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o país antes do 25 de abril, crónica 1971

crónica 1, maio 15, 1971

1.

Daqui bem longe donde vos escrevo, o tempo vai, como é seu hábito meteorológico, influenciando a disposição das pessoas. É assim que me encontro com a chuva ao dar ao papel mais umas impressões deste país onde os homens vão tendo, cada vez mais, coisas para os preocupar.

Também é de chuva o ambiente intelectual pois as cabeças, cada vez menos, vão servindo para pensar e, creio até, que algumas nunca o fizeram.

Podia até dizer que é de crise a época se não o tivessem sido todas, mesmo as mais brilhantes e prósperas.

Na realidade, os homens andam arredios dos livros e eu compreendo-os: de há uns meses a esta parte, o marasmo, a calma e a inatividade livreiras e livrescas transmutaram-se a ponto de já não as reconhecermos. Sob o pretenso título de qualidade, o mercado tem sido invadido por tremendas doses de livros de bolso de todas e mais algumas editoras, num movimento que desmente toda a estagnação.

A única nota saudável deste ataque, tem sido, até agora, dada pelos preços que se apresentam otimamente reduzidos, e agora os editores nem se queixam de lucros, margens, impostos, etc. Eu sei que quando há fogo em nossa casa lhe deitamos água e só depois vemos que, embora nada esteja queimado, ficou tudo horrivelmente manchado e molhado. Assim os livreiros se empenharam em lançar obras e mais obras com todas as facilidades e agora que começam a fazer contas são eles a precisarem de facilidades.

De política isto não está indo muito melhor ou pior, embora o senhor Presidente do Conselho há dias se mostre apreensivo – e por um hábito que há muito se mantém neste país – quando um presidente está apreensivo, todo o povo o acompanha, mesmo aqueles que normalmente votam contra ele. Se está apreensivo é por que não sabe o que há de fazer a um problema que não é de agora, melhor dizendo, é de sempre.

Pois cá neste ocidental país, quando alguém sai de um ministério, caladinho e sem dizer nada, ei-lo que aparece logo a seguir sentado à mesa da presidência de um conselho de administração de alguma opulenta empresa. Pois então, porque não? Foi ministro, deu o seu contributo à nação, é justo agora que seja a nação a cuidar dele, e para tal, nada melhor que as cómodas cadeiras dum conselho de administração. E por outro prisma, por que haveria ele de voltar a ser quem era dantes? É necessário manter o progresso e evolução. Depois, o povo vê, o povo lê e começa a tecer comentários. Como sabem, um presidente teme sempre os comentários do seu povo, em especial numa democracia como a portuguesa.

3.

Por outro lado, todo o ministro ou ex, tem amigos, tem influências, e afinal como vai ele presidente dizer-lhe: “Olhe o senhor não vá para esse lugar, deixe-o para os que são mais competentes.” E logo o ministro se sentiria reformado, que é a coisa mais aviltada que um ministro pode sentir e é por isso que vai para um conselho de administração.

E, afinal o elevado nível de vida e as receções? Como iriam ser mantidos esses bons e saudáveis hábitos desta república?

É por tudo isto que o presidente do conselho anda apreensivo e aquele sorriso que todos nós lhe conhecíamos anda agora menos aberto, mais mortiço. É que no fundo, ser presidente é uma estopada, isto de ter todos os dias nove milhões e meio de dores de cabeça é um pouco forte!

Falámos de livros e política e falta-nos falar em pessoas, sociedades, festas, enfim em todos esses atributos sociais que de nossos avós herdamos. Também aqui o tempo se tem feito sentir ensopado, pois depois da “molhada” queima das fitas, esta cidade [do Porto] continua mais pacata e trabalhadora que nunca, cada vez mais metida consigo própria. No entanto, pelo que dela conhecemos, é bisbilhoteira, como se fora uma vila de província. Nisso, provavelmente, se tornará, com toda a futilidade que, apesar do trabalho e dos que trabalham, vai caraterizando a sua outra face. É um snobismo pobre e até, um pouco ordinário, como o daquelas velhas que nada tendo nelas de atrativo, se vão empoando todas para passear em Santa Catarina e tomar o chá das 5 na Confeitaria Confiança. À noite, continua parecida com uma cidade fantasma em que os espetros – oh monotonia – são sempre os mesmos nas mesmas esquinas. É sem dúvida agradável ter uns manes e uns vates como os nossos, além do mais, é saudável e já vai indo longa esta crónica, mais enfadonha que todas as outras e mais chuvosa também.

É bom, por outro lado, estar aqui neste isolado país, afastado de tudo e de todos. É despreocupante. É bem próprio de nós, este amolecimento em que vamos consentindo, nesta preguiça de estar longe da Europa. Este torpor que tão bem se dá com aquilo que ainda há em nós, de latinos, apesar das misturas de sangues e raças. E por o sol já se ir alevantando, aqui vos deixo.

j chrystello

O MEU 25 DE ABRIL

 

25 Abril

 

adiante mas desformatado…

Crónica 523. 50 anos de abril em 2024

 

Pensei seriamente se devia escrever isto, antes do mais por estar na fase impossível de sobreviver, com sanidade, após a morte da minha mulher e companheira de 29 anos. Além do mais ela fazia as revisões dos meus textos e opinava sobre o seu conteúdo. Depois, ainda estou incrédulo pela cegueira dos dois principais partidos a catapultarem a extrema-direita nas recentes eleições regionais e nacionais. Por fim, lembrei-me de 3 ou 4 factos marcantes da minha vida que se sobrepõem ainda a tudo isto.

De 1967 a 1972 no TUP (Teatro Universitário do Porto) conheci e trabalhei (entre outros) com o Mário Viegas, Zeca Afonso, Mestre José Rodrigues (da terra da minha mãe, Alfândega da Fé) e comecei a ser politicamente ativo. O Mário leu publicamente um Poema meu de um livrinho em que o lápis azul (da censura) cortou mais de 70 páginas do meu primeiro de poesia (em 1972) Crónica do Quotidiano Inútil, a que se seguiram mais cinco volumes até aos 50 anos de vida literária em 2022.

Em 1973 passei quase seis meses como Aspirante a oficial-miliciano (subalterno do major Ernesto de Melo Antunes) no RAL-4 em Leiria e soube através dele que algo se cozinhava no seio das Forças Armadas…

Sobre isto, extraio do volume 5 de ChrónicAçores:

Longos passeios do Castelo – em frente ao quartel – ao rio Liz a falar e filosofar. Permaneci em Leiria até setº 1973, e dei-me bem com o Melo Antunes (mais tarde bem conhecido do povo português) com o qual tive longas conversas e passeios sobre a situação sociopolítica e económica do país, criando amizade profunda e lido alguns dos estudos da mudança que preparava para o futuro, e iriam ocorrer. Não sabíamos quando… ele dizia que era algo para daí a dois ou três anos (no pior cenário, cinco).

Falava-se de vida, de filosofia, de aspirações e sonhos. Felizmente vivi o suficiente para ver a maior parte desses sonhos concretizados antes do novo milénio.

Rezam as crónicas que sou moderadamente otimista há décadas, baseado no princípio de que as coisas podem sempre ser piores, mas também podem melhorar, e, normalmente, a vida convalesce connosco. Acredito piamente que a sorte se constrói com muito trabalho e esforço e creio que o destino não está previamente traçado. Porventura, estará delineado para a carneirada que não pensa nem se dá ao trabalho de agir. Para os restantes, bípedes pensantes, o destino é feito de altos e baixos que vamos construindo e destruindo ao longo das decisões que tomamos. Dito isto, nunca me arrependi de nenhuma, mesmo as que provaram serem um fracasso total, pois na data em que as tomei decerto me pareceram as melhores.

Posteriormente, tal como sempre tentei fazer, exerci o direito de autocrítica e autoavaliação psicológica das minhas ações e – quando o soube ou quando o pude – fiz as correções que entendi necessárias.

Nos meus anos mais jovens, entre os 17 e 23 (1967 a 1973), desde que entrei na Faculdade e comecei a ter um interesse ativo e prático na coisa pública e política a vida deixou de ter duas tonalidades (o branco e preto) e adquiriu centenas de tonalidades de cinzento.

Nessa época qualquer jovem vivia com dois dilemas (caso fosse um ser pensante e havia alguns naqueles tempos). Um, era a espada de Dâmocles da malfadada tropa (o exército colonial português que decepava vidas e esperanças dos jovens ao enviá-los para a guerra colonial que ninguém queria nem entendia), a outra era o facto de não pertencermos à Europa, nem ao mundo, na política do “orgulhosamente sós” a que a ditadura salazarenta se agarrava. Mas havia esperança, a guerra colonial acabaria, tal como a do Vietname e a democracia haveria de chegar, como chegou à Europa após a segunda grande guerra.

Mas jamais esquecerei o que era viver sem liberdade. Antes do 25 de abril (em Portugal) havia ma coisa chamada lápis azul, ou censura, que e cortou 70 páginas a um livrinho de poemas adolescentes que publiquei com cerca de trinta páginas e isso jamais esqueço ou perdoo… O resto é história, o 25 de abril trouxe a liberdade de pensamento e de expressão e muita água correu sob as pontes mas, hoje, sou confrontado por uma sociedade mais desigual do que nunca, de falsa fluência consumista.

No que conseguíamos ler e ouvir queríamos a liberdade do Woodstock americano com música das rádios pirata britânicas, das manifs de estudantes de Paris em 68-69 (e posteriores), em vez de viver sob “brandos costumes, no jardim à beira-mar plantado” que me obrigaram a uma multa de 2$50 (dois escudos e cinquenta avos = 0,0125€) por andar descalço no acesso à praia …ou outra (creio que 250$00=1,25€) por não ter licença de porte de “arma” (neste caso, um isqueiro). Alguns colegas eram “bufos” (não só da PIDE) e ao denunciarem o meu uso de isqueiro sem licença ganhavam 50% da receita…

Hoje no outono (ou inverno) da vida, ainda tenho saudades de Timor, da Austrália, de Bragança. Do meu amor súbito (após 2005) e suicida pelo Faial, Pico e outras ilhas açorianas. Tão pronto, a realidade me confronta com a certeza de estar aqui preso e amarrado para sempre, por vontade própria. Dificilmente sairei deste buraco, bem verde e bonito é verdade. É bonito. E que mais? É bonito, mas tão deserto como o Saara.

Falta-me gente com quem dialogar a nível intelectual, falta-me um Melo Antunes com quem trocar sonhos e imagens do futuro melhor para o país. Falta-me uma tertúlia, um Cenáculo onde possa falar e ouvir, trocar sonhos e discutir opções de vida (nem mesmo os nossos Colóquios da Lusofonia são talhados para tal). Em tempos chegamos a ter um pequeno grupo que se juntava nos Moinhos de Porto Formoso que imitava tais tertúlias, depois morreu o Daniel de Sá, o Manuel Sá Couto e desapareceram uns tantos…

O meu idealismo poético irá morrer comigo. Sozinho, silente. Estes mutismos enormes, solilóquios, que ora partilho comigo mesmo, estão a tornar-me cada vez mais árido. A sensatez reitera que os silêncios não são de hoje. Vão sempre desaguar nas feridas por sarar. Cicatrizes por curar. Estigmas. Dentro e fora do SMO. Mas já fiz o último exorcismo, a última catarse em 2019 e esperava, finalmente, ser livre, se bem que envelhecido, a partir daí. Com cicatrizes mas sem estigmas, apenas lembranças, focando-me apenas nas boas e varrendo as más que tanto me consumiram.

E consegui-o até janeiro (2024) quando a minha companheira cúmplice se mudou para outra dimensão deixando-me só neste mundo que não entendo.

Escravo sim, mas nunca escravizado, disse, em tempos de desabafo, numa das múltiplas tentativas de catarse. Equacionava constantemente o que fizera, onde estivera, como procedera. Tentava descortinar melhores meios de proceder em situações semelhantes. Insistia na minha introspeção insana, mas terapêutica. Quiçá hedonista, destinada apenas a evitar repetir o sofrimento de outras eras.

Depois de o exército colonial me mandar para a Oceânia, foi o terror do 25 de abril em Timor (onde nunca chegou). Estive quase a ser deportado para Moçambique (com mais uns tantos) por ser progressista à frente do jornal local “A Voz de Timor”…

Infelizmente, os efémeros Governos Portugueses, no instável período que se seguiu à Revolução de abril, não se opuseram firmemente, como deviam, às ambições da Indonésia. Incapazes de avaliar ou entender as realidades culturais, económicas e políticas de Timor-Leste, limitaram-se a defender só o direito à autodeterminação. Apregoavam que o povo do território deve “escolher o seu destino, sem opor objeções à integração na Indonésia se essa for a sua vontade livremente expressa,” cometendo um erro bem mais trágico do que se podia prever.

A Indonésia avançou com o plano de anexação, com o apoio da Austrália, a cumplicidade do mundo ocidental e dos EUA em particular, e uma muito ténue oposição de Lisboa. O primeiro passo é a desestabilização do território, para o qual o presidente Suharto dá ‘luz verde’ em outº 1974, na ‘Operasi Komodo’ dos Generais Benny Murdani, Yoga Sugama, e Coronel Sugiyanto que incluía o recrutamento de agentes de Timor-Leste, propaganda falsa pelas Rádio Kupang e Rádio Atambua (na metade indonésia da ilha) disseminada pela agência noticiosa oficial ANTARA e reportagens alarmistas sobre a situação em Timor, além do aliciamento dos líderes políticos de Timor, com promessas e ofertas (mais tarde, pressões) e a radicalização dos partidos locais através de agentes indonésios infiltrados.

A segunda fase (‘Operasi Komodo’) no começo de 1975, inclui a preparação da invasão quando é já evidente que há uma rejeição quase total timorense do projeto integracionista. O General Benny Murdani é o principal arquiteto da invasão. Em 18 fevº 1975 um simulacro em Lampung, Sumatra, criava o cenário para a operação em Timor, mas o exercício foi um fracasso total e atrasou a invasão.

O delegado do M.F.A. em Timor, Major Metello parte em visita oficial a Portugal após dois meses de luta acérrima contra o Encarregado do Governo, Níveo Herdade. A situação nos escalões superiores da hierarquia era de confusão e tensão. A cúpula militar viu vários oficiais desterrados para fora de Timor por, alegadamente, terem tomado parte num abortado mini-movimento para depor o Encarregado do Governo. Dentre eles um Tenente-coronel, Capitães, um Juiz do Tribunal e oficiais milicianos, 25 pessoas. Fora enorme esta depuração em tão reduzida comunidade. Eu saí deste lote de deportados após escrever cartas ao Major Melo Antunes, com quem trabalhara anteriormente, a dar-lhe conta da situação que se vivia em Timor. As cartas indicavam que, além das que seriam enviadas pelo correio militar, sujeitas a censura, iria enviar cópias por meios seguros através da Austrália e da Indonésia. Assim fiz ao confiar cópias a “hippies” que faziam de Díli o trampolim para chegarem ao último paraíso na terra, que Bali era então. Essas cartas cheias de descrições sobre tudo o que se passava (e provavelmente não era conhecido em Lisboa), podem ter sido a razão de eu não ter sido incluído naquele grupo, como queria Níveo Herdade, de acordo com documento secreto posteriormente revelado na Comissão de Descolonização.

O documento da Comissão de Descolonização (que desconheci durante mais de 25 anos), chegou à minha posse já no séc. XXI, e no qual constato que fui, injustamente, vilipendiado pelo Ten-Cor. Níveo Herdade em 27/9/1976 na Comissão de Análise e Esclarecimento do Processo de Descolonização de Timor, da Presidência do Conselho de Ministros (Relatórios da Descolonização de Timor: Relatório da Comissão de Análise e Esclarecimento do Processo de Descolonização de Timor.)

O material foi-me gentilmente enviado pelo General José Alberto Morais da Silva (1941-2014), ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea. Ligado ao “grupo dos nove”, exerceu o cargo até 9 janº 1977, tendo, no seu mandato, enfrentado o golpe militar do 25 novº 1975. Em 2000, escreveu com o coronel Manuel (Amaro) Bernardo, o livro Timor, abandono e tragédia, ed. Prefácio, no qual usou extratos do meu livro Timor-Leste o dossier secreto 1973-1975.

O meu 25 de abril descrevi-o então assim (e Ramos Horta confirmou-o no Expresso em dezº 2015):

Quando a Revolução dos Cravos aconteceu houve quem recebesse a notícia via telefone. Depois, era uma questão de perder tempo na rádio de ondas curtas. Era hora de jantar e eu estava de Oficial (Ajudante) de Dia no Quartel-general. O idoso Oficial de Dia já estava há muito a olhar para o umbigo, depois da sua rodada habitual (vinho “Periquita” ou outro). Toni Belo, operador da Telecom, Rádio Marconi, ligou para o Quartel-General a dizer-me que ia ter uma chamada telefónica uma hora depois. Chamei o condutor de serviço, mandei-o ligar o Jeep e passados minutos estava em Díli, ansiosamente esperando ‘a chamada’. Pressenti tratar-se de algo muito importante. Acordara com a família que só haveria telefonemas em emergências. Há muito que confirmara que toda a correspondência era sujeita a censura prévia e as chamadas telefónicas gravadas. Então, ouvi quase sem acreditar: Era a REVOLUÇÃO. Embora Timor não dispusesse de telex, desde o ano anterior dispunha de contactos radiotelefónicos com o mundo exterior. Sem perder tempo, pedi ao condutor para passar por casa nos apartamentos da SOTA (Largo de Lecidere), onde comunico aos colegas de habitação (o cirurgião Carlos Prata Dias da Costa e o Eng.º Proença de Oliveira, subchefe dos Serviços de Agricultura) o que ouvira. Pedi-lhes o máximo sigilo, ligo o rádio em ondas curtas e regresso ao Q.G. (Quartel-General) onde anoto que nada havia a assinalar da ‘ronda’ pela cidade. Durante o resto da noite, escuto avidamente os noticiários da BBC, Rádio Austrália e uma série de emissoras (ouvi a Rádio Paquistão, pela primeira vez). Na manhã seguinte, o camarada Freitas, que me ia render, pergunta se havia novidades de Portugal. Sem confiar em ninguém, depois do que se passara com a controvérsia no jornal, respondi-lhe: “Nada, que esperavas?” Os dias que se seguem são caóticos, com todos os rumores a circular e um generalizado sentimento de incredulidade pelos acontecimentos. Os dias passam, e o oportunismo camaleónico é avassalador. Do dia para a noite todos são revolucionários e democratas de nascença. A demissão do Governador Aldeia demora. Torna-se necessária depois do discurso em que, de forma obstinada, se opunha ao novo regime político. Começam a tomar vulto os rumores de que o capitão-tenente Leiria Pinto, Comandante da Defesa Naval, é o nomeado pela Junta. Estes boatos confundem muita gente, pois Leiria Pinto era considerado como tendo ideias extremamente conservadoras. Ao mesmo tempo, há quem afirme que o Chefe de Estado-Maior, Major Arnao Metello, sombrio oficial de carreira, é o homem de confiança da Junta de Salvação Nacional. Metello é conhecido pela sua falta de decisão e falta de garra em tudo o que se reportava à ação colonial. A oposição à continuação do coronel Aldeia no poder cresce de dia para dia. Ameaça tornar-se numa bola de neve, com os militares definitivamente divididos entre os progressistas – maioria de oficiais milicianos, furriéis e sargentos – e a velha guarda dos oficiais de carreira.

Entretanto em Portugal, o povo anda excitado com a liberdade acabada de aprender. Sobem os barómetros da esperança depois de 48 anos de obscurantismo.

A situação começa a clarificar-se em maio, embora nem todos os decretos aprovados em Lisboa se tornem extensivos a Díli. O regime caiu porque estava tão podre que estava incapacitado de suster qualquer ataque. A celebrada vitória vem estampada em todos os jornais e revistas que chegam a Timor, mas de uma certa forma, parece estar a anos-luz. Depois do 25 de abril, comecei a publicar artigos que o Comando Militar e, em especial o CEM (Chefe do Estado-Maior Arnao Metello) queriam evitar e me mandava chamar quase todas as manhãs no velho Volkswagen do Estado-Maior. Nessa rotina (prolongou-se por bastante tempo e trouxe consequências ao meu serviço militar) lá tinha de explicar porque publicara artigos censurados e considerado material proibido. Uma verdadeira caça ou o jogo do gato e do rato.

Ramos Horta viu assim o 25 de abril segundo entrevista dada ao Expresso em 28.11.2015:

 

Por tudo isto o que resta fazer 50 anos depois? Quase tudo, pois já só temos a liberdade de expressão e ruma-se rapidamente para o revivalismo do 24 de abril. Não esqueço sons que associarei sempre ao 25 de abril e podem ouvir em https://youtu.be/XTSnHxB_z6U e relembro as danças dos grupos Timor Furak e Le Ziaval no 26º colóquio na EBI Maia https://youtu.be/P1tZeYgTfgg e no Teatro Ribeiragrandense https://www.sapo.pt/video/trpZJ6Aj1U2sNzVnDJzm

Ou ainda estes Vídeos da minha memória de Timor

https://youtu.be/v2-wg8RlVig 10.38 2018

https://youtu.be/lyuOl7rCsPs?list=PLwjUyRyOUwOKRIA8XUWpVdMb8qRyjwlPB 18.28 2018

https://youtu.be/07aSPz-KmoQ 6.46 2017

https://youtu.be/GU_PzsOoMRE 11.08 2017

https://youtu.be/ccYFO2HL-KY 8.45 2016

https://youtu.be/fWq_oma1-VA 8.15 2016

https://youtu.be/jAl9w97nC4c 17.30 2016

https://youtu.be/BT3T3xoStrw 8.23 2016

https://youtu.be/pIGOK7gql34 1.47.56 2014

https://youtu.be/sYG4loijyeo 49.19 2021


Poemas de abril e de Timor


soletras autonomia (lomba da maia, abr 2013)

 

ilhas de névoas e gaze

de novelões e conteiras

do verde e do azul

ó gente de negro basalto

quem canta a tua gesta?

terra de maroiços

cais de rola-pipas

mar imenso abraseado

lacerado por vulcões

ilhas de bardos e músicos

republicanos presidentes

poetas, pintores e artistas

antero, nemésio e natália

quem te liberta das grilhetas

do passado feudal

da escravatura da fé

do atavismo ancestral?

soletras autonomia

gaguejas liberdade

titubeias emancipação

com laivos de insubmissão

como a irmã galiza

cicias um 25 de abril

que tarda em chegar


demo-cracia, /2014

 

tanto mar, tanto sal

tanta dor em portugal

 

primeiro foi-se o império

depois finou-se a ditadura

hoje agoniza a democracia

sujeita à banca e à usura

 

e neste recanto da ilha do arcanjo

sonha-se poesia e utopia

como se ainda houvesse esperança

ou o político se vestisse de anjo

por entre crimes e desgovernação

 

tanto mar, tanto sal

tanta dor em portugal


469.II DIA DE ENGANOS

 

nesse dia acordou irritado

logo por azar estremunhado

notaria a seu lado

a mulher

morta há dez anos

os ossos espalhados pela cama

pressupunham aqui e além um certo descuido

mas que diabo!

voltou-se para a janela

tentando adormecer uma vez mais

invariavelmente o fazia em dias como aquele

 

foi então

atiraram a bola à vidraça

o quarto ficou estrelado

mil sóis recortavam-se no ladrilhado

esforçou-se por manter a calma

ocultou a face no travesseiro

agarrou a almofada

freneticamente

num esgar sensual

ao longe tiniam campainhas

não havia dúvidas

iria ser um dia mau

decidiu-se a folhear o matutino

recusou-se a acreditar

limpou os óculos

estava lá

sem engano possível

em título de caixa alta

em editoriais se consagrava

o sonho supremo da humanidade

por decreto presidencial

dum senhor que ninguém elegera

ia ser promulgada e publicada

no diário da governação

com força institucional

A DEMOCRACIA

em termos mui solenes

o governo advertia

dentro de 24 horas

em cerimónia apropriada

nascia a democracia

e zás! nem quis ligar a televisão

 

quieto e calado tresleu

era demais!

violento choque!

 

democraticamente

sem se dar conta

caiu para o lado com um baque surdo

morreu na cama

e em jejum

democrata de nascença.


aviso à navegação, 25 abril 2013

 

aos saudosistas, salazarentos

e outros democratas

de geração instantânea

nascidos após o 25/4/74

 

25 de abril é uma data que respeito,

devolveu-me a liberdade de expressão

que não tinha ao nascer

nem no primeiro quartel de vida.

 

sou sonhador, poeta e utópico…

e só porque homens e mulheres

traíram e abusaram esse ideal

não vou deixar de acreditar nele…

na minha mente e nos meus atos

será abril sempre


Enquanto dormias a nova escravatura chegou, nov 2013

 

nenhum de nós é livre

enquanto ao teu lado

houver fome

miséria

desemprego

hoje são os outros

amanhã serás tu

passaram 40 anos

 

nenhum de nós é livre

enquanto abril não se cumprir


cheguei a Timor (díli, setº 1973)

 

timor cresceu cercado de lendas que a distância empolgou

o sonho e a quietude

1001 noites do oriente exótico

o sortilégio dos trópicos

para o europeu chegar era já desilusão

desprevenido sobrevoa estéril ilha

montes e pedras

agreste paisagem sulcada

leitos secos abruptas escarpas

terra sem marca de homem

esparsas cabanas de colmo

será isto timor?

o avião desce o vazio em círculos

em vão os olhos buscam a pista

por trás de um montículo imprevisto

se vislumbra o “T

a torre de controlo dos folhetos de propaganda

nunca existiu assim

a alfândega é o bar e sala de espera

sob o zinco e o colmo

isto é baucau

aeroporto internacional

a vila salazar dos compêndios

que a história esqueceu

uma turba estranha se amontoa

à chegada do cacatua-bote[1]

o patas-de-aço

esta a cerimónia sagrada do deus estrangeiro

descendo dos céus

dia de festa para os trajes multicoloridos

o contraste do castanho de sóis pigmentados

cinco da matina e é já o pó e o calor

o espanto mudo nas bocas incrédulas

as formalidades aqui com sabor novo

espera lenta e compassada

séculos de futuro por viver

antes que venha

antes não venha

num barracão zincado

uma velha bedford de carga com caixa fechada

vidros de plástico sob o toldo puído

pomposo dístico colonial

carreira pública baucau-díli

picada em terreno plano, mar ao fundo

baucau, cidade menina

por entre palmares densa vegetação tropical

connosco se cruzam estranhos homens de lipa[2]

galo de combate ao colo

entre torsos e braços nus

das ruínas do mercado se evocam

desconhecidos templos romanos

estrada nº 1 até díli

sulcam-se abruptas as encostas

ao mar sobranceiras

e adivinham cristais multicolores

em lugar de pontes se atravessam ribeiras enormes

leitos secos convertidos em estradas de ocasião

pedregoso solo

cores indefinidas,

castanhos e verdes

palapas [3] dissimuladas na paisagem

imagens tristes de pedras e montes

baías primitivas e inconquistas

praias de despojos e conchas

paraísos insuspeitos

gentes de sorrisos vermelhos

assusto-me

não é sangue nas bocas gengivadas

masca, mescla de cal viva e harecan[4]

placebo psicológico da alimentação que falta

um sorriso encarnado esconde a fome

súbito, por paisagens que só a memória

sem palavras descreverá

eis díli, a capital

larguíssima avenida semeando o pó nas palapas

casas de pedra com telhados de zinco

na ponta leste chinas e timores

a promiscuidade da pobreza

díli, plana e longa

a vasta baía antevendo imponente

o ataúro ilha

um porto incipiente

construções coloniais pós 1945

da guerra que ninguém quis

dos mortos que os japoneses quiseram

da neutralidade do país mãe

calado e violado

a marginal desagua no farol

alberga chefes de serviço

altas patentes militares

sem guerras para lutar

sem movimentos libertadores das gentes

quinze quilómetros de asfalto

três casas dantes da guerra grande

aeródromo em terra batida

um jipe de afugenta búfalo

a rua comercial atravessa díli senhora

de leste a oeste

espinha dorsal

o centro, o palácio das repartições, o do governo

perto um museu cujo nome ostenta o vazio

riquezas exportadas por patriotas governadores

colonizadores de séculos com nada para mostrar

dois sinaleiros nas horas de ponta

mandriões às portas dos cafés

– o ócio é o melhor emprego –

à noite transfiguram-se

os bas-fond, o texas bar,

da prostituição às slot machines

o submundo, a vida underground

afogar esperanças em álcool

sonhos há muito perdidos nunca sonhados

parcos restaurantes melhor comida a chinesa

bares espalhados pela cidade

militares e álcool para calar distâncias

longínquo um portugal dos pequeninos

cada vez mais esquecido nunca perdido

1973 numa cidade sem vida

morrendo nas cinzas próprias de cada noite

no silêncio a voz triste dos tokés[5]

o calor putrefacto entre o voo alado das baratas gigantes

carros poucos, de dia só do estado

motocicletas pululam por entre viaturas oficialmente pretas e verdes

esperando mulheres de oficiais

às portas dos cabeleireiros e do liceu

militares a pé em berliets ou unimogs

chineses muitos

díli é isto, a desolação

na parte alta o complexo militar

barracas insalubres sob a sombra dos hospitais

um civil um militar em fresco e verdejante vale

triste esta cidade pretensamente euro-africana

palapas marginando ruas

nelas vive o Timor sem água nem luz

dez ou quinze filhos que importa

a miséria é só uma e a mesma?

(josué de castro, o ciclo do caranguejo)

esta “a terra que o sol em nascendo vê primeiro”

aqui as imagens e são já história

não se repetirão

aqui não daremos testemunho

como transfigurar colónias pacíficas

em palcos de guerra

 


memórias. (díli, abril 1975)

 

ave louca

sinusoide voo

rias-te

nem sabias de quê

era já o fumo

olhos e mãos, baça voz

gestos nunca antes inventados

sabíamos do tempo

a imponderabilidade

a curva obscena dos corpos

na posse do mundo

estávamos e éramos

coloridos e diáfanos

queimávamos identidades

alguém cantarolava

palavras

desconexas

inúteis

carícias

premeditadamente esquecidas

ela se levantou

e a víamos como se não fosse

isto é

criada no instante mesmo

hesitante

avançando pela janela

ninguém a abrira

seria talvez noite

transcendental o país

bebedeiras de amor

roteiros estelares

no suor do regresso

como se nunca partiras

no sorriso distante, nos teus lábios

cresceram da criança os olhos

encheu-se a sala

frágeis gestos

alguém ousara!

na rua um escape

no silêncio do grito

a regra é saber que horas são

ou o medo

a vertigem

a regra do pavor

o voo de ficar

céleres que nem imagens

falam de nós

no teto branco nu

ou somos

desirmanados

no frémito que nos invade

a resposta recusada

texto ou resumo

a vida violada.


eleições sem lições em timor, 2012

 

dili 23 setembro 1973

cheguei hoje a timor português

a vinda marcará a minha vida para sempre

sem o saber nunca mais nada será igual

 

o futuro começa hoje e aqui

entrei no tempo da ditadura

sairei na democracia adiada

 

na bagagem guardo sabores,

imagens e odores

sonhos de pátria e amores

divórcios e outras dores

 

cheguei sem bandeiras nem causas

parti rebelde revolucionário

tinha uma voz e usei-a

tinha pena e escrevi sem parar

pari mais livros que filhos

para bi-beres e mauberes

 

48 anos de longo inverno da ditadura

24 de luta independentista

agora que a lois vai cheia

e não se passa na seissal

já maromác se apaziguou

crescem os lafaek no areal

perdida a riqueza do ai-tassi

gorada a saga do café

resta o ouro negro

para encher bolsos corruptos

sem matar a fome ao timor

 

perdido nas montanhas

sem luz, água ou telefone

repetindo gestos seculares

mascando sempre mascando

o placebo de cal e harecan

mas com direito a voto

para escolher quem o vai explorar

sob a capa diáfana da lei e ordem

do cristianismo animista

 

oprimido sim mas enfim livre.


  1. aviso à navegação, 25 abril 2013

 

aos saudosistas, salazarentos

e outros democratas

de geração instantânea

nascidos após o 25/4/74

 

25 de abril é uma data que respeito,

devolveu-me a liberdade de expressão

que não tinha ao nascer

nem no primeiro quartel de vida.

 

sou sonhador, poeta e utópico…

e só porque homens e mulheres

traíram e abusaram esse ideal

não vou deixar de acreditar nele…

na minha mente e nos meus atos

será abril sempre


25 abril sempre, até quando, lomba da maia, 25.4.18

 

a mulher doente

hoje não cumprirei a tradição

nos moinhos de porto formoso

não erguerei o meu cravo vermelho

pelo abril que imaginei

 

a saúde de ambos necessita terapia

não há medicina para estas maleitas

 

há 44 anos que acredito

sem arrependimentos

hoje incréu interrogo

quem matou os sonhos antigos

 

para mim será abril sempre

na mente e nos desejos

da liberdade, igualdade, fraternidade

 

falta nascer o homem novo

a sociedade nova

o mundo remoçado

que dê vida a este desiderato

 

espero o renascer das utopias

neste outono de vida

 

um 25 de abril sempre

mas com poesia


timor nas alturas /2012

 

queria subir ao tatamailau

pairar sobre as nuvens

das guerras, do ódio, das tribos

falar a língua franca

para todos os timores

 

queria subir ao matebian

ouvir o choro dos mortos

carpir os heróis esquecidos

 

queria subir ao cailaco e ao railaco

consolar as vítimas de liquiçá

beber o café de ermera

reconstruir o picadeiro em bobonaro

tomar banho no marobo

ir à missa no suai

buscar as joias da rainha de covalima

passar a fronteira e voltar

chorar todos os conhecidos e os outros

e quando as lágrimas secassem

regressaria à minha palapa imaginária

à mulher mais que inventada

oferecer-lhe um pente de moedas de prata

percorrer as suas ribeiras e vales

sussurrar por entre as folhas do arvoredo

navegar nos seus beiros

rumar ao ataúro e ao jaco

desfrutar a paz e as belezas ancestrais

ouvir os tokés enquanto as baratas aladas voam

os insetos projetados contra as janelas

atraídos pela luz do petromax

 

 

a infância e a juventude são como uma bebedeira

todos se lembram menos tu


para que não digam, 25 setº 1974

ao dr buceta martins, fascista dos antigos

na direita o fáscio, na esquerda o chicote

o sorriso no gatilho, mártir da democracia)

 

para que não digam

a mordaça acabou

a voz é livre

o futuro é novo

pintaremos o silêncio

que nos impõem

calaremos os sonhos

dos jornais que lemos.

sabemos nossa a vitória final ou talvez não

cântico da luta a palavra ressuscitada

aqui Timor aqui díli

o fáscio perene fidedigno

insuspeito nos bastidores

da obsoleta ordem nova

este mundo sem denúncia

porque o medo

sem progresso

porque o interesse

sem abril

porque os cravos murcham

nas estrelas da rosa-cruz

o trabalho é um dever divino

de obediência

perdida no espaço

já que tempo nunca teve

esta a terra dos parasitas

inaptos

corruptos

exilados das grandes batalhas

aqui o poder discricionário

o absentismo forçado

a passiva repressão

uma-a-uma todas as vozes silenciadas

o charco estagnou

idólatras do verde rubro

simbolistas de fé nenhuma

tiranos cujos ecos nos perseguem

mijai-vos de indignação

babai-vos de orgulho insalubre

a grande farsa acabará um dia

sem a razão

única e arbitrária

sufocados pelos gritos de piedade

afundar-vos-emos na merda que vos sustenta

e alimenta

vingar-nos-emos com o riso aberto sem incriminações

aqui Timor aqui díli a voz colonial da oceânia.


prazeres sem orgasmo (díli, abril 25, 1974)

 

pragmática palavra o som primeiro

hierático sorriso impresso

das crianças suburbanas subalterna vida

nas ruínas de lata o bairro

obscura idade do gesto habitante incómodo

ódios ignotos do ócio

ilhas à deriva plasmando a cidade

cerca da fome a fadiga desnuda

dos olhos a sombra

  • este o uterino vértice – ex/ato

heréticas noites de silêncio ex/voto

ignaras letras excitadas o infólio

tamanho normal de povo no estertor

  • É URGENTE REINVENTAR A CURVATURA OBSCENA DA GRAVIDEZ

PREENCHER DE FORMAS O VAZIO CORPO (DES)ESPERADO –

a mulher vulgar objeto

a televisiva fonia de anestesiar

amorfa consciência o pesadelo

cercearam irredutível ascensão

o plano antigo inclinado em queda abrupta

h2 = a2+b2 a razão inversa

do quadrado da hipotenusa a concêntrica marcha

relógio imperfeito da geração perdida

ao limiar do ser o haver

cerco do universal enfado indizíveis cansaços

  • tranquidolente marasmo mais um dia

na nudez proverbial deste povo

construtor ingénuo

de prazeres sem orgasmo ou de orgasmo sem prazer?


a nau sem escorbuto / 2011

 

arribou nesta praia deserta

a nau sem escorbuto

sem mastro nem pendão

sem carga nem marinhagem

sem especiarias do oriente

nem arroz do sião ou malaca

sem pérolas de ormuz

nem diamantes da índia

sem cavalos das arábias

nem marfim das áfricas

fôra de cochim a meca

de ternate a timor

sem compradores

nem lusitanos feitores

 

nesta açoriana praia deserta

longe do mar eritreu

há mouros e judeus conversos

cristãos por batizar

 

os senhores dos açores

ocupam lugares de proa

a barlavento das gentes

não vieram de calecute

nem estiveram em cipango

não cuidam da pimenta do reino

da noz-moscada, do cravo-da-índia

do açafrão, anis, gengibre e canela

não foram a banda, ceilão ou malucas

 

os senhores dos açores,

que não é terra de gentios

chamam-lhe sua e de mais ninguém

como samorim a regem

feitos marajás em palácios

ofertam bugigangas aos nativos

promessas vãs e eleitorais

 

sentado na ameia

frente à seteira

em castelo sem pendão

envio migas de letras

a todos sem literário pão

crónicas avulsas de vidas vividas

pecados sem perdão

 

e o povo sem saber da fome

do frio que aí vem

das vacas que se foram

do leite que não mungiram

dos campos que não araram

das colheitas que não comeram

feliz vota nos que prometem

sempre a mesma solução

 

lá fora há guerras sem pátrias

mutilados e estropiados

cá já temos sem-abrigo

drogaditos e malfeitores

assaltantes, meliantes

económicos dissabores

da troica que tudo leva

e cobra dívidas que herdamos

de tantos ditos senhores

 

não há santos que nos valham

nem procissões e andores

preces e velas acesas

romeiros de todas as dores

somos um povo infeliz e abúlico

sem sonhos nem destemores

vergados ao duro peso

de vis especuladores

 

da história magnânima nem sombras restam

nem bardos nem cantores

nem escribas dedicados

 

o povo sofrendo medos

erros grosseiros

enganos ledos

sem naus nem caravelas

sem espadas nem aduelas

sem especiarias nem língua franca

cantando fados a tétis com paixão

com futebol e telenovelas

e fé sem outra afeição

 

o povo escravo de novo

sofre consternado

às dívidas acorrentado

à mingua de dízimos e outros enfados

sem contar os créditos mal parados

come demagogia e paga iliteracia

santa liberdade e democracia

chora lágrimas de crocodilo

lendo jornais desportivos

com as letras aprendidas

nas novas oportunidades

 

o povo sofrendo fomes e enfermidades

vendia os anéis e comia os dedos

emigrava quando podia

queixava-se da sorte caipora

temia do governo as novidades

 

a geração rasca a parva passara

timidamente na crise despontara

bancos enriqueciam na austeridade

à custa da plebe e do suor já suado

de brandos costumes acostumado

não descera às ruas este povo

faltava-lhe força e inteligência

nem era gleba de novo

antes novos ricos da indigência

 

ancorada a nau fmi de novos reis

em terra de pagãos e infiéis

não daria berloques aos nativos

apenas a chibata e o chicote

as grilhetas de trabalhos cativos

sem abrigo nem culote

 

e um poeta solitário

no alto do seu castelo

gritava a bom gritar

mas não o ouviam as massas

sem perder tempo para se educar

e acreditavam nos seus donos

compradores de votos

com promessas a acenar

 

o jardim à beira-mar plantado

há muito inculto e estiolado

ia fenecendo devagar

sem gente para o cuidar

 

e dos vindouros muitos virão

dizer que o poeta pressagiava

o fim desta bela nação.


fados e sambas (lomba da maia, abr 2013)

 

ser ilhéu é um fado triste

entoado como um samba alegre

cantigas ao desafio

cantorias desgarradas

 

os corpos e as palavras

pintam realidades inesperadas

todos ficam todos partem

em dia de são vapor

tão longe sempre perto

em calafonas e canadás

 

ser ilhéu é um fado triste

entoado como um samba alegre

manta remendada de nove cores

tapete voador da saudade

sementes da memória

nas paredes do tempo

rasgando o silêncio

mundos mágicos sem chave

 

e eu ilhéu de abril

filho de muitas ilhas

choro este fado


autonomias nominais /2013

“para saberes quem te governa descobre quem não podes criticar”

voltaire

 

hoje acordei sem voz

sem mãos,

sem pés

sem coração.

 

habito nove ilhas de mil cores

arquipélago de mil autores

num fiasco de autonomia

pobreza sem alegria

 

na independência poucos confiam

em busca de subvenções porfiam

melhor é ficar mudo e quedo

viver dos subsídios esmoleres

submissos e acomodados

pobres despreocupados

servos enfeudados

ingénuos explorados

na eterna espera de godot

de um mandela que não nasceu

 

assim se explicam os açores

ilhas de mil e uma dores


à Galiza (moinhos, agosto 2013)

 

imagino a galiza

de cravo e bandeira na mão

gritando a plenos pulmões

que a liberdade é merecida

que a rua é dos poetas

que o 25 de abril não é de todos

mas será sempre para todos

mesmo para aqueles que o negam

imagino a galiza

de manifesto e megafone na mão

declamando a poesia da alforria

das conquistas irreversíveis

quando os esbirros vierem

feitos controladores do pensar

sei que ela estará lá

e abrirá o peito às balas

e o sangue que jorrar

será poema e arma

e o corpo desvanecido

será escudo e estandarte

para que a liberdade não morra

nem haja estertor do povo

com ela será 25 de abril sempre

que ninguém nos cala

e a voz dos poetas

troa mais que a da bala


475. NASCEM OS DIAS

 

suburbanamente vives

 

renasces quotidianamente

 

no sol que te alimenta

 

te transporta

 

hábitos comprimidos no sono

 

cheiras a cama

 

correndo te perdes

 

te cansas

 

nascem os dias na cidade

 

em cada rua

 

esquina

 

no matraquear lento dos minutos

 

nos acotovelámos vorazes

 

por entre a sandes e o copo de leite

 

a grande corrida no relógio das veias

 

e já somos o rebanho

 

e o cansaço

 

triturados no suor do trabalho

 

na lufa do jantar

 

um marido às prestações

 

os filhos endormentes

 

a televisão deserta

 

o sono

 

cansados os corpos

 

desconhecidos repousam

 

até um dia

 

amor

 

e chamar-se-à liberdade

 

nos dormitórios da cidade

 

o silêncio nos embala

 

sem voz que se erga

 

nos sonhos

 

que nos proíbem

 

sem que a desfraldemos

 

no edifício dos corpos

 

a alegria das bandeiras

 

neste país dos cravos

 

as lágrimas vermelhas do seu sangue.


outro epitáfio 25.6.2022

 

ser velho é isto

olhar para a parede que já foi branca

contar os traços quase a atingir 26645

já pouco espaço resta para mais traços

cada um deles um dia

uma alegria mil tristezas

sonhos que se esfumaram

sonhos nunca sonhados

que se concretizaram

sonhos recorrentes

nunca atingidos

subidas aos sete céus

descidas a mil infernos

a certeza inabalável

de ter feito a diferença

no carneirismo cinzento

a ovelha negra

no meio do rebanho

sem medo

dos cães pastores

de seus dentes ameaçadores

sem temor da chibata do pastor

e para epitáfio

um “smile” gigantesco

de desdém, de zombaria

 

[1] Cacatua-bote ou patas-de-aço designações dos timorenses aos aviões

[2] Lipa, saia de tecido colorido, típica, de origem malaia, os timorenses usam-na enrolada à cintura descendo até aos tornozelos.

[3] Casas cónicas, quadradas ou retangulares em colmo

[4] Folha de planta semelhante à do tabaco

[5] Espécie de lagarto sonoro, cuja idade se determinava pelo número de vezes que emitia o som toké.