Carlos Estorninho: um português de Macau injustamente esquecido | JTM

Source: Carlos Estorninho: um português de Macau injustamente esquecido | JTM

CARLOS ESTORNINHO: UM PORTUGUÊS DE MACAU INJUSTAMENTE ESQUECIDO

24 17 1
António Aresta*

António Aresta*

Carlos Augusto Gonçalves Estorninho (1913-2006) é um português de Macau injustamente esquecido não obstante ser uma personalidade com uma enorme envergadura intelectual, cívica e cultural conforme se vislumbra pelas entrevistas que concedeu a Carlos Pinto Santos em 1994 [revista Macau, II série] e a António Melo em 1999 [jornal Público]. As suas raízes familiares foram assim recordadas: “Tem bisavó javanesa, avó tailandesa, mãe macaense. O lado paterno é algarvio, com um avô transmontano e aventureiro, talvez contrabandista, armador de barco de pequena cabotagem nas escalas dos portos da China”. Parece que os portugueses estão entre os eleitos no que diz respeito à fusão de afectos e de sangues.

Carlos Estorninho frequentou o Liceu de Macau no icónico edifício do Tap Seac e teve a sorte de ter sido aluno de uma boa parte da elite do professorado local: Manuel da Silva Mendes, José Vicente Jorge, Francisco Carvalho e Rego, Lara Reis, Humberto de Avelar, José Ferreira de Castro, Telo Gomes ou Jack Braga. Esta circunstância foi deveras marcante, pois abriu-lhe o pensamento para outros voos. Condiscípulo de Luís Gonzaga Gomes e de António Maria da Conceição, assiste como aluno voluntário, às aulas do inesquecível professor Camilo Pessanha. A esta actividade educativa juntava-se o frenético enriquecimento cultural e social trazido pela “Academia do Liceu” e pelo “Orfeão”, sem esquecer “alguns jornais de qualidade, de acentuado pendor crítico e com óptimos colaboradores como O Debate, O Liberal, O Petardo, Jornal de Macau, entre outros”. A influência dos mundos contíguos, Cantão por um lado e Hong Kong pelo outro fazia sentir-se em toda a pacatez do Território. Vale a pena recordar ainda esta importante memória de estudante liceal: “Comecei a interessar-me pela história de Macau quando ainda estava no liceu. Julgo ter sido influenciado pela perseguição movida a Montalto de Jesus, em 1926. Vivi intensamente esse episódio o que foi depois avivado quando tive Jack Braga como professor, amigo muito próximo de Montalto de Jesus. No ano seguinte ao ‘auto-de-fé’ do Macau Histórico foi publicado o excelente Resumo da História de Macau do padre Régis Gervaix com o pseudónimo de Eudore de Colomban, editado pelo Jacinto José do Nascimento Moura. Dirigido propositadamente para as escolas, era muitíssimo bem feito e teve grande influência na minha formação e interesse pela história de Macau”. Muitos anos decorridos, em 1990, Carlos Estorninho assina o prefácio ao “Macau Histórico” de Montalto de Jesus, a primeira edição portuguesa da versão apreendida em 1926, que foi lançada sob a chancela da editora Livros do Oriente. Foi feita a recuperação do livro mas Montalto aguarda ainda por uma reabilitação da sua memória e do seu legado científico.

Carlos Estorninho

É com todo este lastro que parte para Coimbra em 1933, ingressando no curso de Filologia Germânica na Faculdade de Letras. Viveu na república “Ninho dos Matulões”, tomando desde aí o sentido pelos valores da democracia e da liberdade pelos caminhos da vida, reconhecendo como decisiva a influência dos professores Joaquim de Carvalho e Paulo Quintela, bem como o convívio e a boémia com o grupo da Presença, sobretudo com João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro e José Régio. Pelo Orfeão Académico, pela Associação Cristã dos Estudantes e pelo Centro Republicano Académico de Coimbra irá encontrar o seu espaço mental e forjar as afinidades decisivas para o futuro. No fim da licenciatura recebe um convite do professor George West para colaborar na instalação do Instituto Inglês na Universidade de Coimbra. Estávamos nos primórdios da segunda guerra mundial e havia uma persistente suspeita de que o Instituto Inglês seria o pretexto para albergar uma ‘antena’ dos serviços da espionagem britânica em Portugal. Carlos Estorninho desmentia sempre quando esse alvitre se insinuava nas conversas. Curiosamente, o seu antigo professor no Liceu de Macau, Jack Braga, também ficou associado a actividades de espionagem, a favor do governo chinês e do governo inglês, em plena guerra do Pacífico, conforme se pode ler no obituário que lhe dedicou o influente South China Morning Post.

Um novo convite do professor George West leva-o para a capital, participando assim na criação do Instituto Britânico em Lisboa. Tinha encontrado a profissão que também seria uma paixão, bibliotecário. Durante quatro décadas foi o director da Biblioteca do Instituto Britânico e um reconhecido renovador da biblioteconomia para além de ter sido fundador e presidente da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas. No Instituto Britânico organiza a “Colecção Anglo-Portuguesa”, uma referência com mais de 5000 volumes em língua inglesa dedicados a Portugal assim como as versões inglesas das obras de escritores portugueses. Desdobra-se em inúmeras actividades culturais, conferências e organização de exposições temáticas, colaborando intensivamente na imprensa [Diário de Notícias, O Século, Diário de Lisboa, Diário Popular, A Capital, Ocidente, Biblos, Panorama, etc]. A convite de António Sérgio escreve diversas entradas na Enciclopédia Portuguesa e Brasileira de Cultura. A Rainha Isabel II agracia-o em 1969 com o oficialato da Ordem do Império Britânico, reconhecendo os seus serviços à causa luso-britânica no domínio da cultura.

Participa activamente nos movimentos democráticos, não comunistas, em oposição ao regime do Estado Novo. Apoiou as candidaturas presidenciais do general Norton de Matos, do almirante Quintão Meireles e do general Humberto Delgado. Pertenceu ao MUD [Movimento de Unidade Democrática] e secretariou a Liga dos Direitos do Homem. Foi colaborador e secretário da redacção da Revista Seara Nova, de 1948 até 1959, aí privando com Jaime Cortesão, António Sérgio, Sant’Anna Dionísio, Augusto Casimiro, Câmara Reis, Ferreira de Castro ou José Augusto França. Integrou a administração do jornal República, até ao seu fim em 1975, quando foi tomado de assalto pelos comunistas, seguindo depois para o seu sucedâneo, o jornal A Luta.

A revolução do 25 de Abril de 1974 deveria ter-lhe proporcionado o regresso à sua terra natal. Poderia ter sido nomeado governador, se desejasse o cargo. Ou outra posição à sua escolha. Também recusou os convites do partido socialista para integrar o parlamento como deputado. Explica as suas razões: “Preferi manter a minha posição de democrata independente, fora das lutas partidárias, como patriota, português e macaense. Penso também que a minha geração cumpriu o seu dever de resistência à ditadura e que deve deixar a actividade partidária e as questões do poder político às gerações que lhe sucederam”. Em relação a Macau, parece ter sido um erro a sua decisão de não retorno. As suas ideias teriam feito a diferença em muitas situações, quiçá evitando erros irreparáveis.

Mesmo longe, Macau continuava naturalmente no coração de Carlos Estorninho. É um dos fundadores da Casa de Macau em Lisboa, em 1966, [ocupada em 1974 por um folclórico ‘Movimento de Libertação de Macau’, com o recheio vandalizado, ficando encerrada um lustro] a que presidiu em 1979\1981. Coordena os eventos da Quinzena de Macau em Lisboa onde, entre outras iniciativas, são reeditados alguns títulos importantes, a título de exemplo, “Macau, Factos e Lendas” de Luís Gonzaga Gomes e “Macau: Impressões e Recordações”, de Manuel da Silva Mendes. Em 1981 regressa a Macau para participar no I Congresso Internacional de Psiquiatria Transcultural, um evento onde Almerindo Lessa se destacará pelas suas ideias originais. Entretanto integra o conselho consultivo da Universidade da Ásia Oriental e continua apaixonadamente activo na Sociedade Byron.

O seu progressivo afastamento da terra natal tem a ver com o princípio do fim da configuração portuguesa do Território. Observa com muita angústia o desmesurado crescimento de Macau: “Quando vejo uma imagem de Macau fico triste. O urbanismo do território descaracterizou, irremediavelmente, a terra. A Fortaleza da Guia já mal se vê, a Igreja de São Paulo está esmagada e prepara-se o aterro da baía da Praia Grande. Só à última hora nos lembramos que Macau é muito pequeno, deixamo-nos levar pelos interesses económicos imediatos, por aqueles para quem progresso é sinónimo de edifícios de trinta andares. Fomos sendo levados aos poucos pelo “já agora…”. Desprezamos a cultura e embarcamos nessa lamentável aventura. Porque não se fez essa explosão desenvolvimentista noutro local ? Até podia ter sido na Taipa, em Coloane, nas ilhas próximas de Macau. Onde quisessem, porque a China é tão grande…”. Este desabafo, transmitido a Carlos Pinto Santos, em 1994, espelha os sentimentos contraditórios e críticos em relação às grandes opções seguidas pela acção governativa no Território, ressalvando que “há alguma obra feita por certas instituições, designadamente a Fundação Oriente, mas não é suficiente. E constato, por um lado, que são muito poucos os macaenses ligados a essas instituições e, por outro, que os maiores especialistas sobre Macau – casos de Almerindo Lessa e Ana Maria Amaro , por exemplo – estão , de certa forma, marginalizados em detrimento de uma legião de arrivistas que pululam na terra e se dedicam a lançar publicações com apresentação espampanante mas com muita parra e pouca uva…”.

E é com lucidez que desfia a história, lidando com os fantasmas indutores de descrenças e de ressentimentos, que ensombraram a vida dos povos, “Está no sangue dos macaenses a falta de confiança nos mandarins de Cantão, como a história nos mostra. Sempre que houve convulsões sociais e políticas na China, a tendência do macaense é emigrar. Vê-se isso com a fundação de Hong Kong, Guerra do Ópio, Guerra dos Boxers, período nacionalista, invasão japonesa, revolução comunista, etc. Tem havido uma diáspora permanente cuja última fase será em 1999. Só ficarão aqueles que, de todo, não puderem sair”.

A sua bibliografia é muito extensa e é o símbolo do seu compromisso com o conhecimento. Anoto alguns títulos: Portuguese Literature in English Translation (1953); Influência Inglesa na Vida e Obra de Garrett (1954); Os Estudos Camonianos em Inglaterra (1972); Portuguese Byroniana (1977). Especificamente sobre Macau, a sua contribuição é muito importante: Breves Apontamentos sobre Macau (1952); Macau na História das Relações Sino-Americanas (1954); Les Relations Historiques de Macao et de la Chine (1957); Macau e os Macaenses – Divagações e Achegas Históricas (1962); Macau e o Ocidente (1963); Portuguesismo do Macaense (1963); A Gruta de Camões na História, na Literatura e nas Belas Artes (1980); A Identidade Cultural Macaense (1980). No ‘Dicionário da História de Portugal’, coordenado por Joel Serrão, escreve o verbete “Macau” que, tantos anos depois é ainda considerado uma síntese exemplar.

Julgo que seria importante poder reunir-se em volume os seus estudos dispersos dedicados à cultura e à história da sua terra natal.

error

Enjoy this blog? Please spread the word :)

RSS
Follow by Email
Twitter
YouTube
LinkedIn