POEMA DE GUERRA 1971 MAS ATUAL COMO NUNCA 54 ANOS DEPOIS

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e.30. crónica do quotidiano 3, memórias de guerra. set 24, 1971

 

1.

o general medrou no instante obsceno

imponderável espelho de todas as ambições

rosto ou eco de mim próprio?

espio o calendário esfolhado

horas desertadas num véu sem mistério

em cada janela do tempo

(a cada momento

todo o ato

é desnecessário)

senhor general cuidado com os vidros

monoculares olhos de todas as guerras

dança cadeira menina

regressa a ti própria

onde jamais habitaste

suspenso do fumo

ardente farda

iridescentes fogos

incandescentes celas nos abrigam

pendular impaciência

sôfrego macho

na berma da estrada o duro leito

longa viagem sem retorno

inventam-se vitórias, árduas escaladas

com timbales e campainhas

tímidas carícias proibidas

ei-la que entra

banal gesto alugado ao corpo

já o velho murmura afagos

esponjosas carícias imaginadas

trémulas mãos sujas

de sangue inocente

preço injusto de algumas fomes

soergo a cabeça e pesa-me a rua

desabam mundos na chávena de café

sorvo sensual boca de muitas esperas

adejam aves sem nome

mirradas folhas de oculta metralha

mutilada cor de muitos mapas

esvaziada a memória

de cansaços muitos

adormece agora saciado

generalzinho de merda

não trinques dedos de infindos medos

truncando o campo

espaço de mortos

inumanos gritos de estertor

saíram à rua os fantasmas

e agora?

para quê a pistola senhor general?

deixe-os revisitar o calendário

não regressarão aos ataúdes

soam alarmes em tantas cabeças

denso o tráfego de passos

apressados se cruzam e acotovelam

ninguém os deterá

o quartel vazio

armas ao abandono

todos de si riem

descomposto

repugnantemente nu

pústula de gente

ridículo e só na multidão

insígnias do medo

(o futuro é já amanhã!)

diluo-me pausadamente na bica

negro êxtase de espuma

boiando descontrolado

me afogo

são vagas asa recordações

e me inundam

suspenderam a rotina em volta

interferentes e intrometidos

de louco me apodam

nem um gesto

por mim

pelo vagar deste cansaço antigo

desaguo na praia

longo areal de memórias

exauridas

ofensos se erguem os lábios

no desdém da colher

retemperado (pelo açúcar indissoluto)

pago o preço deste sonho

outro

ignoro o desdém

pobres assalariados da dúvida

profanam ociosos templos

que fomos.

ruidoso relógio nos matraqueia

calcorreamos as folhas deste espaço

inútil livro que não escrevemos

soam clamores, cláxones e freios

alheado prossigo sem ouvir

vociferantes vozes que já esqueci

devo-lhes novas angústias

somos a cidade do passado

estéril abismo que recusámos.

carcomidos degraus da sombra me protegem

solitária melopeia de saudade

no espelho se esvaíram dez minutos

renasceu há apenas três, senhor general

atravessava o corredor imaginário

uma ficção de rua quotidianos esbirros

no nexo do real

saltamos o grande muro

de nós mesmos

2.

nenhumas imagens nos percutem

ruinosas pedras

desocupada janela

nunca existida

desconheço este fantasma que habito

repetem-se passadas antigas

como se fossem primeiras

estranhas forças me dominam

sibilante é este tempo inventado

na brisa

o vento novo na casa da palavra

a ordem cumpriu-se

em nossos caminhos

a longa missão

povoa-se de alegorias

escombrosos dias

muradas deliquescências

escabrosas invadem

o revérbero da imagem

no princípio do beijo

o mundo

desaustinado ato

inaugura a luta

sabíamos ser o cavaleiro andante

solitário

líder da resistência

ei-la

é tua

desfruta deste conluio

enredada batalha inconclusa

não à avidez

soçobrantes corpos

encrespadas mãos

quase unidos no prazer

na posse primeira

(a eternidade é uma falácia, dizem!)

concêntrica viagem ao outro lado

em vão se aguarda

a abruta queda sem regresso

insubmissos

sobrevivos envilecemos

a engendrada equivoca desordem

podres

corruptos

cancros de todos os filhos

existimos nos que creem

e confiam

em vão.

estre -lejante civilização

da bomba letal

cercados por decadentes fomes

soubemos da vida

bebemos a taça

no sétimo céu das indiferenças

emborca o general

vitória pírrica sobre o medo

soldado de muitas guerras

todas absolutas e finais

nunca libertado

do embalo de sonhos inominados

matou

decepou

estropiou

nunca a verdade saberás

general-da-grei-sem-lei

  • o nome da paz desconhece o sangue da liberdade –

Escritor e tradutor João Barrento recebe hoje Prémio Camões 2023

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O escritor e tradutor português João Barrento recebe hoje, em Lisboa, o Prémio Camões 2023, que lhe foi atribuído no ano passado pela sua “obra relevante e singular”, em particular as traduções da literatura alemã.

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