à posição das consoantes. Ter infinita cautela com os adjetivos e os verbos. Não abusar dos hífenes e das reticências. Recuperar as sílabas perdidas.” (IV, 23).
    ·           Aguiar, Cristóvão de (1999) Relação de Bordo (1964-88), Porto, Campo das Letras.
    ·           Aguiar, Cristóvão de (1997) “Relação de Bordo I. Sobre Diário IV de Fernando Aires”, in Suplemento Açoriano de Cultura, n.º 56, 12 junho.
    ·           Aires, Fernando (1990) Era uma Vez o Tempo, 2º volume, Instituto Cultural de Ponta Delgada. Era uma Vez o Tempo, Diário III (1993) e Diário IV (1997), Edições Salamandra, Lisboa.
    ·           Bettencourt, Urbano (1983) O Gosto das Palavras, col. Gaivota, nº 31, Angra, SREC; (1987) O Gosto das palavras II, Ponta Delgada, Signo; (1999)O Gosto das Palavras III, Lisboa, Edições Salamandra.
    ·           Boerner, Peter (1978) «Place du Journal dans la Littérature Moderne», in Le Journal Intime et ses Formes Littéraires, Actes du Colloque de septembre 1975, Genéve-Paris, Librairie Droz.
    ·           Didier, Béatrice (1991) Le Journal Intime, Paris, P.U.F., Collection Littératures Modernes, 2è. Ed.
    ·           Durand, Gilbert (1969) Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire, Paris, Brodas.
    Freitas, Vamberto (19
    91) Diário de Notícias, 24 de fevereiro, Revista de Livros.
    ·           Freitas, Vamberto (1992) O Imaginário dos Escritores Açorianos, Lisboa, Edições Salamandra.
    ·           Freitas, Vamberto, (1999) A Ilha em Frente, Lisboa, Edições Salamandra.
    ·           Girard, Alain (1986) Le Journal Intime, Paris, P.U.F., Collection Dito, 2è. Ed.
    ·           Gusdorf, Georges (1991) Auto-bio-graphie, Paris, Éditions Odile Jacob.
    ·           Gusdorf, Georges (1948) La Découverte de soi, Paris, P.U.F.
    ·           Lejeune, Philippe (1986) Moi Aussi, Le Pacte Autobiographique (bis), Paris, Seuil.
    ·           Leleu, Michèle (1952) Les Journaux intimes, Paris, P.U.F.
    ·           Madelénat, Daniel (1989) L’Intimisme, Paris, P.U.F.
    ·           Olney, James (1980) Autobiography. Essays Theoretical and Critical, Princeton, Princeton University Press.
    ·           Régio, José (1994) Páginas do Diário Íntimo, Lisboa, Círculo de Leitores.


    [1] Não incluímos no corpus deste trabalho o primeiro volume do Diário, que não estava disponível no mercado.
    [2] Era uma Vez o Tempo, 2º volume, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1990. Era uma Vez o Tempo, Diário III (1993) e Diário IV (1997), Edições Salamandra, Lisboa.
    [3] No que respeita às citações do Diário de Fernando Aires, a referência bibliográfica aparece no corpo do texto, no fim da citação, entre parêntesis, e inclui em numeração romana o número correspondente ao volume em que está inserida a citação, seguido do respetivo número de página em numeração árabe.