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  • o fim do mundo (2012)

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    DO FIM DO MUNDO de 2012, DEZ.º 21, 2012, CRÓNICA 123

    Não são 10.43. Escrevo do “bunker” sob o torreão do castelo. Pelo periscópio vejo o céu cinza escuro, vento forte e chuva impiedosa. Não consigo ver o alinhamento dos planetas nem explosões solares. Temo que as previsões do fim do mundo sejam como as do ministro das Finanças.

    Ao almoço vou sair, que nem tomei o mata-bicho e preciso de um banho quente pois os “mestres” do bunker esqueceram-se de ligar a água ao poço artesiano no quintal. Do tubo lávico Fogo-Congro se exalam cheiros diabólicos, a natureza profunda!

    Na R P da China prenderam as pessoas da seita que anunciou o fim do mundo.

    Na Lomba da Maia não houve manifestações, mas preparativos do natal, que costuma vir a horas todos os anos.

    O Presidente do Governo Regional não foi à RTP apelar à calma. Só às 17 horas temos notícias locais. Mais espertos, os deputados do parlamento regional, em vez de fingirem que resolvem problemas, foram de férias com a família, juntinhos no fim do mundo.

    A Casa-Real não deu conta que D. Pedro foi o vencedor das guerras liberais e teme que o fim do mundo seja o regresso de D. Sebastião, o que prejudica os interesses do pretendente ao trono que não existe, e para o qual não tem direitos como descendente do vencido D. Miguel.

    Os invejosos do “El País” noticiam que o país está à venda. É mentira, pois já se vendeu tudo a retalho e o que sobra mal dá para pagar o café e um maço de tabaco.

    A programação não está a ser cumprida, deve ter sido organizada por portugueses, que nunca estão a horas nem cumprem horários. Não entendo os Maias a dizerem há centenas de anos que isto ia acabar, e logo hoje que até está sol. Os únicos Maias que conheci eram os do Eça de Queirós (gente fina que não se metia nisto) e uma colega na Faculdade mas essa não era da família. Diziam as más línguas, que o Governo adiara a venda da TAP para os ministros voarem para longe. Era boato sem fundamento, não havia classe executiva suficiente. Nem todos garantiram “tachos” para abandonar a ação misericordiosa, mal compreendida e mal paga que é estar no Governo, e bem mais espinhosa que governar!

    Também não é verdade que se esteja a tentar acabar com o SNS. O que parece ser verdade é que uns empresários, finos para o negócio, descobriram que se abrirem hospitais privados podem colher lucros do SNS, nas incontáveis listas de espera, no demorado atendimento e na marcação de consultas daqui a 12 meses.

    Igualmente falsa é a asserção de que o Governo pretende privatizar o ensino público. Os privados são coutada de privilegiados que nada acrescentam ao saber nacional, a acreditar nas licenciaturas do Sócrates, Relvas e outros que nunca tiveram tempo de estudar para doutor devido aos afazeres político-partidários.

    Na justiça, temos um dos sistemas mais bem preparados em todo o mundo, o país que mais leis fabrica, com a flexibilidade necessária para interpretar de forma diametralmente oposta.

    A justiça, a investigação criminal e a preparação dos processos, têm um longo prazo a fim de se apurarem as responsabilidades de todos, e as “fugas ao segredo de justiça” são uma forma elaborada de se descobrir os verdadeiros criminosos.

    As inúmeras formas de apelação, os prazos legais que expiram sem acusação, as datas que prescrevem como se fossem prazos de validade de produtos alimentares, as limitações ao tempo de detenção e prisão preventiva permitem a todos os que foram injustamente acusados como o major Valentim, o Isaltino Morais e outros, se defenderem de cabalas monstruosas montadas por aqueles que os não conseguem vencer de forma limpa em eleições livres!

    Mas este fim do mundo pode ser a salvação da banca e dos problemas de liquidez depois de lavarem os capitais em ativos tóxicos, mas tudo se cura.

    Se a crise continuar, somente dois bancos ficarão operacionais: o Banco de Sangue e o Banco de Esperma! Mais tarde serão fundidos no “The Bloody Fucking Bank” e é com eles que contamos para a retoma financeira e o aumento das taxas de natalidade.

  • tudo igual como em 2012

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    O ÚLTIMO VERÃO – 24 JUL. 2012, CRÓNICA 119

    A Islândia ensinou que é preferível deixar os credores perder investimentos especulativos a reduzir pensões, benefícios sociais e caos na sociedade. Em vez de salvar bancos, deixou-os falir de forma controlada, salvando a economia. Não creio que surjam líderes capazes de se oporem à oligarquia do lucro na América, com agendas secretas de aniquilar a Europa e salvaguardar o dólar. Os EUA mais falidos que a Europa, a dívida nas mãos dos chineses.

    A Europa, envelhecida arrisca ficar deserta de europeus. A ministra dos direitos da mulher em Marrocos (23 jul. 2012) disse que “não há motivo para se preocuparem com as violações das mulheres e o casamento abaixo da idade por que isso não são problemas da sociedade marroquina.” Nem nos apoquentemos por estarem na Idade Média, ao apedrejarem uma mulher até à morte no Afeganistão, por adultério, que se veio provar não existir. Devemos calar e respeitar.

    Almeida Garrett em “Viagens na Minha Terra” perguntava aos economistas se “calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico, cada um custa centos de infelizes, de miseráveis.” Claro que não, nem sabem da sua existência, algarismos desgarrados, sem família nem existência, casas decimais nas folhas de cálculo de lucro. Aqui ao lado, sem sabermos, nem vermos, nem ouvirmos, famílias que eram pilares da comunidade morrem asfixiadas na miséria, pobreza e humilhação…A terceira guerra (sem tiros nem tanques nem aviões) é mais impiedosa que a depressão de 1929, mas nem por isso menos mortífera. E o povo, licenciado com canudo, tratamento por doutor, assiste refugiado numa telenovela. As elites não lideram, nem os militares. A revolução está fora de questão. Nem acreditem em referendos que funcionam bem no papel, mas na prática não. Se tiverem idade respeitável, emigrar está fora de questão e alternativas são poucas…

  • 2011 ode a s miguel (memórias )

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    ODE A S. MIGUEL 15 SET.º 2011, CRÓNICA 108
    14.10.1. NOS MOINHOS DE PORTO FORMOSO

    Levantei-me cedo, como é usual, fui levar a minha mulher à escola, para as infindáveis reuniões de começo de ano. O filhote foi ver o horário do Liceu onde vai frequentar o 10º ano.

    Existe um recanto na costa norte, onde encontro a minha versão do Éden, a praia quase deserta, dez pessoas, na maioria turistas. A esplanada toda para mim, para a “italiana” (“Ristretto” na Austrália e EUA) e água sem gás, gelada, companheiras fiéis das leituras. Uso tanta água gelada como oxigénio. A escolha de leitura recaiu em Martins Garcia, prolífico autor, liberto de penar no mundo. Apesar de notável, a obra hoje serve para deleite dos curiosos e estudiosos, no qual me incluo, malgrado os esforços do Urbano Bettencourt para maior divulgação.

    O dia radioso como foi apanágio neste verão. A terra lançada como grão de poeira, é um mero escolho no Grande Oceano, a colorir o mar em tons de verde, a cor da ilha. Neste matrimónio desigual, a terra é finita, mais nova e apelativa, saída das entranhas do fogo, em eflúvios de magma, a mágica lava que encanta e seduz, à distância segura de um qualquer abrigo. O mar, condescendeu a envolver a ilha num manto de espuma, a burilar as abruptas escarpas, numas baías acedeu a depositar areia fina e enegrecida, sem jamais deixar de as banhar, pondo e tirando a seu bel-prazer. Para resguardar o brinquedo não dotou a ilha de angras, dificultando o acesso a corsários, obstando a que a perturbassem com seus botes. Nem sempre com sucesso, que a arte da pirataria tinha meios de violar as ilhas que se querem sem invasores. Repeliram investidas de fenícios, berberes, corsários, franceses, ingleses e outros, remetidos à proveniência depois de raziarem as terras, tomarem cativos para escravos e usando as mulheres para fins soezes como era hábito. Os que ficaram, tementes a deus, escravos dos elementos, volveram a cultivar a terra, arando os solos úberes, que a fúria dos fogos e tremores das entranhas ia vomitando, tentando aplacar a fúria e o castigo divino com preces, procissões e romarias.

    Na ilha micaelense, olham para o umbigo, seja de vacas leiteiras que poluem montes, lagoas e ribeiras, sejam campos de milho, batata, beterraba, inhame, que as generosas chuvas insistem em regar de forma copiosa, até conseguirem mais do que uma colheita.

    Não se pode confiar no mar que os invernos agrestes trazem ventos e marés de virar barcos, como em março 2011 o “Ana da Quinta”, de Âncora que desapareceu sem rasto, a 150 milhas das Flores. Não houve contacto e nunca apareceu.

    Enquanto noutras ilhas as pessoas vivem do mar e para o mar, nesta, de costas para ele, ignoram-no, esquecem o único passaporte de saída para a alforria do feudalismo que impera e as agrilhoa. Na baía dos Moinhos sem baleias, golfinhos ou tubarões, as ondas cumprem o ritual lunar. Parado, a vê-las deixo-me encantar com a cadência incerta que as leva para onde só o pensamento conta e a vontade dos homens não domina. Hoje, nem náufrago nem perdido, mero marinhante, embalado pelos ventos, à deriva. Gostava de perpetuar momentos destes e torná-los permanentes, libertar-me da escravatura que nos impõem como preço de viver.

    Neste paraíso que o inverno torna inclemente, as palavras fluem e vêm desaguar numa qualquer folha de papel. A mente liberta-se das peias do quotidiano e voga, como se viver fosse útil ou necessário. Por vezes, preciso sair das ameias do “castelo” e libertar-me da prisão sem grades que as ilhas tendem a ser. Podemos ser livres. Não precisamos de voar como os pássaros, nem nadar como os peixes, basta mar e sol, e a mente a vaguear no salgado eflúvio. A ilha é linda, mas, digo-vos, do outro lado só há mar.

    Ouço as ondas aqui

    onde o mar é rei

    e senhor de todas as horas.

    fui ao lado outro da ilha

    lá onde nunca ninguém vai

    e vi que era verdade

    só há mar, nada mais

    por todos os lados menos por um

     

  • nada mudou desde 2010,,,

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    ESTAMOS TODOS CONDENADOS – JUN. 2010 CRÓNICA 83

     

    Enquanto os políticos na tribuna falam, a grei protesta à mesa do café e copia-os, não fazendo nada. Um círculo vicioso perfeito, entrecortado pela famosa trilogia portuguesa de fátima, futebol e fado. Já ninguém promete dias melhores, apenas mais do mesmo ou pior ainda. Mais sacrifícios em troca de nada. Ninguém anuncia luzes ao fundo do túnel, neste feudalismo republicano, de reformas vitalícias para ministros, deputados, assessores, privilégios para a minoria que come da gamela governamental e se alcandora ao poder com benefícios financeiros.

    Há que entender que o país (com estes políticos, PS, PSD ou outro) não vai a lado nenhum, enquanto não acabar o sistema de cunhas e compadrios, pior do que no tempo do Salazar. Tem de se pôr cobro à impunidade na justiça, parar a corrupção rampante; deixar de aviltar a educação e os professores; acabar com cortes na saúde e a sociedade sem princípios nem exemplos (aqueles com que fui educado). Terminar com o chico-espertismo, a ignorância, o quero, posso e mando. Caso contrário, quer o povo deixe ou não, o governo fará o que entender em proveito próprio e detrimento nacional.

    Estamos condenados à insignificância, mas é imperativo que nos sintamos bem dentro da nossa pele, sem nos calarmos quando vemos coisas erradas. Não adianta reduzir a realidade ao desgosto pela governação. Não faz bem a ninguém.

    Temos de acreditar que nós, a gota (mais minúscula que uma lágrima furtiva) podemos fazer a diferença, no nosso restrito círculo, sabendo que é insuficiente para alterar o desvio da rotação da Terra, a perda do escudo magnético ou impedir as profecias de Nostradamus e dos 3 pastorinhos. Dizem que era assim na monarquia, na 1ª república, na ditadura e na 2ª república.

    O mote é: o último a sair que apague a luz. Nem tenho esperança nem solução no mundo neoliberal globalizante, em que o lucro e o dinheiro tudo comandam na nova versão dos senhores feudais (ora bancos e correligionários). O mundo ocidental atravessa uma crise semelhante à de antigos impérios, doente sem líderes corajosos e sábios. A incapacidade de mudar, aliada à repetição dos erros, são constantes de gente pouco culta, gananciosa e interesseira. Até imperadores como Júlio César mostravam mais compaixão do que os líderes atuais da Europa.

    Em África, do Saara ao Corno, há guerras, umas maiores, outras mais pequenas, sempre prontas, fruto da sofreguidão mercantilista de vendedores de armas e de regimes corruptos.

    O continente europeu empobrece e no meio da injustiça social e miséria humana qualquer fundamentalismo prospera. A Europa continuará a impedir imigrantes africanos (muçulmanos ou não) sem expulsar os ilegais dentro de muralhas. A nova geração no poder na Europa, geração “rasca” de conhecimentos parcos, muita prosápia e pouco conteúdo intelectual, além de corrupção a rodos. Nenhum para além do medíocre. Os que vierem a seguir serão piores.

    O mal da História sempre foi não a conhecermos nem reconhecer erros passados para evitá-los. A crise veio trazer a lume que os governos estavam interessados em salvar os bancos da bancarrota e não em devolver às pessoas o dinheiro. Estranha e perversa lógica. Uma lição a aprender (guarde $$$ no colchão ou no sobrado).

    O certo é que os líderes (pela incompetência e incapacidade de decidirem por justiça, equidade e democracia) não merecerão nota de rodapé quando a História for escrita. A ditadura neoliberal capitalista subjuga de forma tão tenaz como as fascistas e comunistas, os filhos e os netos pagarão a fatura. Nova civilização surgirá depois da ocidental, a menos que um asteroide interrompa a órbita e reduza isto a cacos antes de tempo.

    As receitas que nos impõem são para dar dinheiro aos bancos que nos levaram ao caos, extorquiram poupanças e investimentos. Continuarão a fazer dinheiro fácil, especular e investir mal para receberem prémios milionários quaisquer que sejam os prejuízos. Os filhos vão pagar a fatura, as gerações futuras condenadas à servidão. Tudo hipotecado por projetos que não criam riqueza, mas empregos temporários e bons lucros para construtores civis e outros.

    VOTOS SAZONAIS 2010, 17-31 DEZº 2010, CRÓNICA 88, 89

    Pela expulsão de pecados, curas ao sábado, interpretação dos preceitos de pureza da lei, familiaridade com publicanos e pecadores, Jesus pareceu suspeito de possessão demoníaca. Fariseus, sacerdotes, escribas e adeptos de Herodes, mancomunaram-se para matá-lo. É acusado de blasfémia e falso profetismo, punível com a morte por apedrejamento. Há muitos que apesar de merecerem o castigo continuam à solta, com mordomias que o povo ignorante e manipulável lhes concede em troca do voto quadrienal com que os enganam. WikiLeaks e outros, desmascaram a corrupção que detém as guitas dos dirigentes desportivos em folias mandatadas pela banca e o povo feliz contenta-se com futebol, fado e falácias, em ambiente circense de telenovela em tempo real. Cada um constrói o berço de palha em que se deita e não adianta ficar à espera, porque os Reis Magos já não andam de camelo e o GPS deles não vos localiza. Em volta estão Pilatos e Herodes. Na cruz já não estão o bom e o mau ladrão, ocupados em coisas da governação, sem paciência para fazer companhia ao Cristo. Sorria face à crise, lembre-se dos milhões que estão pior, os que (já) não têm liberdade de escrever o que pensam e sentem, os que (já) não têm água ou comida, ou (já) nem teto, saúde, trabalho, os escravizados, bem pior.

  • um punhado se areia nas mãos diário II de maria joão ruivo

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    Sabendo embora da humildade e da insignificância das minhas palavras, fica aqui o meu testemunho sobre o Diário II – Um Punhado de Areia nas Mãos – da minha Amiga Professora Maria João Ruivo, com uma referência à homenagem prestada nos 70 anos de vida literária do grande poeta e escritor Eduíno de Jesus que muito estimo e respeito. Foram estas as minhas ” Leituras do Atlântico” desta semana:
    Um punhado de areia nas mãos
    Na passada segunda-feira, dia 3 de Outubro, na Biblioteca do velho Liceu, hoje Escola Secundária Antero de Quental, e no âmbito de mais uma edição dos Colóquios da Lusofonia que decorreram em São Miguel, foi prestada uma homenagem ao escritor e poeta Eduíno de Jesus, pelos seus 70 anos de actividade literária, cabendo a Vamberto Freitas a apresentação do homenageado, de quem disse: “Eduíno de Jesus é para a minha geração açoriana uma referência profunda, douradora e consequente. Não menciono neste momento os deuses que o precederam ou ainda viveram muitos anos na sua companhia literária. Por certo que não é o único que cultiva os vários géneros da literatura em língua portuguesa. No seu caso particular algo de absolutamente original acontece. Nos últimos anos tem desesperado alguns dos seus colegas e amigos por não trazer cá para fora em livro os escritos críticos e ensaístas que ele cultivou no início da sua carreira, que começa nos Açores e continua em Lisboa nos mais variados jornais e revistas, especialmente a crítica e ensaísmo ssobre as artes diversas que o comoviam e lhe chamavam a atenção, desde as artes plásticas ao teatro e a escrita em geral”.
    Na mesma sessão coube-me a honra de dar o meu testemunho sobre o livro de Maria João Ruivo, “Um Punhado de Areia nas Mãos”, ao qual dedico esta edição de Leituras do Atlântico:
    Não foi uma apresentação porque isto já tinha sido feito – e bem – pela Professora Leonor Sampaio da Silva, naquele mesmo espaço, no passado dia 8 de Setembro. Quis apenas deixar o meu testemunho pessoal sobre o quanto gostei de mais esta bem sucedida investida de Maria João Ruivo, na escrita diarística. E antes de mais, tenho de confessar que quando a leio, leio sempre mais alguém, ou melhor, tenho sempre mais alguém no meu espírito: Fernando Aires e Eduíno de Jesus que celebramos nas suas 70 primaveras literárias. Fernando Aires, para mim o grande, enorme e inesquecível mestre da literatura diarística nos Açores, a ombrear com o melhor que temos (ou tivemos) no País. E tenho comigo Eduíno de Jesus, o “Patriarca” da Literatura Açoriana. Do alto dos seus 94 Janeiros ele é conto, poema ensaio e teatro. Mas é, acima de tudo, um símbolo ilhéu da universalidade que mora em nós. E Maria João Ruivo é, a par do intimismo dos seus diários, uma alma de poeta que está presente em tudo o que escreve. Aqui, em “Um Punhado de Areia nas Mãos”, a poesia funde-se com a descrição memorial, com a inquietação existencial e com a veia afirmativa do ser e do estar em cada momento diferente de vida. “O mar aqui mesmo ao alcance daminha mão, para regalo do corpo e da alma, com este fundo de rocha tão clara que nem parece basalto… Mais uns palmos e a escuridão abissal da fossa Atlântica”. (7 de Agosto, de 2019).
    Este volume II de “Um punhado de Areia nas Mãos”, edição Letras LAVAdas, que abrange entradas que vão desde 2016 até a este ainda corrente 2022, tal como o primeiro, é “um livro intimista que reúne memórias e reflexões que abrangem um longo período de tempo, embora, como a própria autora diz, com largas intermitências, porque a escrita de nós não é pacífica e, a par com o encantamento da descoberta, traz muitas dúvidas e angústias, por isso a adiamos tantas vezes”.
    Neste Diário de Maria João Ruivo o leitor sente que há uma presença contínua dos acontecimentos, perfeitamente doseada de emoções e sensações próprias, porque (Maria João dixit, 26 Dezembro 2020) “um Diário é o registo inevitável de tudo quanto nos marca, nos comove, nos afecta, nos irrita ou, simplesmente nos suscita uma reflexão”.
    Como com precisão e profundidade escreveu a Professora Rosa Maria Goulart no belíssimo prefácio deste livro, “ a dor e a alegria do mundo pontuam este Diário, porque nas mais comoventes páginas entram registos do que foi acontecendo à sua volta…” E um Diário, como se sabe, é algo de dinâmico e que não se esgota com o tempo.
    Maria João Ruivo com estes dois volumes de “Um Punhado de Areia nas Mãos” não é uma continuadora. Ganhou uma identidade muito própria, um estilo muito peculiar e está a trilhar um caminho muito seu, marcado embora por eternos laços de afecto que vamos sentindo nas suas páginas.
    Individual e colectivo, regional e universal, intimista e social, são dicotomias que me apaixonam na vida e na Literatura. “Este peso de ser ilhéu, apesar de tudo, ainda nos põe sombras nos olhos, de vez em quando. Não como noutro tempo, certamente, em que só se saía de barco e levava dias até que chegássemos ao destino. Todavia este mar em volta não deixa de oprimir, por vezes, sobretudo nos dias cinzentos da mágoa que envolve a Ilha toda”. A sede do universalismo e ao mesmo tempo o universo a caber na “ilha-toda” aqui bem patente nesta entrada de 29 de Junho de 2019…
    Intimista e social também aqui se pode aquilatar pela forma como A mim, porém, há um outro aspecto que me cativa e detém, quando leio Maria João Ruivo. É a forma simples, despida de artifícios literários, como escreve. Um Português cadenciado, ritmado, gramaticalmente perfeito, sem aventureirismos estilísticos, como se a autora quisesse em tudo manter a condição de Professora e Educadora da Língua-Pátria, o que se vai tornando raro em muitos escritores que confundem e misturam irreverência e criatividade, com iconoclastia linguística.
    Ler Maria João Ruivo é somar estas três vertentes que Rosa Maria Goulart especifica no prefácio: “beleza da escrita, solidez das ideias, domínio das convenções do género diarístico”. Melhor resumo seria difícil. E isto faz com que eu me repita, dizendo que ao ler este Um punhado de Areia nas Mãos senti a emoção de reviver Fernando Aires, mas senti mais ainda a sensação de que nele há um pássaro que se liberta do ninho e trilha caminhos próprios em voos para o desconhecido.
    Multifacetadas são as nossas vivências quotidianas, autênticos caleidoscópios de movimento e cor, de tal modo que no filtro do tempo ficam apenas sombras e ecos daquilo a que chamamos vida.
    Felizmente que de “Um Punhado de Areia nas Mãos” conseguimos fazer voar ao vento pedaços de alma e fiapos de amor. Como Maria João Ruivo, de forma tão genuína e bela, aqui consegue. Parabéns!
    Santos Narciso
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    • Raquel André Machado

      Sublime a sua Explanação, sublime o Diário II – Um Punhado de Areia nas Minhas Mãos.
      Os meus

      Parabéns

      !

      Beijinho
  • Manuais digitais afinal podem prejudicar a aprendizagem dos alunos (vídeo)

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    Source: @rtppt

    https://www.rtp.pt/madeira/sociedade/manuais-digitais-afinal-podem-prejudicar-a-aprendizagem-dos-alunos-vdeo-_104513

  • A portuguesa que odiava o catalão – by Marco Neves

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    Hoje conto a história da portuguesa que não gostava do catalão; do barcelonês que não gostava da Catalunha; do padre que tinha inveja de Portugal; e dos portugueses que iam perdendo o autocarro.

    Source: A portuguesa que odiava o catalão – by Marco Neves

  • As crianças escravizadas – Observador

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    Em Portugal, os trabalhadores fazem um horário de 35 a 40 horas semanais. As crianças e os jovens fazem quase 50 horas de trabalho semanal, entre a escola e o estudo autónomo.

    Source: As crianças escravizadas – Observador