Catarina Valadão Flatulência: o passageiro não identificado

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Flatulência: o passageiro não identificado
Viajar de avião é a prova moderna de que o ser humano está disposto a sofrer muito só para dizer que foi “uns dias lá fora”. Tudo começa no aeroporto, esse purgatório luminoso onde toda a gente anda com ar importante apesar de não saber para onde vai. Mas o verdadeiro drama não é o embarque, nem o controlo de segurança onde somos obrigados a despir-nos com a elegância de um chouriço a ser desembalado. O drama, meus caros, começa quando a porta do avião se fecha e percebemos que estamos presos dentro de uma lata voadora com estranhos – alguns dos quais carregam perigos intensos que não constam nos manuais de segurança.
Refiro-me, claro, à flatulência aérea. Uma entidade sombria, cobarde, estrategicamente programada para atacar a 30 mil pés, quando ninguém pode fugir e o ar é reciclado com a parcimónia de quem está a pagar ventoinhas à peça. Há todo um ecossistema digestivo que desperta no momento exacto em que o avião levanta voo. Deve ser a pressão atmosférica, ou a consciência de que já não há escapatória possível. Segundo a sabedoria popular, a gravidade deixa de funcionar, mas os gases, esses, continuam a descer.
Há sempre um passageiro que decide inaugurar a viagem com uma obra olfativa que faria um cão de busca desmaiar e depois há aquele silêncio cúmplice: todos farejam, todos percebem, mas ninguém (se) acusa. Somos uma sociedade evoluída até certo ponto, e esse ponto é exactamente o momento em que o ar fica irrespirável.
Como se isto não bastasse, entra também em cena a turbulência. Esse fenómeno climático que transforma adultos confiantes em crianças agarradas ao braço da cadeira como se fosse flutuador de piscina. A turbulência é democrática: abana pobres e ricos, experientes e marinheiros de primeira viagem, ateus e religiosos de ocasião. A única diferença é que uns disfarçam o frio na barriga melhor do que outros.
Há quem tente manter a dignidade lendo uma revista enquanto o avião treme como se estivesse a atravessar uma estrada esburacada nas alturas. Outros apertam o cinto com tanta força que parece que estão a competir para ver quem deixa marca permanente na anca. E depois há os fatalistas profissionais que concluem ao primeiro abano “é hoje”. É sempre “hoje”.
Entretanto, os assistentes de bordo caminham no corredor como bailarinos treinados para ignorar as leis da física. O avião sacode como um cocktail mal misturado e eles lá vão, impassíveis, a servir café, chá e laranjada – uma espécie de roleta russa líquida. A chávena abana, o passageiro treme, e toda a gente faz aquela careta típica: a expressão universal de quem está aterrorizado.
Somem-se a isto as crianças que descobrem, naquele exacto voo, o poder da sua corda vocal; o vizinho do lado que decide descalçar-se; o outro que dorme, ressona e baba; o que abre comida com cheiro nuclear; e temos uma sintonia perfeita de desconforto aéreo.
E depois o avião aterra. Milagre ou engenharia, ninguém sabe exactamente. O público bate palmas (porque somos assim… estranhos), o cheiro dissipa-se, as pernas tremem menos e, por um instante, todos se sentem sobreviventes de uma experiência épica.
Curiosamente, passado dois dias, já estamos a marcar outro voo, porque somos humanos: sofremos, queixamo-nos, juramos “nunca mais”, mas voltamos sempre, como quem tem uma necessidade inexplicável de sofrer outra vez.
Daqui a dois dias há mais…
Catarina Valadão
Algures no meio do oceano Atlântico

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