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  • EDUÍNO BORGES GARCIA E A AÇORIANIDADE 1953

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    Em 1953, Eduíno Borges Garcia […] é o primeiro a lançar nos Açores a apologia de uma Verdadeira Literatura Açoriana (v. separata do jornal A Ilha), numa série de artigos que se ficou como sinal de aviso contra o produto fácil e os equívocos da literatice inflacionária. Os pontos de vista ali expressos denotam de algum modo as impressões de um meio circunscrito a meia dúzia de nomes. Se aclara a excessiva generosidade reinante em determinados espíritos de compromisso mais que sectário, é também certo que se deixa permeabilizar a outras tantas hipóteses literárias nem sempre convincentes. Mas o merecimento deste pequeno trabalho de crítica e intervenção cultural reside, estamos em crer, na sua tentativa de redefinir o conceito neo-realista. Com ele se opera a autópsia do preconceito, a corrupção da coluneta jornalística e o acomodismo de certos escribas incapazes de se desfossilizarem.

     

    João de Melo (1978)

    In lusofonia.com.sapo.ptEm 1953, Eduíno Borges Garcia […] é o primeiro a lançar nos Açores a apologia de uma Verdadeira Literatura Açoriana (v. separata do jornal A Ilha), numa série de artigos que se ficou como sinal de aviso contra o produto fácil e os equívocos da literatice inflacionária. Os pontos de vista ali expressos denotam de algum modo as impressões de um meio circunscrito a meia dúzia de nomes. Se aclara a excessiva generosidade reinante em determinados espíritos de compromisso mais que sectário, é também certo que se deixa permeabilizar a outras tantas hipóteses literárias nem sempre convincentes. Mas o merecimento deste pequeno trabalho de crítica e intervenção cultural reside, estamos em crer, na sua tentativa de redefinir o conceito neorrealista. Com ele se opera a autópsia do preconceito, a corrupção da coluneta jornalística e o acomodismo de certos escribas incapazes de se desfossilizarem.

     

    João de Melo (1978)

     

     

     

     

    POR UMA AUTÊNTICA LITERATURA AÇORIANA

    Eduíno Borges Garcia (1953)

    Sumário:
    a. Os pioneiros e o futuro
    b. O regional e o universal
    c. Mentalidade turística ou humanismo moderno?
    d. Carta aberta aos jovens intelectuais açorianos

     

    a. OS PIONEIROS E O FUTURO

    Desde os primórdios do povoamento dos Açores que os literatos destas Ilhas têm falado do homem açoriano. Mas é no século XIX que a literatura de ficção começa a ter alguma importância, embora o homem açoriano ainda não apareça em profundidade. Até quase aos nossos dias, só por acaso é que essa ficção tocou o problema seriamente, pelo lado que julgamos verdadeiramente de interesse. Pode dizer-se que essa ficção ou era uma tentativa falhada literariamente, ou, se literariamente tinha algum valor é porque se filiava inteiramente na literatura de Portugal Continental, e então não era mais do que Literatura Portuguesa escrita por portugueses dos Açores. Alusões diretas ao nosso meio geográfico e diálogos onde se punha a nossa característica maneira de falar, eram elementos acessórios e não chegavam para disfarçar a verdadeira origem tradicional e estética dessa «literatura».

    Já em pleno séc. XX, a preocupação de criar uma literatura tipicamente açoriana apresenta-se sob a forma de tentativas dispersas, quase sempre inconscientes e falhadas — se é que houve tal preocupação.

    Urbano de Mendonça Dias na vasta série de romances que escreveu foi um falhanço em toda a linha. Literariamente maus (o seu conhecimento de técnica literária mais elementar era fraco, para não dizer nulo), no que se refere ao homem e ao meio como elementos estéticos, os seus livros nada valem porque nada contêm de essencial do homem açoriano. O «açorianismo» de U. Mendonça Dias é um açorianismo postiço, porque é um açorianismo de superfície. Explora o pitoresco, o «típico» pelo lado mais pobre, sem nunca descer ao fundo do homem e compreendê-lo em relação com o meio em que vive.

    Escolhemos este escritor por ser um caso bastante característico, o que facilita a compreensão do nosso ponto de vista. Claro que podíamos falar de outros exploradores do pitoresco, mas isso nada adiantava, porque o pitoresco não é Literatura Açoriana. Também não é Literatura Açoriana o falar-se de gaivotas, cheiro de maresia ou ânsias hereditárias de emigrar. É por isso que não se pode chamar poesia açoriana por exemplo à poesia dos nossos conterrâneos Eduíno de Jesus e Jacinto Soares de Albergaria. Não queremos com isto dizer que essa poesia seja uma tentativa falhada de açorianização, pelo simples facto de que na poesia dum e doutro não há nada que nos leve a crer estarem interessados na construção duma Literatura Açoriana.

    Eduíno de Jesus e Jacinto Soares de Albergaria são, aliás confessadamente, «poetas europeus». Mas há quem confunda as coisas teimando chamar-lhes poetas açorianos e daí a razão da nossa explicação, ficando assente que, de entre outros, Eduíno de Jesus e Jacinto Soares de Albergaria nada têm que ver com uma autêntica Literatura Açoriana.

    Armando Côrtes-Rodrigues, que depois da fase do Orfeu se pode dizer que retrogradou ao entrar no nosso acanhado meio intelectual, só veio de novo a ganhar altura depois da sua identificação com o nosso povo, a quando da recolha da poesia popular que aparece em 1937 na Poesia Popular Açoriana e depois no Cancioneiro Popular Açoriano.

    Depois do contacto benéfico do poeta com a fonte mais pura da alma do povo açoriano, a sua poesia humanizou-se, tornou-se mais nossa mais objetiva, no sentido mais profundo da palavra, tornou-se mais açoriana.

    O Teatro de Armando Côrtes-Rodrigues a que ele Próprio chama regional, não há dúvida que contém qualquer coisa como que uma tentativa de universalização.

    Considerando a sua peça O Milhafre, para nós a sua melhor obra teatral e também a que contém em maior grau o específico açoriano, vamos analisar alguns pontos de capital importância para a compreensão de certos princípios estéticos que nos propomos defender.

    A linguagem de Côrtes-Rodrigues é uma linguagem fluente e pura. Há na sua prosa a legítima intenção de tornar límpida e vernácula a linguagem falada pelo nosso povo. Não há a menor vontade de explorar o pitoresco dos falares San-Miguelenses, mas sim aproveitar deles o que é mais expressivo e belo. Outro tanto fez Graciliano Ramos com a linguagem rural do Brasil e isso valeu-lhe ser considerado, e com justiça, um clássico da língua.

    Os diálogos são perfeitos e de tal modo encadeados e consequentes que despertam um interesse e comunicam uma adesão crescentes. São como uma engrenagem perfeitamente ajustada, movendo-se sem a mais pequena falha, sem um desgaste.

    O conflito posto em O Milhafre é cheio de interesse humano. Simplesmente — e isso é para nós muito importante — o modo de focar o problema, o ângulo de visão em que o autor se coloca, não é o dum humanista consequente que mostre conhecer profundamente o homem que artisticamente estuda.

    Pergunta-se: porque é que António emigrou para a América? Na peça, não se acredita que tal coisa seja uma necessidade premente. A família não sente que isso seja necessário — até se espanta com essa ideia de António. E este quando volta, é a sua própria mãe que o acusa de ter abandonado o lar, tornando-o portanto responsável pelo drama (?) que a sua ausência originou.

    A peça que sugere um conflito sério, no fim de contas não passa duma tempestade num copo de água, e termina num «Happy end», que desgosta quem leva a sério os problemas do homem açoriano. O autor teve entre mãos um tema de que não soube, pelo menos artisticamente, compreender a verdadeira medula sociológica, o autêntico sentido humanístico. Homem e meio não chegam a depender-se na medida em que uma criação artística se torna vigorosa na medida em que os problemas humanos dum determinado lugar geográfico são postos com a força do que é essencial e profundo para os indivíduos que constituem a humanidade restrita desse lugar determinado.

    Um problema é esboçado, mas não posto claramente. Depois é resolvido com superficialidade, de maneira frouxa, o que nos leva a duvidar se a peça realmente valeu a pena.

    Mas não se julgue que menosprezamos a obra de Côrtes-Rodrigues, que pretendemos simplesmente deitar a baixo tudo o que honesta e amorosamente vem construindo o autor de Quando o Mar Galgou a Terra.

    Num meio onde a crítica, por mais ligeira que seja, não existe, é natural que espíritos tacanhos não saibam entender o verdadeiro sentido das nossas palavras. Mais — estamos certos de que se existisse crítica no nosso meio, talvez a obra de Côrtes-Rodrigues tivesse subido a um grau que não alcançou, apesar da sua qualidade e da seriedade intelectual com que foi criada.

    E, se, ao falarmos duma autêntica Literatura Açoriana, escolhemos o teatro de Côrtes-Rodrigues para expormos os nossos pontos de vista, é porque consideramos que, na Ilha de S. Miguel, foi quem com maior honestidade e com maior talento tentou criar uma obra artística em que o regional ganhasse foros de universal. Ë por isso que a obra de Côrtes-Rodrigues merece a maior consideração.

    O grande passo para a Literatura Açoriana é dado com Vitorino Nemésio, primeiro com o romance Mau Tempo no Canal e depois com o livro de contos Mistério do Paço do Milhafre.

    Chegou a grande hora para a Literatura Açoriana. O regional universaliza-se.

    Na obra de ficção deste escritor, o homem dos Açores é estudado em diversas das suas mais características facetas. Quem não for dos Açores fica a conhecer como são os Açores, como é o homem dos Açores, pelo menos o homem pertencente à classe social, melhor, às classes sociais, que o autor pretende analisar.

    A obra de Vitorino Nemésio requer uma análise minuciosa que está fora do âmbito deste pequeno esquema. Por isso, e por o considerarmos, em certa medida, enquadrado, dentro dos princípios estéticos que defendemos, guardamos para outro trabalho a crítica dessa obra capital.

    Mas a grande revelação vem com o livro de Pedro da Silveira A Ilha e o Mundo. Diversos sectores da crítica portuguesa foram unânimes em considerar o livro como obra de mérito, mas, e em Portugal isso acontece, faltou a verdadeira compreensão do caso açoriano. «Fora das coordenadas geográficas de Lisboa o crítico treslê», disse alguém acertadamente.

    O livro foi considerado como se fosse mais um livro de poemas português, por ser escrito em língua portuguesa. Mas isso é um erro gravíssimo. Será literatura portuguesa tudo o que é escrito em português? Será porventura literatura portuguesa, por exemplo, a dum Lins do Rego ou dum Graciliano Ramos?

    Pedro da Silveira, profundo conhecedor da gente dos Açores (ou não fosse ele o verdadeiro globe-trotter das nossas Ilhas), pelo menos na sua mais profunda maneira de sentir e de agir, dá-nos de amorosa maneira o verdadeiro sabor das velhas gentes açorianas. O «burgo» que é assim triste e morto desde o princípio do mundo, os baleeiros antigos, valentes e ingénuos, os que emigraram e construíram cidades e ajudaram países estrangeiros a serem grandes, os que trabalham nos campos e cantam a Chamarrita, os que desesperam porque os navios os não levam já para as terras da fartura, os que voltam com o coração cheio de ternura por tudo o que deixaram e que encontram sem alteração e os que num momento sonham que alguma coisa de diferente vai acontecer, todos, toda essa multidão de gentes que constitui o nosso pequeno mundo, lá estão autênticos e tristes como se fossem vivos.

    Com todos os seus defeitos (não quererá Pedro da Silveira dar um sentido demasiado estreito ao conceito da Pátria Açoriana?), o livro tem o valor dum documento vivo e o excitante incitamento dum novo caminho descoberto.

    Pessoalmente, não somos dos que acreditam que o maior valor duma literatura está na sua poesia. De grosso modo até porque duvidamos do grande interesse da Poesia como forma de conhecimento. Se a ciência visa unicamente o conhecimento puro, não há dúvida que o romance sendo arte, visa alguns aspetos do conhecimento que estão vedados à ciência. Isto é assim com todas as formas artísticas, embora com umas mais do que com outras. Com isto queremos significar que esperamos mais do romance e até do conto do que da poesia. E isto para concluirmos que, embora com o devido apreço pelos nossos poetas, aguardamos com a maior fé que os jovens contistas e romancistas em formação nos deem brevemente o verdadeiro homem açórico, num autêntico meio açoriano.

    Chegados a este ponto do nosso trabalho é legítimo que surja a pergunta: que caminho devem então tomar os jovens escritores açorianos para se conseguir uma verdadeira, uma autêntica Literatura Açoriana?

    A resposta não é fácil, nem mesmo seria honesto afirmarmos que possuímos a fórmula secreta, a «pedra filosofal», da pretendida literatura.

    Por muito estudarmos e meditarmos o problema, é que nos atrevemos a sugerir o que nos parece de capital importância.

    Ë claro que não pode surgir uma literatura sem que haja escritores. Por essas razões os nossos jovens pretensos escritores terão de estudar a técnica de escrever. Isso só por si constitui já uma tarefa árdua e morosa, embora não queiramos dizer que antes de mais nada o escritor deva conseguir o seu estilo, O estilo vem mais tarde. Vem só quando o escritor tem as suas convicções, quando já tem dentro de si um mundo de conhecimentos sólidos, cada dia renovado e enriquecido pela conquista de cultura e fecundado pelos contactos profundos com o quotidiano, com o mesquinho e grandioso teatro da vida.

    O que é indispensável é um profundo conhecimento do caso açoriano. É preciso conhecer o homem e o meio. O homem terá de ser historicamente estudado, geograficamente estudado, economicamente estudado, sociologicamente estudado. Estudar de que modo se formou a mentalidade do homem açórico, não cabe mais aos eruditos fazê-lo mas sim aos contistas e aos romancistas. Estudar todas as realidades exteriores ao homem, mas que o dominam e o impelem a agir de maneira determinada é o que nos parece fundamental na tarefa a empreender.

    No momento em que os nossos jovens escritores começarem a ter consciência disso, dessas forças ocultas que comandam o homem, no momento em que a economia, a geografia, a história dos Açores forem estudadas tendo em vista o homem; no momento em que os nossos escritores começarem a escrever poesias, contos, novelas c romances ao mesmo tempo que aprofundam e não perdem de vista esses conhecimentos, então estaremos realmente construindo a nossa literatura, a autêntica Literatura Açoriana.

    b. O REGIONAL E O UNIVERSAL

    A Ciência é uma forma de conhecimento, e dissemos já que considerávamos a Arte também como uma forma de conhecimento. Mas não idênticas, é claro. Enquanto a Ciência compreende e transmite servindo-se da inteligência e da razão, a Arte compreende e transmite servindo-se da intuição e da sensibilidade.

    E, tanto a Ciência como a Arte são universais. — Ciência e Arte universais; que quererá isso dizer? — Quer dizer que a inteligibilidade dos factos e das coisas é idêntica para todos os homens. Ciência e Arte não distinguem nacionalidades nem raças. Para o Teorema de Pitágoras ou para o D. Quixote não há fronteiras.

    Mas a Ciência é progressiva, os conceitos transformam-se caminhando sempre para diante; enquanto na Arte não há progresso, mas sim uma maior ou menor consciencialização dos problemas humanos e sociais — o resto reduz-se à técnica e ao talento criador.

    Por agora o que nos interessa é saber que a verdadeira Arte é universal. Mas dirão alguns, e a «arte regional»? Não há porventura uma Arte Regional? — A pergunta é legítima.

    Não existe verdadeiramente uma Arte Regional, como não existe uma Ciência Regional. Quando o artista interpreta o homem dum dado lugar geográfico, quando o equaciona com o meio em que vive, quando o surpreende no seio da classe a que pertence, quando se apercebe das forças que dominam; em suma, quando nos dá «a representação exata dos caracteres típicos em circunstâncias típicas» ele não está a fazer Arte Regional mas simplesmente Arte.

    Vamos à literatura: Almas Mortas de Gogol e, por exemplo Os Cardos do Baragan de Panait Istrati, ou ainda Moleque Ricardo de José Lins do Rego e São Jorge dos ilhéus de Jorge Amado são romances regionais. (Falamos nestes livros ao acaso, mas é também oportuno citar Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio). São romances regionais, dissemos — homem e meio são bem determinados; são um homem e um meio típicos. Mas essas obras que se passam num determinado lugar da terra e que nos dão um homem particular (o homem que vive nesse lugar), são entendidas e sentidas por todos os homens. Mas então o «típico» não restringe? O «típico» restringe e limita quando é um fim em si, não quando é um simples elemento de que o escritor se serve, porque para além disso está a profunda consciência do escritor, o sentido humanista que integra um homem e um meio no todo universal.

    Que o escritor fale dum homem particular, vivendo em determinadas circunstâncias, mas que o faça de modo a que a sua criação artística fale por si própria. O conto, a novela, o romance, a peça de teatro quer se passem nos Arrifes ou na Ribeira Quente, se realmente valerem, tanto serão compreendidos e sentidos por qualquer San-Miguelense como por qualquer japonês ou italiano.

    Que pensem nisto os nossos jovens escritores. Que façam a si próprios a pergunta: este conto, esta novela ou esta peça, quando lidos por um norte-americano ou representada num palco parisiense, alcançará o mesmo êxito artístico que aqui nos Açores?

    Entenda-se que o nosso ponto de vista é que a autêntica Literatura Açoriana, será uma literatura de carácter regional — típica, se quiserem.

    De carácter regional, sim senhores; mas de interesse universal. E isto é uma questão de grau.

    A esse regionalismo de interesse universal, opõe -se o que chamaremos regionalismo estreito. Será, pois, vantajoso tentarmos definir o que entendemos por regionalismo estreito. Por regionalismo estreito queremos significar aquele regionalismo que, em arte, ou melhor, nas tentativas de criação artística, dá o aspeto superficial do homem dum determinado lugar geográfico; um homem definido por caracteres superficiais, movendo-se dentro dum meio definido também por caracteres que não são os essenciais e ao qual se mostra ligado não pelas verdadeiras determinantes, mas por liames frouxos e acidentais, ainda que, por vezes, verosímeis.

    Fechados nesse regionalismo estreito estão os escritores (?) que com tanta diligência nos têm dado uma repousante literatura caseira, «para uso interno», falha de tudo, especialmente sentido humano. Em certa medida foi também esse regionalismo estreito quem formou o que chamaremos mentalidade turística, curiosa atitude de alguns dos nossos intelectuais (?), mas isso fica para mais tarde.

    Uma autêntica Literatura Açoriana será regional pelo ambiente e pela forma (entendendo-se por ambiente o meio geográfico, o próprio homem e a engrenagem social; e por forma a maneira de, esteticamente, mostrar o homem e a engrenagem social — isto, grosso modo) e universal pelo sentido, pelo ângulo de visão do escritor. Para isso o escritor não poderá ser um agente passivo que receba e transmita caracteres sem que ele próprio intervenha como intérprete, como artista autêntico. Era a altura de se fazer a destrinça entre Naturalismo e Realismo autêntico. Para já, fique a ideia de que não consideramos c escritor como elemento passivo da sociedade, mas sim como um verdadeiro «engenheiro de almas».

    Já dissemos que o caso açoriano tinha de ser seriamente estudado pelos nossos jovens escritores interessados numa autêntica Literatura Açoriana. Para isso será necessário analisar os fatores de ordem estritamente local e que são responsáveis pelo modo de vida e pela mentalidade do homem açoriano, assim como os fatores de ordem mundial que determinam direta ou indiretamente certas transformações sociais.

    As pragas, a gumosa e a cochonilha, são fatores locais que levaram à ruína a cultura dos laranjais açorianos. O que originou socialmente essa ruína dos laranjais?

    O facto da agricultura, a posse da terra, estar ainda em larga escala, nas mãos duma classe que vem mantendo-se fechada desde os primórdios do povoamento, imprimiu certo estilo à nossa vida social, e à mentalidade do nosso homem.

    Além destes fatores de ordem regional, temos os de ordem mundial que não podem deixar de ser considerados. Por exemplo a presença das tropas expedicionárias portuguesas durante a 2ª Grande Guerra, trouxe até nós, além de certa prosperidade material, o contacto de muita gente culta, que se fez ouvir através dos nossos jornais, especialmente. A quebra na exportação do ananás e do chá foi também causada por circunstâncias de ordem internacional.

    a isto que os nossos jovens escritores devem estar atentos. Escrever sobre a gente açoriana, sobre a sua vida e sobre os seus problemas, sim senhores; fazer literatura regional, sim senhores, mas aqui muito cuidado! O homem açoriano tem os seus direitos à cidadania do mundo. Fazer literatura regional mas uma literatura regional que se integre nas literaturas do mundo!

    O que está feito é muito pouco mas não há dúvida que a semente está lançada.

    E, não seria útil o estudo da literatura oral dos Açores? Nos Contos Tradicionais do Povo Português de Teófilo Braga há mais casos das nossas ilhas. Por outro lado, em S. Miguel o Teatro é das formas de arte popular a que maior interesse desperta entre a massa da população rural.

    Não seria benéfico para o escritor, mergulhar nessa fonte de águas límpidas que é o povo? Pelo que respeita à poesia, ao conto e ao teatro, certamente muito haveria que aprender.

    Terminamos fazendo nossas as palavras da tia Maria ao José, personagem central do romance Home is an Isand» de Alfred Lewis:

    «Quando tu chegares a ser um grande escritor, escreve acerca da paz; escreve acerca do homem que parte e da mulher que espera; acerca daqueles que trabalham nos campos, na construção das casas, estradas, barcos… sim, escreve a respeito deste povo e destas coisas».

    A Tia Maria tinha muita razão: «escrever a respeito deste povo e destas coisas, é o que é preciso aprender a fazer!

    c. MENTALIDADE TURÍSTICA OU HUMANISMO MODERNO?

    Quando o escritor se encontra preparado para escrever, deve, ainda antes de iniciar o trabalho, fazer a si próprio uma pergunta fundamental; — para quem vou escrever?

    Quer isto dizer que o escritor deva escolher a forma e o assunto consoante o público a quem destina a sua obra? Ou haverá realmente mais alguma coisa para além disso?

    Se considerarmos o escritor como um industrial que produz livros conforme o mercado comprador, não há dúvida que o melhor caminho será escolher o fundo e a forma que agradem plenamente à clientela. Mas já dissemos que considerávamos a tarefa do escritor como uma tarefa séria e elevada; portanto um livro não é uma mercadoria qualquer.

    O escritor sério pergunta-se para quem vai escrever, porque tem consciência de que uma arte que não conta com um público, que não fala dos mais profundos anseios e problemas desse público, resulta como atitude estéril. Quer dizer que determinada atitude estética corresponde forçosamente a uma atitude perante a vida, a uma mentalidade. Mas pode, por circunstâncias particulares, surgir no seio duma sociedade com uma certa mentalidade, um escritor ou vários escritores com uma mentalidade diferente da citada sociedade. E, por outro lado, embora esse ou esses escritores tratem com a maior objetividade os problemas humanos e sociais, o certo é que a sua atitude não pode ser um gesto isolado, sob pena de não encontrarem em quem os lê a ressonância que justifique o esforço da criação.

    Claro que fazedores da «arte pela arte» se contentam com pouco, pois que a sua atitude de afastamento da sociedade em que vivem, outra coisa lhes não pode dar do que um reduzido público constituído principalmente por outros fazedores de «arte pela arte» ou indivíduos para quem os problemas humanos nada contam.

    O escritor sério deve perguntar-se para quem vai escrever, porque pode não ter ainda chegado o momento oportuno de escrever novelas e romances para o público com que conta.

    O momento oportuno? Mas então há momentos oportunos para as criações artísticas?

    Para o escritor que se considere um engenheiro de almas, a mentalidade do público para quem pretende escrever, tem de ser, além doutros elementos de peso, um assunto de primacial importância a considerar.

    Os jovens escritores açorianos têm de se deter neste ponto, que requer séria reflexão.

    Para que surja uma autêntica Literatura Açoriana, é indispensável que surja uma autêntica mentalidade açoriana, na mais elevada aceção da palavra. Uma verdadeira Literatura Açoriana afinada ao diapasão universal, implica uma mentalidade açoriana afinada ao diapasão universal

    Mas então podemos agora rapidamente chegar à conclusão de que a Literatura não é o único caminho que se deve imediatamente trilhar para conseguir a tal mentalidade açoriana. Mais podemos afirmar que não consideramos a autêntica Literatura Açoriana como um fim em si (nem qualquer manifestação artística séria pode ser considerada como um fim em si) mas uma das formas de conhecimento e de expressão da nossa realidade geográfica, social e humana.

    Contos, novelas, poesias e romances, além de constituírem um deleite espiritual, dirão a nós e ao mundo como somos. Mas, é preciso que os jovens intelectuais açorianos se capacitem que a sua inteligência e a sua cultura terão de ser postas constantemente ao serviço da formação duma mentalidade açoriana à altura da nossa época. E, por a inteligência e a cultura constantemente ao serviço duma mentalidade açoriana à altura da nossa época, significa que para além da Literatura, há outras tarefas urgentes a realizar, sem o que não será possível a estreita comunhão do escritor com as largas camadas do público.

    Antes de afinarmos o nosso diapasão pelo diapasão universal, teremos de entrar em contacto com o mundo.

    Conhecer o que é o mundo, não ignorar nada de fundamental do que é presente, do que constantemente se transforma; das grandes realizações do espírito e da tenacidade do homem; dos pequenos e obscuros factos que estão na base das grandes transformações; conhecer a vida dos grandes e dos pequenos povos — as suas aspirações e as lutas que travam para conseguir realizá-las.

    É preciso conhecer tudo isso e ter esperança no futuro do homem. E, conhecer o mundo e ter fé e esperança no futuro do homem é, no fim de contas, ser um humanista consequente, um humanista moderno — e uma autêntica Literatura Açoriana será criada por esse tipo de intelectuais, os únicos à altura da nossa época.

    Materialmente como se conquista tal conhecimento do mundo? Para nós, açorianos, está aqui uma grande dificuldade.

    Se dissermos que é pela leitura atenta das publicações periódicas e dos livros, é claro que damos uma informação muito fácil, muito ingénua. Onde estão as publicações periódicas e os livros que nos digam o que vai pelo mundo? Temos acaso livrarias e bibliotecas que satisfaçam as condições mínimas da aquisição duma cultura viva e atual? Não temos!

    Não temos nos Açores fontes de informação, eis o que é. Mas devemos proclamá-lo sem rebuço, em alto e bom som, porque fazê-lo de frente, sem rodeios, é já pugnar pela tal mentalidade açoriana afinada ao diapasão universal.

    A nossa imprensa, é sabemos, uma imprensa pobre, mas não nos parece, salvo raros lampejos, estar cumprindo integralmente o importante e sério papel que lhe cabe, mesmo considerando os acanhados limites das suas possibilidades materiais.

    Devemos pugnar, dissemos, por uma mentalidade açoriana afinada ao diapasão universal, mas não nos parece que a nossa imprensa esteja muito interessada nisso. Pelo menos poucas provas tem dado nesse sentido. São até exceção os artigos em que o homem seja o tema básico, especialmente quando se trata do caso insular. Antes pelo contrário, o grande prato de resistência é a prosa turística: «como estão floridas as nossas estradas»… «a beleza e a magia das lagoas das Sete Cidades»… «o Senhor Barão de tal disse extasiado que os Açores são um paraíso»… «As Furnas nesta época do ano são o recanto da terra».

    À pobreza franciscana destes estafados chavões, corresponde um estado de espírito coletivo que poderemos classificar de «turístico» e que se vai mantendo aceso devido à pertinácia de certos intelectuais (?), como se as belezas paisagísticas fossem a nossa única riqueza, a única coisa séria que possuímos e de que não nos envergonhamos de falar.

    Assentemos então no nosso ponto de vista: para o aparecimento duma autêntica Literatura Açoriana, cremos ser indispensável renovar e enriquecer a mentalidade do nosso povo. Se o não fizermos correremos o risco de não ter um público amplo e sério a quem falar.

    Uma Literatura Açoriana autêntica não será uma coisinha a mais para os nossos caçadores de picuinhas mostrarem mais uma vez as suas habilidades, falando gratuitamente dela como falam doutras coisinhas inofensivas.

    Os nossos jovens escritores têm de conquistar para si próprios uma compreensão profunda dos conceitos estéticos básicos, e construir, apoiados por uma cultura atual, um sentido da vida e do mundo amplo e universalista — como simultaneamente é indispensável que se esforcem para que o público açoriano se não mantenha afastado do mundo, e ignorante da história dos nossos dias, que por ausência de informação, se processa fora das suas vistas, fora do seu estreitíssimo campa do conhecimento.

    Os amantes das coisas fáceis dirão que exigimos demasiado aos nossos jovens intelectuais e que a literatura nada tem a ver com o resto do mundo. A nossa resposta é que também esses senhores nada têm a ver com uma autêntica Literatura Açoriana, e que o melhor será realmente seguirem o seu caminho, burilando as suas tão queridas rimazinhas choronas e continuarem a pintar os seus belos quadros de prosa verdejante.

    O caminho que nos propomos trilhar é árduo, e a nossa atitude será sempre a de extrema seriedade e de profundo respeito humano pelo homem açoriano. Os que vêm na literatura um simples divertimento, nada têm, pois, a ver connosco.

    Para que a Literatura Açoriana não continue sendo uma acumulação fortuita de raras obras de valor, é que vale a pena tentar esclarecer ideias e definir conceitos. Para os jovens honestos, e hesitantes no momento em que tentam os primeiros voos literários, põe-se sempre o problema de como vou escrever e para quem vou escrever. O nosso panorama literário, especialmente no que se refere à ficção, é extremamente pobre e representa um peso morto para quem nele procure modelos que sugestionem ou atitudes que valham a pena imitar.

    Sob pena de fracasso, os nossos jovens intelectuais açorianos terão de encher o peito de ar e deitar os olhos para mais vastos horizontes. Se quiserem construir obra série, terão de ser verdadeiros humanistas consequentes — respeitando o trabalho do homem açoriano, escutando os seus anseios e compreendendo os seus problemas. A nossa vida, tanto nas suas relações com o mundo como nas suas dependências de ordem local, terá de ser esquadrinhada em pormenor, para que uma análise objetiva possa ser possível. A verdade terá de ser enfrentada com virilidade e nunca disfarçada para proveito de alguns.

    Uma autêntica Literatura Açoriana terá de combater contra preconceitos de castas e de classes. Tanto irá observar e estudar o homem nas cidades, como nas vilas e nos campos.

    E, não são precisos acontecimentos extraordinários para fazer literatura séria. Impõe-se antes de tudo uma pertinaz observação do nosso viver quotidiano. Mas para isso é indispensável um sentido de objetividade acima de todas as conveniências, e muita cultura — uma cultura viva e atual: uma cultura humanista.

    d. CARTA ABERTA AOS JOVENS INTELECTUAIS AÇORIANOS

    Sobre Literatura Açoriana muito mais havia a dizer. Mas, agora que já demos a nossa contribuição, esperamos que sejam os jovens a entrar na liça, entregando-se entusiasticamente à tarefa de escrever ficção ou artigos de ideias.

    Sabemos que o receio que têm de errar os proíbe, muitas vezes, de levar avante o que urge ser feito imediatamente. E, para muitos, esse «deixar para mais tarde» prolonga-se por uma vida inteira.

    Já não é a primeira vez que repetimos que o escritor tem a obrigação de ser um indivíduo consciente e com honestidade mental suficiente para se não deixar arrastar pelas facilidades das coisas já feitas, e – especialmente para nós — pelo excessivamente açoriano. Não há dúvida que é um erro seguir o caminho da busca do excessivamente açoriano, do excessivamente típico, para a realização de qualquer obra literária séria. Fecharmo-nos no excessivamente açoriano é isolarmo-nos do mundo — é cair no tal regionalismo estreito, espécie de mezinha caseira com que os pobres enganam as doenças.

    Mas, íamos dizendo, «guardar para mais tarde» não deve, contudo, ser preocupação. Para os jovens, o que devemos aconselhar acima de tudo é virilidade para enfrentar os problemas e seriedade ao examiná-los, nunca permitindo que a rotina e os preconceitos os desviem do verdadeiro caminho.

    Se os jovens aceitarem este conselho, e embora o que escrevam venha ainda com muitas hesitações, muitas imperfeições e falhas, o certo é que farão melhor do que muitos dos chamados «valores da nossa terra», que não cuidam de mais nada senão da estabilidade da sua gloriazinha, construída dia a dia, diligentemente, durante longos anos.

    Mais do que perfeições formais, se pede aos nossos Jovens uma atitude humanista, uma posição de intelectuais autênticos para quem o nosso povo e a nossa vida seja a preocupação constante. A forma, o chamado estilo, virá depois, e estará de acordo com o tema escolhido. Não queremos dizer com isto que a forma seja um elemento a desprezar, mas simplesmente que será uma consequência do tema e da atitude do artista perante esse tema. A forma é sempre a forma de alguma coisa, e portanto essa «alguma coisa», esse conteúdo, será para nós o mais importante, e é por aí que começaremos. Mais tarde virá a perfeição formal.

    Os nossos pseudoescritores, que mais não sabem do que cantar as belezas da paisagem, que dizem estar construindo Beleza com um B grande, perdem lastimosamente o seu tempo se julgam estar fazendo Literatura Açoriana. Escapa-lhes o que é essencial: o homem açoriano.

    Mais — uma autêntica Literatura Açoriana terá uma atitude construtiva sobre o homem açoriano. Não irá tecer louvores à sua humilde pobreza (apesar do que certos poetas se esforçam por cantar, ninguém quer ser pobre!), nem se mostrará desgostoso com o pouco progresso que se vai efetuando nas Ilhas. Os muitos vapores e aviões que fazem escala pelos nossos portos, serão antes motivo para regozijo por estarmos mais perto do mundo. Para os intelectuais de hoje, senhores da missão que têm a cumprir, acabou-se a torre do marfim.

    Mas aos jovens escritores açorianos pede-se mais do que regozijo perante o progresso; pede-se que sejam eles próprios uma fonte de progresso. Eles que não fiquem comodamente aplaudindo o pouco ou o muito que se faz pela nossa gente. A sua atitude será uma atitude ativa perante a nossa vida, sem campo de ação. Observá-la-ão o mais detidamente possível, e depois irão intervir pessoalmente nela, apontando as feridas, procurando as verdadeiras soluções, melhorando-a.

    Essa atitude de amor ao progresso, será para os nossos jovens escritores alguma coisa como os próprios olhos da cara.

    Suponhamos por ex.: um escritor de «la belle époque» que vai pela milésima vez extasiar-se com o panorama das Sete Cidades: ele chega, olha, abre a boca, fecha os olhos, dá dois passos em frente, três à retaguarda e depois solta um «formidável» clássico. Diz mesmo que descobriu coisas novas na paisagem, e conta algumas histórias ou anedotas alusivas. Alguns dias depois deliciar-nos-á com mais um artigo turístico, num dos nossos jornais. Suponhamos agora que o escritor é doutra espécie. O homem chega e, está um sol esplendoroso:

    — Formidável!, exclama o nosso escritor. Mas um habitante das Sete Cidades responde-lhe:

    — É mas é uma grande desgraça não chover! Temos os milhos todos secando, à míngua de água.

    O intelectual vai observar e vê os milhos realmente quase perdidos. Mas os seus olhos topam com as duas lagoas ali logo — milhões e milhões de litros cúbicos de água inútil. Ao cérebro ocorrem-lhe imediatamente várias coisas relacionadas com o sol, com o milho secando, com as águas inúteis, com a desgraça das gentes. Ele lembra-se por ex.: que a eletrificação da Ilha está longe de ser satisfatória; e sabe que se houvesse energia elétrica barata e disponível, uma simples bomba acionada eletricamente bastaria para matar a sede aos milheirais.

    Se o escritor for um humanista consequente, irá investigar se há possibilidades de termos energia elétrica barata e disponível e, no caso afirmativo, porque não a teremos ainda. Só então lançará a mão à pena.

    Eis aqui, esquematicamente, como o mesmo objeto — a paisagem das Sete Cidades — pode impressionar dois tipos diferentes de intelectuais, e originar duas criações literárias absolutamente diversas.

    De numerosíssimas sugestões a apresentar aos nossos jovens escritores, destaca-se o caso da emigração. O problema já foi tratado com a maior elevação mas ainda não no campo artístico. Não podemos deixar de mencionar O Problema dos Excedentes Demográficos do Dr. Armando Cândido, trabalho duma seriedade, duma objetividade tão raras e corajosas que o queremos apontar como exemplo.

    Artisticamente, melhor, literariamente o caso da emigração, nunca foi visto com clareza e objetividade, como dizíamos.

    Antes de mais é indispensável estudar a sua base económica: dinheiro e roupas enviadas regularmente da América — relacionar essa base económica com as ideias que o povo tem.

    Essa base económica, por ser duma importância capital para as classes rurais e proletárias, exerce sobre elas, além do mais, fortíssima influência psicológica. Atualmente, mais do que regulador demográfico, a emigração para a América atua imediatamente sobre a nossa gente com forças de ordem material e moral, do que resulta um estado de consciência coletivo específico.

    Fernando de Lima no conto Embarque que nos diz de que maneira um jovem açoriano, vivendo a vida chata do nosso quotidiano viver, «namorando à antiga portuguesa», se encontra subitamente obcecado pela presença duma norte-americana mais velha do que ele, pela simples razão de que namorá-la e casar com ela representa para ele a obtenção dum passaporte.

    Conclusão: o jovem Fernando de Lima, ainda sem obra definitiva, soube no citado conto, encarar artística e humanamente, uma importante faceta da emigração atual.

    São tantos os aspetos da vida açoriana por que os nossos jovens intelectuais se devem interessar, que se pode mesmo dizer que todos os aspetos da nossa vida os devem interessar. O que é importante é o ângulo de visão do artista, a sua atitude perante a vida, a sua mentalidade.

    Há dias um Jovem plástico escreveu-nos a dizer:

    «Quero ir pintar para as Sete Cidades, mas não sei como fazê-lo sem repetir mais uma vez o que já tem sido tantas vezes feito».

    A esse jovem o que há a aconselhar é descer às Sete Cidades e observar de que maneira vive o povo que lá habita. Se quiser pintar ou desenhar os homens e as mulheres na sua luta diária, poderá começar por observar as lavadeiras, o dia inteiro mergulhadas na água. Depois poderá saber as dificuldades que enfrentam os que fazem carvão, vendo aproximar-se o dia em que as lenhas acabarão de vez. E, se o artista tiver olhos na cara, estamos certos de que não irá voltar costas a tão humanos temas para se pôr a borrar de verde mais uma ou duas telas.

    Só os cegos ou os mal-intencionados poderão dizer que é impossível o aparecimento duma Literatura Açoriana autêntica. Dizem eles que é porque não temos uma «língua própria», e também porque não temos «uma vida característica» (!). Claro que para esses senhores não temos uma vida característica, mas temos muitas coisas típicas, como por ex.: o ananás, o inhame e os búzios do mar… verdade, o mar? Só o que temos capaz é o mar — o Atlântico. E daí o ser mais bem-sonante e mais grandioso o ser Atlantista, do que ser simplesmente um autêntico intelectual açoriano!…

    Há ainda os que preferem as hortenses e as gaivotas, mas essa sobriedade não é o bastante para tornar a sua arte (?) útil, ou sequer defensável.

    Ë claro que com esses senhores teóricos das nuvens, nada há a fazer. Ainda se quisessem por os pés no chão…

    A nossa esperança está nas gerações mais novas. Só os jovens ainda não subjugados pelo preconceito, poderão, se quiserem aprender com o que se escreveu a sério, fazer brotar das vigorosas raízes já lançadas, os ramos viçosos, as belas flores e os saborosos frutos da Literatura Açoriana para todos os açorianos — serão eles quem fará crescer e frutificar a Autêntica Literatura Açoriana.

     

    Eduíno Borges Garcia

    (Separata composta e impressa na Oficina de Artes Gráficas de Ponta Delgada, em agosto de 1953, e que reúne uma série de artigos publicados no semanário A Ilha, nos n.°s 1106, 1116 e 1118)

    Caro Chrys,
    Só hoje encontrei aqui esta mensagem com o fragmento do João e Melo e a separata de Borges Garcia (que cheguei a conhecer pessoalmente em Lisboa).
    Após a publicação da separata, Borges Garcia publicou (no início de 1954 e também no jornal A Ilha ) um quinto artigo ( numerado na sequência dos anteriores e com o título «A Literatura Açoriana é ou não Literatura Portuguesa?» A resposta dele é sim, mas de modo diferente) que complementa o seu pensamento sobre o assunto. Há anos publiquei-o de novo no SAC/Correio dos Açores, com uma introdução muito genérica a contextualizá-lo (19.12.1996)
    O texto de Borges Garcia tem lacunas informativas sobre literatura açoriana pouco desculpáveis em 1953, era uma aplicação estreita e ultra-ortodoxa do neo-realismo aos Açores, mas teve o mérito de suscitar a discussão e a intervenção de outros (Manuel Barbosa, Fernando Reis, José Enes, José de Almeida Pavão, por exemplo).
    Abraço
    Urbano

     

  • MARIA NOBODY 2 VERSÕES, 2013,SOPRANO E BARÍTONO

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    http://youtu.be/olv0WLIcBnU

    8 abril 2013 segunda execução em público da composição de ana paula andrade e poema de chrys chrystello, interpretado por recital no conservatório de ponta delgada “compositores portugueses” com miguel rodrigues barítono e raquel machado ao piano

     

    A PRIMEIRA INTERPRETAÇÃO PÚBLICA DESTE POEMA MUSICADO POR ANA PAULA ANDRADE DO CONSERVATÓRIO REGIONAL DE PONTA DELGADA OCORREU A 17 MARÇO NA MAIA NO DECURSO DO 19º COLÓQUIO DA LUSOFONIA COM ANA PAULA, HENRIQUE CONSTÂNCIA E HELENA FERREIRA E ESTÁ DISPONÍVEL EM

    http://youtu.be/WSG9_XVsXjM https://www.youtube.com/watch?v=WSG9_XVsXjM&feature=youtu.be

     

    509 (maria nobody, à maria mãe, pico, 9 agosto 2011)

    maria nobody

    de todos ninguém

    de alguém

    de um só

    maria nobody

    com body de jovem

    maria só minha

    assim te sonho

    assim te habito

    maria nobody

    de todos ninguém

    maria nobody

    mãe

    amante

    mulher

    minha maria

    maria nobody

    de todos ninguém

    nem sabes a riqueza

    que a gente tem

    maria nobody

    de todos ninguém

    maria só minha

    dos filhos também

    maria nobody

    mais ninguém tem.

  • portugueses vítimas da inquisição espanhola

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    Portugueses Vitimas da Inquisição  Espanhola (1479 -1834)

     

    Quando se fala da Inquisição espanhola na América, raramente se refere que a maioria das suas vítimas eram portugueses. A maioria era acusada de judaísmo, mas muitos outros de heresia, blasfémia, sodomia, bruxaria, etc.

    O objectivo dos inquisidores era sempre o mesmo: combater a presença portuguesa na Espanha e seus domínios, apoderando-se dos seus bens. Milhares de famílias foram destroçadas e espoliadas.

    A inquisição Castelhana foi criada em 1478, sendo logo seguida da inquisição aragonesa. Não tardou a surgir em toda a Espanha uma vasta rede de tribunais da inquisição, que se estendeu no século XVI às suas colónias.  

    Depois da Espanha ocupar Portugal, em 1580, largos milhares de portugueses vislumbraram neste país grandes oportunidades de negócio. A troco de uma enormes somas de dinheiro, obtiveram autorização para se estabelecerem em Espanha. Ao mesmo tempo continuaram a infiltrarem-se aos milhares nas suas colónias, onde possuíam enormes comunidades, apesar de estarem proibidos de aí se fixarem

    Um destes acordos foi realizado, em 1628, pelo Conde-Duque de Olivares que desta forma procurou atrair para Espanha os principais banqueiros e mercadores portugueses ( 27), para se livrar dos banqueiros genoveses. 

    Uma decisão que se lhes revelou fatal, pois o seu êxito suscitou de imediato o saque dos seus bens através da Inquisição. A seguir à restauração da Independência de Portugal, em 1640, os banqueiros portugueses estabelecidos em Espanha foram sendo sucessivamente presos e pilhados (36): Juan Nunez de Saraiva (1640), Diego Saraiva (1641), Manuel Enriques (1646), Gaspar e Alfonso Rodrigues Pasarino (1646), Estaban Luis Diamante (1646), outro não identificado (1647) (21), Francisco Coelho (1654), Francisco Baéz Eminente (1691), etc. 

    Depois de 1640, muitos dos portugueses que se mostraram leais a Espanha acabaram também por serem acusados de judaísmo, como foi o caso de Rodrigo Mendes da Silva. Nascido em Celorico da Beira (1606), mudou-se para Madrid (1635) onde escreveu importantes obras como “Población General de España” e “Vida e Feitos Heroicos do Grande Condestavel e sua Descendencia (Nuno Alvares Pereira)”. Em 1640 foi nomeado “cronista general de España”. Em 1659 foi acusado de judaísmo, espoliado do seus bens, conseguiu fugir para Itália onde faleceu em Veneza (1670). (58)

    A “União Ibérica” representou a ruína do Império português, o fim das suas rotas comerciais a nível global, mas também uma enorme matança de portugueses pela Inquisição espanhola, em grandiosas manifestações públicas. Estamos perante um verdadeiro genocídio, que visava destruir a sua capacidade de resistência e sobrevivência do povo português.

    O seu saque constituiu uma importantíssima fonte de rendimentos que o tesouro real espanhol carecia, para fazer face aos graves problemas financeiros com que se debatia. Em 1676, os inquisidores calculavam que o resultado da última campanha de expropriação dos portugueses tivesse rendido a fabulosa soma de 772.748 ducados e 884.979 pesos (23). 

    Em 1683 foi publicada a célebre “Ley de Extermínio” dos portugueses. Os que não fossem apanhados e mortos, eram depois de roubados obrigados a fugir sob a ameaça de morte.

    No século XVIII continuavam a existir muitos redutos de portugueses em Espanha. Na maior parte dos casos eram seus descendentes, mas que continuavam a manter muito viva a memória das suas origens (40). A forte endogamia destas comunidades justifica em parte esta profunda ligação a Portugal.

    As colónias espanholas na América, embora se observe o mesmo fenómeno, a verdade é que as mesmas continuaram a receber constantes fluxos de emigrantes portugueses.

    A enorme capacidade que revelaram em se esconderam sob falsas identidades, mas também em se movimentarem, não foi suficiente para resistirem às perseguições que foram vítimas em Espanha, sobretudo entre 1580 e 1745. 

    Estudos recentes apontam claramente para uma conclusão inesperada: morreram mais portugueses vítimas da Inquisição em Espanha e nas suas colónias, do que aqueles que entre 1536 e 1820 foram mortos pela Inquisição em Portugal. .

     

    Os portugueses estavam presentes nas Indias Espanholas, desde que foram descobertas a 12 de Outubro de 1492. O seu poder era enorme, provocando o medo por parte da Corte Espanhola.

    ..

    Não é de estranhar que os portugueses tenham sido as principais vítimas da Inquisição nos tribunais do “Novo Mundo”.
    Segue uma lista de alguns dos portugueses vítimas da Inquisição  espanhola.

    Auto de Fé de 23 de Janeiro de 1639, revestiu-se de uma especial crueldade contra comunidade portuguesa, que viu muitos dos seus serem queimados ou condenados à morte nos cárceres da Inquisição:  

     Francisco Maldonado da Silva (médico, filho de portugueses), morto.

    Antonio de Vega, natural de Fronteira, mercador, morto

    – Antonio de Espinosa, morto 

    – Diego López de Fonseca, morto

    – Juan Rodríguez da Silva, morto .

    – Juan de Azevedo, morto 

    – Luis de Lima, morto 

    – Manuel Bautista Pérez, morto

    – Rodrigo Vaez Pereira, morto.

    – Sebastián Duarte, morto

    – Tomé Cuaresma, morto.

    – Luis Valencia, natural de Lisboa, mercador

     Pablo Rodriguez, natural de Montemayor, mercador.

    – Francisco Vasquez, natural de Mondin, mercador.

    – Juan Lima, natural de Torre de Moncorvo. Mercador. 

    – Luis Lima,  natural de Torre de Moncorvo. Mercador. 

    – Tomás Lima,  natural de Torre de Moncorvo. Mercador. 

    – Enriquez Jacinto, natural de Lisboa, mercador.

    – Enriquez Mateo, natural de Torre de Moncorvo, mercador.

    – Gomez Acosta António, natural de Bragança, mercador.

    – Fernandez Cutiño Gaspar, natural de Vila Flor, 

    – Fernandez Pedro, mercador.

    – Manuel de Paz, queimado em estátua 

    – Marques Montesinos Manuel, natural de Trajo (?), mercador.

    – Marques Montesinos Francisco, natural de Torre de Moncorvo.

    – Avila Rodrigo, natural de Guimarães, mercador

    – António Cordero, natural de Portalegre, mercador.

    – Rodriguez Alvaro.

    – Quaresma Tomé, natural de Serpa, médico.

    – Quiróz Manuel A. Mendez, natural de Vila Flor

    – Nunez Duarte Francisco, natural da Guarda, mercador

    – Nunez Duarte Gaspar, natural da Guarda, mercador

    – Nunez Espinosa Enrique, natural de Lisboa, corregedor

    – Mendez Francisco A. Meneses, natural de Lamego, rendeiro de Minas.

    – Francisco Ruiz Arias, natural de Castelo Branco, mercador. 

    – Vaez Perisa Rodrigo, natural de Monsanto, mercador.

    – Manuel da Rosa, natural de Portalegre, sedeiro.

    – Gaspar Rodriguez Pereira, natural de Vila Real, mercador.

     retirado de diálogos lusófonos

     

    Leia na integra em http://lusotopia.no.sapo.pt/i

  • presença judaica na língua portuguesa

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    in diálogos lusófonos

    PRESENÇA JUDAICA NA LÍNGUA PORTUGUESA EXPRESSÕES E DIZERES POPULARES EM PORTUGUÊS DE ORIGEM CRISTÃ-NOVA OU MARRANA

    septiembre 2nd, 2011 |

    Jane Bichmacher de Glasman (UERJ)

    O objetivo do presente trabalho é apresentar alguns exemplos de influência judaica na língua portuguesa, a partir de uma ampla pesquisa sócio-linguística que venho desenvolvendo há anos. A opção por judaica (e não hebraica) deve-se a uma perspectiva filológica e histórica mais abrangente, englobando dialetos e idiomas judaicos, como o ladino (judeu-espanhol) e o iídiche (alemão), entre os mais conhecidos, além de vocábulos judaicos e expressões hebraicas que passaram a integrar o vernáculo a partir de subterfúgios e/ ou corruptelas, cuja origem remonta à bagagem cultural de colonizadores judeus, cristãos-novos e marranos.

    Há uma significativa probabilidade estatística de brasileiros descendentes de ibéricos, principalmente portugueses, terem alguma ancestralidade judaica. A base histórica para tal é a imigração maciça de judeus expulsos da Espanha, em 1492, para Portugal, devido à contigüidade geográfica e às promessas (não cumpridas) do Rei D. Manuel I, que traziam esperança de sua sobrevivência judaica como tal. Mesmo com a expulsão de Portugal em 1497, os judeus (além dos cristãos-novos e dos cripto-judeus ou marranos) chegaram a constituir 20 a 25% da população local.

    Sefaradim (de Sefarad, Espanha, da Península Ibérica) procuraram refúgio em países próximos no Mediterrâneo, norte da África, Holanda e nas recém-descobertas terras de além-mar nas Américas, procurando escapar da Inquisição. Até hoje é controversa a origem judaica ou criptojudaica de descobridores e colonizadores do Brasil, para onde imigraram incontáveis cristãos-novos, alternando durante séculos uma vida como judeus assumidos e marranos, praticando o judaísmo secretamente (fora os que permaneceram efetivamente católicos), de acordo com os ventos políticos, sob o domínio holandês ou a atuação da Inquisição, variando de um clima de maior tolerância e liberdade à total intolerância e repressão.

    Comparando apenas sob o ponto de vista cronológico, nem sempre lembramos que, enquanto o Holocausto na Segunda Guerra Mundial foi tão devastador, especialmente nos quatro anos de extermínio maciço de judeus, a Inquisição durou séculos, pelo menos três dos cinco da história “oficial” do Brasil, isto é, após o descobrimento. Tantos séculos de medo, denúncias, processos e mortes, geraram, por um lado, um ambiente psicológico de terror para os judeus e cristãos novos no Brasil; por outro, um anti-semitismo evidente ou subliminar que permaneceu arraigado na população, inclusive como autodefesa e proteção.

    Uma característica do comportamento de cristãos-novos “suspeitos” foi procurar ser “mais católicos do que os católicos”, buscando sobreviver à intolerância e determinando práticas sócio-culturais e linguísticas.

    A citada alternância entre vidas assumidamente judaicas e marranas, praticando judaísmo em segredo, com costumes variados, unificados pela “camuflagem” de seu teor judaico, gerou comportamentos e aspectos culturais (abrangendo rituais, superstições, ditados populares, etc.) que se arraigaram à cultura nacional. A maioria da população desconhece que muitos costumes e dizeres que fazem parte da cultura brasileira têm sua origem em práticas criptojudaicas. Apresentarei alguns exemplos bem como suas origens e explicações, a partir da origem judaica “marrana”.

    “Gente da nação” é uma das denominações para designar marranos, judeus, cristãos-novos e cripto-judeus, embora existam diferenças entre termos e personagens.

    Cristãos-novos foi denominação dada aos judeus que se converteram em massa na Península Ibérica nos séculos XIII e XIV; é preconceituosa devido à distinção feita entre os mesmos e os “cristãos-velhos”, concretizado nas leis espanholas discriminatórias de “Limpieza de Sangre” do século XV.

    Criptojudeus eram os cristãos-novos que mantiveram secretamente seu judaísmo. Gente da nação era a expressão mais utilizada pela Inquisição e Marranos, como ficaram mais conhecidos. Embora todos fossem descendentes de judeus, só poucos voltaram a sê-lo, e em países e épocas que o permitiram.

    O próprio termo “marrano” possui uma etimologia diversificada e antitética. Unterman (1992: 166), conceitua de forma tradicional, como “nome em espanhol para judeus convertidos ao cristianismo que se mantiveram secretamente ligados ao judaísmo. A palavra tem conotação pejorativa” geralmente aplicada a todos os cripto-judeus, particularmente aos de origem ibérica. Em 1391 houve uma maciça conversão forçada de judeus espanhóis, mas a maioria dos convertidos conservou sua fé. Já Cordeiro (1994), com base nas pesquisas de Maeso (1977), afirma que a tradução por “porco” em espanhol tornou-se secundária diante das várias interpretações existentes na histografia do marranismo.

    Para o historiador Cecil Roth (1967), marrano, velho termo espanhol que data do início da Idade Média que significa porco, aplicado aos recém-convertidos (a princípio ironicamente devido à aversão judaica à carne de porco), tornou-se um termo geral de repúdio que no século XVI se estendeu e passou a todas as línguas da Europa ocidental.

    A designação expressa a profundidade do ódio que o espanhol comum sentia pelos conversos com quem conviviam. Seu uso constante e cotidiano carregado de preconceito turvou o significado original do vocábulo. Em “Santa Inquisição: terror e linguagem”, Lipiner (1977) apresenta as definições: “Marranos: As derivações mais remotas e mais aceitáveis sugerem a origem hebraica ou aramaica do termo.Mumar: converso, apóstata. Da raiz hebraica mumar, acrescida do sufixo castelhano ano derivou a forma composta mumrrano, abreviado: Marrano. Tratar-se-ia, pois de um vocábulo hebraico acomodado às línguas ibéricas. Marit-áyin: aparência, ou seja, cristão apenas na aparência. Mar-anús: homem batizado à força. Mumar-anus: convertido à força. Contração dos dois termos hebraicos, mediante a eliminação da primeira sílaba”. Anus, em hebraico, significa forçado, violentado.

    Antes de exemplificar a contribuição linguística marrana, convém ressaltar que a vinda dos portugueses para o Brasil trouxe consigo todos os empréstimos culturais e linguísticos que já haviam sido incorporados ao cotidiano ibérico, desde uma época anterior à Inquisição, além de novos hábitos e características; muitas palavras e expressões de origem hebraica foram incorporadas ao léxico da língua portuguesa mesmo antes de os portugueses chegarem ao Brasil. Elas encontram-se tão arraigadas em nosso idioma que muitas vezes têm sua origem confundida como sendo árabe ou grega. Exemplo: a “azeite”, comumente atribuída uma origem árabe por se assemelhar a um grande número de palavras começadas por “al-” (como alface, alfarrábio, etc.), identificadas como sendo de origem árabe por esta partícula corresponder ao artigo nesta língua. O artigo definido hebraico é a partícula “a-” e “azeite” significa, literalmente, em hebraico “a azeitona” (ha-zait).

    Apesar da presença judaica por tantos séculos, em Portugal como no Brasil, as perseguições resultaram também em exclusões vocabulares. A maior parte dos hebraísmos chegou ao português por influência da linguagem religiosa, particularmente da Igreja Católica, fazendo escala no grego e no latim eclesiásticos, quase sempre relacionados a conceitos religiosos, exemplos: aleluia, amém, bálsamo, cabala, éden, fariseu, hosana, jubileu, maná, messias, satanás, páscoa, querubim, rabino, sábado, serafim e muitos outros.

    Algumas palavras adotaram outros significados, ainda que relacionados à idéia do texto bíblico. Exemplosbabel indicando bagunça; amém passando a qualquer concordância com desejos; aleluia usada como interjeição de alívio.

    O preconceito marca palavras originárias do hebraico usadas de forma depreciativa, como: desmazelo (de mazal – negligência, desleixo), malsim (de mashlin – delator, traidor), zote (de zot / subterrâneo, inferior, parte de baixo – pateta, idiota, parvo, tolo), ou tacanho (de katan – que tem pequena estatura, acanhado; pequeno; estúpido, avarento); além de palavras relacionadas a questões financeiras, comocacife, derivada de kessef = dinheiro.

    Dezenas de nomes próprios têm origem hebraica bíblica, como: Adão, Abraão, Benjamim, Daniel, Davi, Débora, Elias, Ester, Gabriel, Hiram, Israel, Ismael, Isaque, Jacó, Jeremias, Jesus, João, Joaquim, José, Judite, Josué, Miguel, Natã, Rafael, Raquel, Marta, Maria, Rute, Salomão, Sara, Saul, Simão e tantos outros. Alguns destes, na verdade, são nomes aramaicos, oriundos da Mesopotâmia, como Abraão (Avraham), que se incorporaram ao léxico hebraico no início da formação do povo hebreu.

    Podemos citar centenas de nomes e sobrenomes de judaizantes e números de seus dossiês, desde a instalação da Inquisição no Brasil, a partir dos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, e de livros como Wiznitzer (1966), Carvalho (1982), Falbel (1977), Novinsky (1983), Dines (1990), Cordeiro (1994), etc. Sobrenomes muito comuns, tanto no Brasil como em Portugal, podem ser atribuídos a uma origem sefardita, já que uma das características marcantes das conversões forçadas era a adoção de um novo nome. Muitos conversos adotaram nomes de plantas, animais, profissões, objetos, etc., e estes podem ser encontrados em famílias brasileiras, até hoje, em número tão grande que seria difícil enumerá-los. Exemplos: Alves, Carvalho, Duarte, Fernandes, Gonçalves, Lima, Silva, Silveira, Machado, Paiva, Miranda, Rocha, Santos, etc. Não devemos excluir a possibilidade da existência de outros sobrenomes portugueses de origem judaica.

     

    leia o trabalho na íntegra »» http://www.esefarad.com/?p=26210

    __._,_.___
  • Cristóvão de Aguiar dito por Chrys Chrystello

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    1. Cristóvão de Aguiar,
    . Cristóvão de Aguiar dito por Chrys Chrystello
  • açorianidade, nemésio e machado pires Manuel Sá Couto

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    Pela importância do tema, aqui vai o texto da entrevista do Diário Insular:

    E o que é isso de açorianidade? Como é que este pensamento foi sendo construído?

    Apalavra açorianidade começou com uma ace­ção diferente da que tem hoje, num sentido mui­to mais restrito e individual. A açorianidade é um termo inventado por Vitorino Nemésio, mas é um termo que diz respeito à experiência afeti­va que ele teve afastado da sua terra. É um con­ceito experiencial de vida, um conceito poético e lírico, e não propriamente tudo o que diz respei­to aos Açores, ao comportamento dos açorianos e à sociedade açoriana. Foi minha preocupação, neste livro, explicar a origem do termo e provar que começou como um sentimento pessoal, que só depois se começou a utilizar para outros fins. Não há nada como ler o que está escrito no livro: “Um dia, se me puder fechas nas minhas quatro paredes da Terceira, sem obrigações para com o mundo e com a vida civil já cumprida, tentarei um ensaio sobre a minha açorianidade subjacen­te, que o desterro afina e exacerba”. A primeira vez que ele utiliza a palavra é, portanto, referin­do-se a um ensaio sobre a sua açorianidade, a sua experiência de alma açoriana e as suas saudades da terra, que o desterro – o viver no continente – afina e exacerba. Aos 31 anos, saudoso da sua terra e a viver em Coimbra, Vitorino Nemésio es­creveu um artigo para o que se achava ser o cen­tenário da descoberta dos Açores – as ilhas foram descobertas em 1427, mas durante muito tempo pensou-se que tinha sido em 1432. Em 1932 pe­diram ao Nemésio, então, um texto comemorati­vo e ele escreveu o célebre texto onde diz que a geografia vale tanto como a história e onde usa, pela primeira vez, a palavra açorianidade, refe­rindo-se à sua relação com a ilha. Apalavra te­ve uma grande fortuna; é um termo feliz que Vi­torino Nemésio inventou a partir da “Hispanida­de” de Unamuno. Dá para os Açores, mas para a Madeira, por exemplo, não dá, e isso funciona a nosso favor. Apalavra foi ficando conhecida, foi-se alargando ao domínio etnográfico, ao domínio antropológico e ao domínio político. Tão vaga se tornou que, hoje em dia, escrever sobre qualquer coisa que diga respeito aos Açores é tratado como açorianidade. A verdade é que não é bem a mes­ma coisa, porque a açorianidade é a experiência de ser-se açoriano e de se sentir ligado, impreg­nado com as saudades dos Açores. Penso que se deveria ter feito, e foi isso que tentei fazer com este livro, a história do termo, para salvaguardar de usos excessivos e vagos, porque esvaziam o conteúdo da palavra e banalizam-na.
    Se se usar muito o termo açorianidade, a propósito de tu­do e de nada, o termo perde impacto. Deve ter um sentido vais reservado, resguardado, para ter mais força.
    Já se verifica, então, essa perda de importância do termo?
    Penso que sim. Usa-se tanto a palavra açoriani­dade, para tudo e para nada, que perde o caris­ma que tinha na linguagem de Nemésio. Quan­do se fala em “defesa da açorianidade”, confun­dindo a açorianidade com autonomia, empobre­ce-se o conceito. O conceito foi pensado, como dizia, relacionado com a “Hispanidade” de Una­muno – que diz respeito à alma espanhola, às ca­racterísticas da identidade peninsular -, e, por isso, a açorianidade é a condição de ser insular e aquilo que isso faz no nosso mundo interior. É mais mundo interior do que a descrição das coi­sas exteriores, embora também seja possível. Se se falar na defesa da açorianidade enquanto de­fesa da condição do ser insular, defesa do nosso património e experiência enquanto povos isola­dos. A autonomia é uma consequência da iden­tidade, ou seja, a identidade serve de sustentá­culo da autonomia.
    A geografia e a história influenciam, em todos os povos, o ser, isto é, a alma de quem habita os lu­gares. Consideraria, ainda assim, que o caso dos Açores é um caso específico?
    O caso dos Açores é um caso relativamente es­pecífico. Em toda a parte a geografia interessa, de facto: se um individuo vive no nordeste do Brasil é influenciado pela “nordestidade” – se é que se pode inventar o termo; se vive na Escan­dinávia é influenciado pela sua condição. Mas o caso dos Açores é mais do que, por exemplo, a condição do ser alentejano, sendo certo que a al­ma alentejana também é muito característica. O transmontano e o alentejano reivindicam muito uma alma própria, porque também são geogra­fias muito típicas. No entanto, ilhas, mar, iso­lamento e meio do Atlântico são condicionan­tes geográficas mais poderosas. Nos Açores esse sentimento é especificamente mais forte. Lem­bro-me, a propósito, daquela frase de Nemésio de que gosto muito: “As ilhas são o efémero e o contingente. Só o mar é eterno e necessário”. É o mar que define a insularidade e não as ilhas. O ver a partir do mar é muito mais importante, porque a geografia das ilhas não decorre tanto da orografia, dos vulcões, mas da situação que elas têm no mar. Este mar não é igual a qual­quer outro; é um mar do Atlântico, está a um terço de distância da Europa, a dois terços das Américas. É um mar especial. E já que se fa­la disso, nos Açores, a geografia tem tanta ou mais importância do que a história – diria, sem querer emendar o Nemésio -, porque a geografia condicionou a distância das viagens, a geogra­fia condicionou o clima. Os Açores são o pon­to mais ocidental da Europa e os europeus não se lembram disso. Não são só os centralistas ou os continentais; a Europa está esquecida e in­grata à situação e ao valor patrimonial histórico dos Açores. O ponto mais Ocidental da Europa é um ilhéu nas Flores, e não o Cabo da Roca, em Lisboa. Pelo facto de serem ilhas, os Açores não deixam de ser Europa.

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  • POGROM DE LISBOA a chacina dos judeus

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    PROGROM DE LISBOA, 19 DE ABRIL DE 1506 – 507 ANOS DE UMA DATA DE CRUEL MASSACRE. ( pequeno excerto de conto em fase de escrita )

    « Vi que em Lisboa se alcançaram/povo baixo e vilãos/contra os novos christãos/mais de quatro mil mataram/dos que ouvera nas mãos/ os deles queimaram/ mininos espedaçaram/ fizeram grandes cruezas/ grandes roubos e vilezas/ em todos quantos acharam. »
    Garcia de Resende ( Crónica de D. João II e Miscelânea)

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    PROGROM DE LISBOA, 19 DE ABRIL DE 1506 - 507 ANOS DE UMA DATA DE CRUEL MASSACRE. ( pequeno excerto de conto em fase de escrita ) « Vi que em Lisboa se alcançaram/povo baixo e vilãos/contra os novos christãos/mais de quatro mil mataram/dos que ouvera nas mãos/ os deles queimaram/ mininos espedaçaram/ fizeram grandes cruezas/ grandes roubos e vilezas/ em todos quantos acharam. » Garcia de Resende ( Crónica de D. João II e Miscelânea) Corria então o ano de 5266 do calendário Hebraico, 1506 do Cristão. Lisboa e outras terras do reino eram assoladas por rudes secas, não chovia desde há muito. O pão escasseava, a água tinha uma cor terrosa e fétida, os animais morriam definhando os seus restos putrefactos a céu aberto; a pestilência atemorizava todo o povo, os poderosos davam-se a ares campestres para evitar os miasmas das cloácas. No ano anterior tinham morrido algumas centenas de pessoas, hirtas, esqueléticas, com uma cor negra na tez. A igreja já tinha encontrado explicações para estes males; atribuindo tudo aos afrontas que se faziam a Deus. Dos causadores se podiam apontar: moirama, negros, marinhagem ímpia de países não tementes e, judeus , eram estes últimos que mais culpados eram de maldades. Na Pascoela desse 19 de Abril de 1506 a Igreja de S. Domingos não tinha lugar para mais povo, os frades dominicanos Frei João Mocho e Frei Bernardo desdobravam-se no adro em proferir exaltações bíblicas, era preciso acontecer um milagre. O interior da igreja dava-se a uma penumbra sufocante, os corpos exalava um suor macilento que cavava lugar entre rosmaninhos esparsos e perfumes de especiarias novas. Os rostos dos crentes descarnavam-se de acreditar na demorada e tardia piedade, como se, também, necessário fosse, ter um fero rictus de impudicícia a reclamar sacrifício. Com o declinar do Sol os vitrais emudeceram de luz e o lugar do Santuário apresentava uma penumbra mais intensa. Um frade acercou-se junto de um destacado Crucifixo que encimava o altar; aproximando um brandão com chama muito viva. Um outro mexeu naquela parecida " Gólgota" amovível e um fugaz e estranho brilho pareceu mostrar-se de cintilâncias. O milagre tinha acontecido: os frades ergueram os braços numa exaltação desmedida, para logo caírem de joelhos num soluçar atordoador e contagiante " Milagre!...Milagre!... as gentes da frente rasgaram as vestes rojando-se ao solo. Um homem ficou esquecido de curvatura: balbuciando para os vizinhos que tudo não passava de uma ilusão criada pelas circunstâncias. Ao ímpio saltaram os frades esquecidos da benevolência cristã. Da multidão alguém grita; " Judeu"!... " Marrano"!... mate-se esse cão raivoso que escarnece das coisas santas. "Matem-se todos para que o nosso Santo Pai não nos dê mais martírios, por cada um que morrer é um dia de peste a menos". As mãos procuram e erguem aquele ser indefeso, rasgam-lhe as vestes, encontram-lhe as carnes como facas que sabem do seu ofício. Jogam-no com ululância predadora, pendência sanguinolenta como pano abatido de ventos. Dentro da própria casa dos confortos do Céu, o sangue jorra, no adro a alma é já um despego, o corpo uma massa informe olvidada de parecenças. Elevam-se os clamores na zona envolvente. O comércio da Betesga cerra panos. Os gritos de " Mata Judeu!..."Mata Judeu"!... ecoam como uma tempestade incontrolável. Frei João e Frei Bernardo caminhavam à frente da multidão incitando e brandindo com graves modos cristãos o lenho bento onde estava esculpida a imagem de Nosso Senhor. Quem desse morte aos judeus teria cem dias de absolvição dos pecados. Os ébrios babavam-se de incorporação de feras, afundando os punhais em tudo o que eram carnes assinaláveis. Os negros saltavam em piruetas dantescas tolhendo a fuga dos desesperados; manipulando piques e lanças. Os mais insensíveis dos criminosos corriam já dos acantonamentos náuticos e ribeirinhos com machados de abordagem que fendiam crânios num dizimar sem resistência. Depois havia as inúmeras riquezas que os judeus eram possuidores, as mulheres lindas que se podiam esturpar, nada poderia pôr limites à turba sob a divisa de Satã. O Rei, longe, corria montaria nos penhascos beirãos, o grosso das tropas estava a campo. Lisboa era o terreiro do Inferno. Duas enormes fogueiras no Rossio e na Ribeira das Naus maculavam de rasgos negros a placidez das sete colinas, alimentando-se de madeiras saqueadas nas casas. Os corpos davam-lhe combustão empilhando-se nas enormes piras, contorcendo-se ainda num último estertor, espalhando um cheiro temeroso e impróprio à vida. Os corpos tremeram, as lágrimas rolaram, o que seria da vida dos indefesos ? Quantos irmãos já teriam sido sacrificados? Ao quarto dia Yeruba aventurou-se a uma cornija que demandava de vista o Rossio. Os fumos tinham cessado. Muitas tropas a cavalo viam-se evoluir em várias direcções. A língua familiar fez-se ouvir na rua à mistura com um pranto que tinha a prática comedida de séculos de sofrimento. Falava-se em milhares de mortos, talvez nunca se soubesse verdadeiramente quantos foram sacrificados em nome de um pretexto aproveitamento clerical, ignobilmente lançado à superstição popular e culpando os judeus de males que a Natureza regia ; ignorância, maldade, crueldade e morte campearam sem detença três dias. A Sinagoga teve ofícios fúnebres permanentes: o " mishwah" a todos que necessitassem não poderia ser cumprido. Berenice vestia toda de branco, os cabelos murmuravam-se soltos como nas sopradas branduras do Vale de Tiropeão; da sua formosura davam as aves conta levando paz nova das colinas até ao Tejo. Uma calmia de pomares rasgava a manhã, um pomba suavizou-se nas suas mãos arrulhando como nas eras do Templo. Olhou o Oriente, as lágrimas caíram-lhe como bálsamo virgem. Um lamento redentor ecoou : Oh! ISRAEL, quantos dos teus filhos morreram por Ti..." José Movilha
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  • SANTA MARIA CONNECTION importância do aeroporto de Santa Maria para a navegação aérea transatlântica

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    Santa Maria Connection – SAPO Vídeos

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    Documentário sobre a importância do aeroporto de Santa Maria para a navegação aérea transatlântica.
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