Carta a Vladimir Putin

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Carta a Vladimir Putin
Senhor Vladimir: escrevo-lhe esta carta para interceder por Pedro Abrunhosa, um compositor e cantor português muito apreciado no nosso País e em muitos países estrangeiros.
Para melhor enquadramento do meu pedido, conto-lhe uma história que aconteceu há muitos anos, na Madalena do Pico. O Abrunhosa tinha dado um concerto naquela vila na noite anterior. Pela manhã, estava eu à espera da lancha para voltar ao Faial e, por mero acaso, ouvi uma conversa entre dois velhos picarotos. Daqueles com chapéu de palha usado a vida inteira, mas que, mesmo assim, entalados em currais de vinha, ficaram com o sol em vez de cara para sempre.
Comentavam o concerto do Pedro, e um deles dizia, em voz arrastada: “Nunca vi besta mais malcriada em cima de um palco”. Imagino por quê. Já tinha visto o artista algumas vezes, e, de facto, diz o que lhe vem à cabeça. Até tem uma canção com título “talvez foder”, só para o senhor ver o calibre destemperado do cantor em análise.
Mas escreve muito bem, compõe ainda melhor e é muito querido nestes lados lusos, a ponto de as fãs lhe disponibilizarem os seios desnudos para ele autografar. Não é para qualquer um, concordará comigo, ainda por cima sabendo-se que o senhor também gosta de um bom par de carrapetas.
Vamos então ao que interessa. Num concerto dado aqui em Portugal, o Abrunhosa lembrou aqueles soldados ucranianos cercados numa ilha que, ameaçados por um barco de guerra russo de que iria esvaziar os canhões nos pobres desgraçados, responderam qualquer coisa do género “barco russo, vá-se foder”.
Perdoe a crueza da linguagem, mas foi o que os ucranianos disseram e eu não gosto de eufemismos ou tradições pueris, do género “vão-se lixar”. É uma expressão muito usada também em Portugal. Quando alguém dá uma martelada num dedo em vez de no prego, não diz “olha que chatice, acertei no dedo”. Grita “foda-se”, muito alto, e ninguém leva a mal. Da mesma forma, quando alguém se chateia a sério com outro, mesmo que seja amigo, não solta um “vai fazer amor contigo próprio…”. Pronto, somos ordinários, mas muito sinceros, e não queremos ser extraordinários quando a coisa corre mal.
Voltando ao Pedro: naquele seu entusiasmo que lhe cola as calças de cabedal ainda mais às pernas, sobretudo quando aplaudido nos seus excessos, não tardou a passar do tal barco russo para V. Exa, mandando-o também fazer a si próprio o que acima expliquei. O que motivou uma reacção muito dura por parte da embaixada da Rússia por cá sedeada.
Fala o seu embaixador em ofensa ao povo russo, ao seu máximo dirigente que é o senhor, diz que não estão nada distraídos, que a voz do Pedro chegou a Moscovo e o que ele disse terá consequências. Soou-me a ameaça. Mesmo que seja possível ver nas letras do homem que nunca tira os óculos graves apelos à insurreição. Sei bem que “tudo o que te dou tu me dás a mim” pode ser interpretado como a versão moderna da lei de Talião. Que “vem ter comigo aos Aliados”, mesmo que seja a avenida, pode ser imaginada como um apelo a uma aliança de todos contra V. Exa. Mas, acredite em mim, não é essa a intenção do homem. Ele canta sobretudo o amor, e o “Vladimir vai-te foder” pode, e talvez deva, ser entendido nessa dimensão.
Para mim é óbvio, e creio sê-lo igualmente para o Pedro, que o senhor tem todo o direito de invadir a Ucrânia, matar crianças, violar mulheres, destruir cidades inteiras e espalhar o terror entre velhos. Sem ser importunado e muito menos insultado. É o exercício de um direito natural. Mas dar tanta importância ao que se disse num concerto em Portugal, parece-me francamente um exagero e tenho a certeza de que o seu embaixador agiu a quente.
Por favor, não façam mal ao Pedro. Deixem-no voltar para os braços da sua mãe. Nem que seja em homenagem aos meninos e meninas ucranianos, que não terão nunca mais esse privilégio.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
Susana Goulart Costa, Antoaneta Petrova and 37 others
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  • Graziela Veiga

    Depois de ler esta magnífica carta a Vladimir Putin, resta-me dizer que, ainda bem que o Pedro Abrunhosa não cantou “Vem esta noite”, senão o Vladimir Putin, já lhe tinha batido à porta.
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