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Desconexão gourmet
Lembram-se de quando o telemóvel servia para pouco mais do que telefonar? Era uma coisa prática: ligar à mãe, marcar um jantar, chamar um táxi e jogar Snake. Agora é um pequeno ditador de bolso, sempre a vibrar e a pedir atenção. Nós, obedientes, largamos a conversa, o garfo, a vida, só para ver se alguém no planeta se lembrou de nós. E quando não vibra? Crash! “Será que o mundo acabou e ninguém fez update?” Calma: o bug não é do planeta, é teu.
Entrar hoje num restaurante é como assistir a uma convenção de zombies tecnológicos. As cabeças mergulham nos ecrãs com tanta devoção que só falta o cântico gregoriano como beat de fundo. O prato chega, tira-se a fotografia, põe-se o filtro “vida perfeita” e deixa-se a comida arrefecer – a comida arrefece, mas pelo menos a selfie sai em 4k. Entretanto, o diálogo é reduzido a “Passa-me o sal” escrito no WhatsApp, porque falar em voz alta parece intrusão. E quando finalmente se mastiga, a refeição já é um ficheiro saído de uma disquete.
As redes sociais são o all-you-can-eat da bisbilhotice. Fazemos scroll como quem folheia um menu de humanos. “A prima fica top de bikini” ou “O vizinho do terceiro partilhou um reel do cachorro”. Lá vamos nós, curiosos, a dar like, quando na verdade nem falamos pessoalmente com a prima ou com o vizinho.
É uma tragédia cómica: conhecemos a dieta do influencer de Silicon Valley, mas ignoramos se o nosso melhor amigo jantou ontem. É mais fácil emocionar-nos com o TikTok de um cão vestido de unicórnio do que com a avó ao nosso lado a contar histórias de quando as pessoas falavam cara-a-cara. O afeto, esse coitado, anda a viver de restos. Abraço? Só com marcação. Beijo? Só com filtro vintage e # kiss. É como se estivéssemos mais próximos de quem está a dez mil quilómetros do que do amigo sentado a meio metro.
Os jantares são hoje encontros de estranhos unidos pelo carregador múltiplo. O ambiente é tão íntimo como a fila das finanças. Cada um trata do seu feed com o ar compenetrado de quem está a encriptar segredos de Estado, quando na verdade só está a ver memes de preguiças em loop. E quando alguém se lembra de iniciar conversa, aparece o ecrã azul: “Mas… porquê?”
A vida real, aquela com cheiro, vento e gente, anda em stand-by e parece menos interessante porque não tem botão de like. O céu muda de cor, o mar faz surround, os pássaros cantam sem login e nós nem reparamos, porque estamos ocupados a ver se alguém reagiu ao nosso “bom dia” de ontem – aquele que nunca vivemos offline.
E não é culpa do telemóvel, coitado – hardware inofensivo. O bug somos nós. Seres humanos que preferem olhar para um ecrã retina do que para a cara, às vezes igualmente luminosa, de quem está mesmo à nossa frente.
A solução? Simples e barata: fazer logout. Sem drama. Ninguém vai morrer se não mexericarmos o Instagram por uma hora. Pelo contrário, talvez ganhemos vida. Pousar o telemóvel, erguer a cabeça, melhorar a postura e descobrir que as pessoas têm olhos, expressões e piadas medonhas. Que o jantar sabe melhor quando não está frio e pixelizado.
Arrisco-me a chamar esta mania de “desconexão gourmet”: a arte de ignorar a realidade com (uma tentativa de) requinte. Mas nada é mais chique do que estar (e ser) presente, sem lag.
Hoje, o premium é retro: conversar ao vivo, rir sem emoji, ouvir sem fones, abraçar sem hashtag.
Desconetar é o verdadeiro refresh: reaver o presente, a vida e a humanidade. E, convenhamos, é um espetáculo muito mais divertido do que qualquer vídeo viral de gatos – e eu adoro gatos!
A vida, a verdadeira, não acontece através de um ecrã.
Catarina Valadão
Publicado no jornal Açoriano Oriental a 11.10.2025
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