Views: 0

Gabriela, Henrique and 2 others

You and 3 others
Views: 0
Gabriela, Henrique and 2 others
You and 3 others
Views: 0
Fátima and 1 other
Views: 0
https://blog.lusofonias.net/wp-content/uploads/2024/04/e.38.-ao-daniel-filipe-abril-30-1973.pdf
Views: 0
Urbano, Terry and 3 others
Views: 0
era como sentir um deus dentro de mim e depois aquilo começava a mexer, a mexer, borbotando, saía da pele, trespassando os ossos, raspando o ar ao mesmo tempo que as mãos: como quem corta um pão enquanto permanece imutavelmente estático, sem queixas, sem gemidos nem dores, moldado ao gesto, elástico.
…
era como sentir o tempo parado amanhã e apenas se visse o futuro em tudo, até no nevoeiro que crescendo dentro de nós já era húmido cacimbo, lá fora objetos mudos, quietos como jamais, nem dez segundos tinham passado e já era amanhã, vermelho, gorgolejante (o futuro às vezes pregava destas partidas).
olhos sem brilho desorbitados, vagos, num qualquer espaço que nenhum de nós sabia identificar: como se estivéssemos do lado de lá e quando nos mirássemos, esconder-mos-íamos com pavor.
então, vinha o espelho, as pessoas perguntavam por si próprias e as imagens lá perduravam, as pessoas não.
os rostos abrigavam-se num qualquer buraco à procura da luz que não vem dos buracos, já era dia, as ideias cavalgavam os minutos à desfilada por entre mudos sorrisos tolerantes de loucura. ninguém acreditava na linguagem dos olhos que já eram pó e habitavam um qualquer caixão. no entanto, ali estavam indesmentíveis, lembrando-nos como continuávamos vivos, de pé, naquele templo de morte.
era costume pendurarmo-nos no tempo e os minutos eternos e futuros brincavam connosco, puxando-nos as cordas para nos balançarmos aflitos e temerosos já que não saberíamos viver noutro tempo.
e já tudo era música, vinha dos olhos, penetrava o sexo até os dentes rangerem de prazer. tudo era música incluindo o encarnado das paredes nuas (jamais haviam sido caiadas – como numa acusação) e vinha dos poros de suor, do cabelo empastado como bolas à chuva de verão (que jamais tombará!). sempre a música, na luz, nos sons irrepetidos, mijando na lua, na poesia, na inutilidade de corrermos atrás do que sempre nos fugirá, irremediavelmente parados num vasto campo atulhado de urnas vazias – JAMAIS ALGUÉM EXISTIU LÁ. –
o som alucinado, as pessoas bem bebidas saindo com passos trôpegos, proclamando profissões entre confissões que nunca serão assinadas porque sinceras.
e um cão sem sexo pois nunca foi cão, encosta-se a um poste, fitámos o animal como se ele existisse e nos chamasse e houvesse poste, depois afagávamo-lo com o olhar, dormiríamos descansados com o poste seco, sempre esteve, apenas poste, nada mais.
um gato mia lugubremente a um guarda-noturno, sem rua nem farda, pois nunca foi admitido e continua a viver iludido, enquanto lhe pagam a fome com sorrisos de comiseração, e diariamente se arrasta pelas portas que lá não estão mas deviam, e já há quem lhe atire pedras, as quais não lhe acertando o trespassam, caindo atrás dele como se não o tivessem atingido, o que é mentira, pois as pedras tombam magoadas com restos de sangue coagulado, e o sangue das pedras é vermelho como o das estrelas que não brilham enquanto houver uma chávena de café para estancar o sangue com merda.
já é noite, sempre o foi, mas o sol não acreditou até ver uma ratazana morta de medo e um polícia à paisana num bordel, vestido de luxo como morcego de raça, por entre pedras preciosas de mil enganos fosforecendo na treva.
um mendigo busca um lato de lixo bem conservado e próspero para deitar os seus restos (que civismo! – comentarão e a esses responderei que nada disto existiu). depois, alguém irá, na sua opulência, remexê-los (inventar-lhes-á um nome, talvez banquete, palavra que conhece por ouvir dizer) e continuará de mãos bem estendidas sem que alguém vá e as acaricie (exceto com a saliva do desdém).
a rua vazia como se ninguém a ativesse atravessado desde há séculos, o que também é mentira (outra), pois das pessoas sobraram sombras (ficam sempre para alguém ir e guardá-las) e cabeças de crianças que não nasceram, espetadas no chão para exemplo.
passavam sem as verem, pisavam-nas e elas sem um grito, até que uma tropeçou e todos se calaram, era tarde, já chegara a hora de recolher, não havia tempo de arquivar imagens de agonia. já as gentes voavam mesmo sem quererem, incapazes de saberem como evitar pisar essas flores estranhas que ninguém colheria.
cansadas em casa sem asas nem memória (que esta é uma dor), queriam dormir tranquilas e drogavam-se, pílulas coloridas, cada uma era cabeça de criança em tamanho de alfinete sem ponta nem voz.
o sangue jorrando continuadamente como cascata em sonhos, como alguém quase a afogar-se querendo acordar para não morrer e logo acordando nadavam desesperadamente, não havia já quarto ou sala ou casa e ninguém restava para se lhe narrar o sonho.
era assim naquele tempo até que um génio inventou a fala e todos gritaram como se fora vital, então, outrem gritou a lembrança de que já antes se entendiam por gestos e daí nasceu o silêncio.
depois o hábito, o esquecimento, sem saberem o que existira antes do silêncio, e então já eram sapos de enormes bocas abertas, nem precisavam de nadar para (não) morrerem, pegajosos agarravam-se à paisagem evitando a todo o custo cair nela, dando-lhe cor sem movimento; como tinham o dom genial da voz sempre que respiravam e não sabiam que o faziam, logo morriam de novo (desta vez sufocados).
filmes mudos não havia, eram todos toupeiras à custa de terem os olhos vendados (para não dizerem do que viam), escavavam, sem uma palavra, incitamento, e tudo ruía por toda a parte.
deus não fora ainda inventado – nem era preciso – ninguém pensava e se o faziam, pensavam que não podiam, e acreditavam que não (assim estava determinado para não se contestarem dogmas).
foi nessa altura que a estrela se intitulou um qualquer nome e desatou a rodopiar, percorrendo o espaço em fuga interestelar, deixando para trás um rasto invisível que só tomava forma na imaginação das outras estrelas, as quais vinham de noite passear o cosmos, afastando poeira à sua passagem, desafiando o tempo, essa sucessão de instantes inacabados, infindavelmente continuados e perdidos desde o início, pois tudo foi sempiterno (até o silêncio) por nunca ter existido.
…
esta noção de amanhã é falsa, equívoca, ainda falta inventar o “agora” como quem pede desculpa e não sabe, e já de trás todos gritam dizendo que sim para se suspenderem da sua total ignorância sem terem de admitir e confessar a sua inexistência, e então, de novo, inventam algo chamado “ontem” para se autodesculparem, e logo lhes agradecemos sem sabermos porquê.
não estamos desesperados para nos suicidarmos com palavras, lá no íntimo nem a certeza de termos jamais nascido, tudo vago, sem contornos, sem cor nem forma.
algo sem nome, premeditado (como quando se vê um boneco de barro decapitado), agitava-me pelos milhares longínquos demograficamente mortos no cataclismo nicaraguano.
correndo, desenfreado, retomava consciência do meu corpo, ofegante.
parava perscrutando o brumoso ar que a cidade me reservara: sempre igual, monótona, saturante.
virava costas, enganando-me com um qualquer sorriso de ocasião (dos que chegavam apócrifos e vinham pousar nos meus olhos desencantados) e seguia, buscando na extremidade dos meus sapatos uma solução: a resposta.
caminhava, alheado de mim e da catástrofe, as respostas variavam obcecantes – vãs esperanças em cada passada – à distância exata de mim próprio.
pontapeava uma razão nova, uma ordem nova por entre a terra enlameada (chegaria muito mais tarde).
atitude política – diriam, mais tarde, os carrascos do tribunal das ideias repetidas – mas, foi assim que [em 1972] cheguei à idade de 23 (vinte e três), já o vento da insatisfação varria a casa estranha da experiência por soletrar.
transido chegou dezembro como quem anuncia a lua nova, o natal, porquê negá-lo?
havia luzes, é certo, um pinheiro engalanado como quem quer depor palavras gastas, nunca inventadas (afinal, sempre existiram).
tudo era decalcado, espelhado, até mesmo os sapatos na chaminé-mistério, não fossem os miúdos desconfiar…
nascia revivificado um sorriso arrancado à força, as frases de ocasião e o mais.
no entanto algo destoava – talvez eu – naquele universo de múmias empoadas, até meus pais quereriam sentir-se diferentes mas não conseguiam, apreensivos, por todos os natais arderem tão depressa, impiedosamente.
tudo me irritava, músculos faciais contraídos (seria aquele o sorriso próprio?), acabrunhado pelos bolos, pelos doces tão tradicionaizinhos, tão habituaizinhos, tão sem-senso.
no instante futuro dei comigo do lado de fora, especado de pé à porta, como um estranho, nunca como mendigo pois é aviltante pedir no natal, usufruindo da pseudo-tomada de consciência dos incoerentes habitantes-do-dia-a-dia.
jamais esqueci o horror, a afronta sacrílega de ter saído na mais bela noite do ano, de amor e compreensão universais, blá, blá, blá e blá.
andei à sorte, nem sei já por onde, em que nuas e ventosas calçadas e ruas.
nem um só café aberto aquela hora, era natal e eu só na cidade sem rosto, só com os meus passos vagabundos errando sob catadupas de luz.
nem um carro, apenas aqui e além o alarido quente de casas habitadas.
até os pobres haviam emigrado.
desci até à baixa, lá onde as pessoas e as gentes se acotovelam pejando ruas e passeios durante o dia, e nem um guarda-noturno (será que os ladrões não comemoram o natal?), nem um lixeiro, nem um bêbedo, ninguém da fauna costumeira.
num solitário banco de madeira deixei que o tempo voasse sobre nós com aquela carícia quente de quem já não mede.
indiferente ao frio pensei, deitei contas à vida, senti-me infinitamente minúsculo ali no centro da minha curiosidade, da minha sinceridade ofendida.
ergui-me (muitas estrelas haviam já aparecido e passado sobre mim, alheadas da data-estátua-de-todos-os-calendários), voltei a casa, mãos vazias e vagas, todo eu me desvanecia na conclusão a que chegara.
em casa, as pessoas endomingadas, caras alegres, cor de tição (ou seria carmim?), o bom fogo, a alimentação farta, as conversas amenas e despreocupadas de natal (que tal achas o meu vestido para a “passagem”? as notas do …inho foram muito boas e as tuas …inha?), por vezes a puxarem ao sentimento (quem sabe onde estaremos nós daqui a um ano?), para resvalarem até à queixa familiar e improfícua da enorme subida do custo de vida, etc.,.
então, não sei bem porquê fiz-lhes sentir que já nascera e estava ali acordado, discuti com raiva, berrei (talvez tenha também falado), gesticulei enquanto me deixaram, agitei as pseudotranquilas consciências, adormecidas pelo calor de rebanho que ali eram; gritei tudo o que era verdade e haviam calado, afirmei direitos, incongruências, apelei para a falta de senso de semelhante reunião onde tudo cheirava a mofo (até as ideias), falso e malsão, derrubei as fachadas, as palavrinhas doces (próprias das sobremesas).
vi os rostos animados e alegres transfigurarem-se, afogueados, incomodados – quase até à congestão – ai, cambaleei no ardor excessivo da nova luta e calaram-me, isto é, calei-me, esgrimira sozinho até me sentir acossado e ninguém me perdoaria por ter despertado o que se esforçavam por manter em permanente letargo.
jamais esqueci esse natal, o primeiro, talvez único, em que senti a plenitude do seu significado.
era como ver presépios nus, árvores tão-só árvores, homens sem roupagens de fingimento, sem esses falsos trejeitos de fraternidade, sem caridade instituída por calendário, derrotados, amarfanhados como se fossem homens – nada mais.
vi-os a todos vencidos, como maus atores, péssimos amadores sem terem ensaiado a peça que só é levada à cena uma vez ao ano, e, conscientes da exigência do público sempre predisposto a deles exigir tudo.
foi um dia, talvez igual, mas um natal diferente sem esoterismos, mas mais sentido na sua milimétrica dimensão.
nesse longínquo ano não nasceu o menino-jesus para eterno descanso do homem, nem houve um pai-natal descendo da chaminé, foi um dia (de natal) como todos, triste…morrera apenas uma decrépita tradição, ultrapassada pela rotina de cada dia, com a beleza gasta dos astros que não brilham porque incansavelmente lutam pelo direito à vida.
para além do espanto amordaçado às bocas estarrecidas, para além da incompreensão, as crianças ficaram marcadas, perdida que foi a ingenuidade, não pularam, nem tampouco gritaram de alegria.
as prendas pareceram muito mais modestas (aliás, pareceram ter o seu valor real e exato), as caras, outrora gaiatas, moldaram-se fúnebres, enquanto as cabeças abanavam lentamente (último refúgio), para não aceitarem o pesadelo, um estranho (já não eu) rompera as tréguas do natal, algo se perdera para sempre, talvez a quase-sensação de paz eterna e imorredoira.
hoje, já quando a voz se me entaramela um pouco ao peso dos anos (consumidos numa voragem acelerada) escuto um quase-vazio dentro de mim, como um tremendo “punch” por ter perdido o meu natal.
lá fora, a vozearia, a alegre música da exaltação infantil, movimento desenfreado perpetua-se a data-acontecimento, as ruas regurgitam, há crianças impacientes e ainda ingénuas (até quando?) que anseiam pela hora sagrada de descobrir a chaminé como fonte de mistérios dum só momento.
algures, longe no tempo ou no espaço, outras combatem uma qualquer guerra sem idades, ou choram à chuva, ao frio, ao medo e ao vento seco da fome, na ignorância dessa palavra quente e mágica: natal.
tiritam, unhas fincadas na pele que escorre dos dedos, ossos sorvendo o calor das pedras e dos remendos multitudinários.
hoje para elas é dia de jejum (mais um!) porque ignoram que não é Páscoa.
só amanhã ou mesmo já logo pela madrugada haverá restos nos latos de lixo (para elas é sempre amanhã, é amanhã a resposta única que a esperança tem para calar o hoje).
também hoje morrerá gente, para sempre, aqui ou na Nicarágua, em guerras, calamidades, acidentes ou incidentes, do mesmo modo que naquele já longínquo ano morreu a tradição.
por tudo isto, estou mais só, triste e apagado: a partir de hoje já não tenho natal
Views: 0
stórias da minha terra. jun. 12, 1972
endormido corpo de pisar pedras
notívago leito
proibidos sonhos
sensacionalista da miséria alheia
o repórter bateu a chapa
primeira página de amanhã
cidadão-sem-rosto
identificado
o corpo de madrugar
pagará taxa de turismo
(a cidade
ruas e jardins
são do povo
não os usurpem!).
oito anos descalços
duas estrelas cavas
na puída esquina
policromático recorte
remendos de olhar severo
faces nuas e suplicantes
“dois pensos uma c’roa”
(aqui começa
hoje
a ficção infinda do orgulho
em destino de pobre)
“quem compra?”
soletra sem futuro adolescente
nas novas avenidas da mentira
fachada de estômago às moscas
pregando revoltas de dores postergadas
ilusórios ecos de recusa
silêncio-da-fome-sem-dias
perdida pressa de passos
nem mãos nem afagos
murchas violetas
cestos de eterna-espera
(decidida
incisivamente
estrangulemos esta voz
pobreza incómoda nos desperta
compremos um sonho
já sequestrado
na-fome-da-ilusão-sem-dias).
criança sem escola
também a ti
interditaram a imagem e o invento
não vendas
parcas esmolas em retrato-de-esquina
apregoa tão-só
pensos de curar todas as misérias
árdua aprendizagem do dia a dia
inditosa saciedade do ócio
(nenhum óbolo
paternalista
caritativo
sofreará o vício de séculos espoliados).
famílias há
aos gritos
morrendo onde calha
qualquer sol
qualquer ocaso
sugadas dia a dia
gratuitamente
promíscuas enxergas
moribundas
subvivas
sem heroicas gestas
prostradas
resignantes
(surdas rebeldias
assanham-se homens
assacam-se cães
CUIDADO! silenciam a voz do povo
com místicas perigrinanças)
dileta terra
aqui o clima
a natural beleza
turísticos pósters da indigência
mascarem-se de pedintes os indígenas
todos
decorem-se cidades
ruas
vilas
praias
esplanadas-do-torpor-repetido
depois
cobrem-se as esmolas
todas
(milhares de fardas por pagar
dezenas de conselheiros a engordar).
saudade
palavra rara
sonorífero da vontade
sempre adiada
repartida
palavra antiga
dor nova
(re)fundida
desolados
extensos feudos e baldios
para turista vir-ver-voltar
e já partiam novos e velhos
colonizadores da ambição desvairada
eterna
embaladora
esventravam povos
lendárias famas
viúvas de vivos
vozes de fábula
(no reino-do-clima-do-perpétuo-sol
nunca espantou saber
única
a saudade
de todas as cruzadas).
opiados nasciam
analfabetos
ministros havia
tecnólogos da (des)informação
instituíam concursos
festivais
eleições de misses
para as massas
folclores de aluguer
touradas
fados
mulheres
no reino-sem-esperança
o povo
anestesiado e grato
bebia
o suor
calado
bailava o vinho
chorava fadas de folhetim
batia palmas
ao sagrado retrato
insensíveis olhos
via inaugurações
escolas
fontanários e pontões
via casacas
ministros
presidentes
banquetes
jantares
comemorações
esqueletos de domingo
marginais habitantes do trabalho
sem futebol
longa espera
plácida contemplação
perdidos oceanos
da morte mais lenta
sonâmbulos visionários do sacro império
perene destino de colonizadores
bronzeados pelo sol
(pouco e tímido porque grátis)
rastejavam
esmoleres de fim de semana
milionários-da-ilusão-repercutida
heróis-de-todo-o-ano
à conquista de um só mês
(onde o dinheiro para comprar um verão decente?)
que restava senão endormir o desejo insatisfeito?
convictos sebastianistas
do nevoeiro
povo
de discursos ouvidor
de impostos pagador
gente
cantada
decantada
desencantada
escrava-do-sempiterno-senhorio-da-tradição
por que arrastas imagens de liberdade?
promessas que não saberias usar.
vou ficar atento
anfitrião
alguém pode espertar
sou urgente para o adeus
(espanto desfraldado
ingénuo bandeirante
quem me acredita?)
alguém pode morrer
defraudado
longe
antes do tempo?
NO INSTANTE EXATO EM QUE FALAR!)
Views: 0
1.
por vezes vemos faces curiosas, rugas e cãs a assomarem às janelas, enquanto dentro do elétrico nº 214 vamos percorrendo as ruas e imaginado com fértil imaginação esse catálogo de pessoas idosas, sem filhos, viúvas (a grande maioria pela forma como vestem), fechadas num mundo a que chamam casa, limitando-se a esperar com paciência o dia em que deixarão de ser.
até lá matar-se-ão aos poucos com o sopro de vida que ainda respiram enquanto se amedrontam com o que se passa cá fora. outras haverá solteiras, há muito habituadas a partilharem a solidão com inofensivos animais domésticos, vítimas de carinho e amor excessivos não extensivos a outro ser humano. sempre que passo por essas personagens velhas de olhar triste e vago, começo a imaginar quantas histórias não teriam ali para me contar, histórias de amor, de famílias felizes que nunca chegaram a ser, mas contento-me – como membro da sociedade protetora dos animais – que nunca tenham sido.
enquanto pachorrentamente o elétrico vai percorrendo esta cidade velha, olho os jardins plenos de viço e calmamente passeio pelas sombras sob as quais se abrigam jovens enamorados, amantes com medo que o mundo acabe já, para quem mais ninguém conta num egoísmo de corpos que se encontram.
mais adiante, à soleira de uma porta (prédio escurecido pela idade e pelas rendas fixas) numa irreverência profunda de bocas duas bocas unem-se num beijo prolongado enquanto as mãos – distraídas – buscam um pretenso porto de abrigo.
lá fora passam carregadores numa qualquer estiva, gente e mais de trabalho árduo, que param e comentam, afastando-se lentamente com anseios de escândalo bailando nos olhos lúbricos. para os que insistem em ficar especados às portas há sempre uma ou outra careta grotesca do par. mais adiante nessa mesma rua há uma construção, cinzenta, pouco acolhedora onde se asilam sonhos desfeitos de pessoas cujo fim chegou antes da data marcada, muito antes, muito antes da morte.
nesse albergue de fome e frio as almas que esperam morrem lentamente de miséria, sem coragem para enfrentarem a esmola e a incerteza do dia-a-dia. para eles e elas a esperança é vã e a assistência social à terceira idade é um mito sob o qual nem abrigar-se podem.
3.
foi neste albergue que muitos anos passados, reconheci o par do portal com as mãos enrugadas, a pele mal segurando o peso dos ainda magros ossos, olhos ainda não-apagados sobre bocas murchas, e as caretas que neles notei já não eram de escárnio nem de sofrimento, mas de um longo e resignado amor na pobreza.
por vê-los assim e por ainda acreditar no amor decidi não mais andar neste elétrico.
Views: 0