CANABIS E O CRIME ORGANIZADO

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CANÁBIS – PROIBIÇÃO SÓ FAVORECE O CRIME ORGANIZADO
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Roda aí a realidade / Opinião
A defesa da legalização da canábis recreativa ganhou apoios de peso, com vários ex-ministros do PS e PSD a subscrevê-la. Estranhamente, não vimos grande efeito político-mediático desse facto. Será porque já toda a gente acha inevitável essa “mudança de paradigma” advogada pelo recém-desaparecido Jorge Sampaio?
Opinião
Fernanda Câncio / DN
Vai fazer 10 anos que o estado americano do Colorado legalizou a canábis recreativa – por via de uma consulta à população, em 2012 – e oito que a venda em lojas específicas e a pessoas que provem ser maiores de 21 ali decorre legalmente. Não consta, apesar das muitas predições, das mais negativas às mais positivas, que o facto tenha tido muitos efeitos sociológica e economicamente assinaláveis – a não ser no aspeto fiscal: os últimos dados indicam que o estado, com 5,7 milhões de habitantes, arrecada mensalmente cerca de 17 milhões de euros com este comércio.
Essa é a conclusão de uma análise efetuada em janeiro, pelo think tank libertário Cato Institute, ao efeito da legalização da canábis nos vários estados – 11, mais o distrito de Columbia – em que esta ocorreu (outros quatro legalizaram apenas o uso pessoal de canábis).
Baseando-se nos dados existentes, a análise assevera que nem houve subida sustentada no consumo devido à legalização, nem mais crime, nem mais suicídios, nem mais doenças mentais, nem mais acidentes viários, nem mais consumo de outras drogas; nem menos consumo, nem menos crime, nem menos alcoolismo, nem menos acidentes viários (defensores da legalização criam que a transferência do consumo de álcool para o de canábis iria ter esse efeito).
Não foi, portanto, tanto quanto os estudos existentes permitem concluir, nem o inferno nem o paraíso. O mesmo se parece retirar da mais recente experiência de legalização do Canadá (o Uruguai foi o primeiro país a legalizar, em 2013, mas em termos que, por restringir a venda a farmácias e consumidores “cadastrados”, são demasiado limitados para permitir conclusões exportáveis).
Talvez seja este facto – afinal legalizar o consumo recreativo de canábis não tem grandes efeitos negativos – a justificar que uma carta de defesa dessa medida em Portugal, assinada por uma série de nomes sonantes do mainstream político e da área da saúde e da justiça (os ex-ministros Vieira da Silva, Laborinho Lúcio, Maria de Lurdes Rodrigues, Correia de Campos, Alberto Costa, Vera Jardim e Paula Teixeira da Cruz, assim como o presidente do Conselho Nacional de Saúde Henrique de Barros e o ex-diretor-geral da Saúde Francisco George, entre muitos outros), que na semana passada foi tornada pública, tenha tido um impacto mediático frouxo: não vi nenhum grande debate nas TV sobre o assunto, por exemplo, nem sequer as expectáveis reações adversas dos setores políticos que se costumam opor à legalização.
A principal reação à divulgação da carta (de que sou, declaração de interesses, signatária) veio de João Goulão, o médico que está há mais de duas décadas à frente do organismo que “tem por missão promover a redução do consumo de substâncias psicoativas, a prevenção dos comportamentos aditivos e a diminuição das dependências”, o SICAD, numa entrevista ao Público.
É sabido que Goulão, um entusiasta da descriminalização do consumo de drogas que Portugal aplicou há 21 anos, durante o governo Guterres, se opõe àquele que Jorge Sampaio, membro da Comissão Global de Política sobre Drogas, dizia em 2019 ser o próximo, e lógico passo a dar na sequência dessa mesma descriminalização: “O da regulação dos mercados de drogas.”
Note-se o plural: a comissão a que Sampaio pertencia, e que é formada sobretudo por ex-chefes de Estado, defende uma “mudança de paradigma” no que respeita à abordagem de todas as substâncias denominadas por “drogas”, elencadas e proibidas pelas três convenções da ONU que impuseram o proibicionismo como política global – não apenas da canábis.
É certo que Goulão, um homem de discurso habitualmente sóbrio, não acena com grandes perigos nem histerias: limita-se a dizer que não vê “que vantagens há em legalizar no momento atual” e lança algumas perguntas. Em relação aos menores, por exemplo: se se estabelece uma idade mínima para a compra, não haverá um mercado paralelo dirigido aos sub-18?
É uma pergunta válida, mas coloca-se neste preciso momento: o mercado ilegal não pede o cartão de cidadão. Em que é que será pior o mercado regulado, nesse aspeto? Pode não conseguir impedir, como o proibicionismo não impede, que menores consumam (basta que um mais velho vá à loja comprar para eles), mas contribuirá para uma melhoria num aspeto importante: a qualidade e segurança do produto.
Muito francamente, entre ter miúdos de 14 ou 15 ou menos a fumar brocas sabe-se lá de quê ou a consumir um produto de qualidade controlada, prefiro de longe a segunda hipótese – chama-se redução de riscos, política de que Goulão é a cara em Portugal.
O que nos conduz àquela que tem sido a principal objeção por ele mencionada sempre que a discussão da legalização surge: a “potência” da canábis no mercado ilegal tem aumentado muito nos últimos anos, aumentando o risco de efeitos adversos (como surtos psicóticos) e levando este especialista a considerar que já não se pode falar da canábis como “droga leve”.
Confesso que cada vez que vejo este argumento fico estupefacta, já que é uma das principais razões para defender a legalização e regulação: num mercado controlado, não só se define o nível máximo de THC (a componente psicoativa da canábis) admitido no produto comercializado como os compradores sabem o que vão consumir, e com que potência. Ou seja, acaba-se a canábis “com 20% de THC” com que Goulão acena – e, como a carta propõe, pode-se tributar mais fortemente em função do nível crescente dessa componente.
É possível que no mercado negro se continue a encontrar canábis com níveis proibidos de THC? É, sendo pouco provável que tenha muita saída (por que há-de alguém arriscar comprar algo ilegal se tem um produto legal e seguro à disposição?) – e continuar-se-á a usar o mesmo remédio que agora: criminalização.
O último argumento invocado por Goulão é, lamento, patético: a existência das convenções proibicionistas. Perante um panorama mundial em que dois países legalizaram a canábis recreativa e vários estados americanos fizeram o mesmo, com um secretário-geral da ONU que enquanto primeiro-ministro desafiou essas mesmas convenções ao descriminalizar o consumo de drogas – havia, e Goulão bem o sabe, quem garantisse que tal violava as ditas -, falar das famigeradas como se violá-las tivesse alguma consequência é sinal do desespero de quem já não sabe o que dizer.
“Estamos irmanados”, diz Goulão sobre a sua posição e a dos que defendem a legalização, “no desejo de reduzir os efeitos negativos da canábis na sociedade portuguesa. A grande dúvida é se seremos mais eficazes a fazê-lo num quadro de legalização ou no quadro atual, porventura aperfeiçoado, com mais intervenção, com mais meios.” É uma posição simpática, mas tem um problema: a eficácia da ilegalidade está à vista nos próprios argumentos que Goulão apresenta. Foi com ela que a canábis, nas mãos do mercado negro e do crime, passou de “droga leve” a “droga dura”; foi com ela que o THC chegou aos 20% e foi com ela que, mesmo no âmbito da descriminalização, o número de consumidores criminalizados, porque apanhados com mais que a dose “para 10 dias” fixada na lei, tem vindo a aumentar. O proibicionismo falhou, sobre isso ninguém tem dúvidas a não ser quem com ele ganha – e muito: o crime organizado.
É altura de olhar para a realidade, deixar de colher louros por uma política que se há 21 anos foi de vanguarda agora já não é, e avançar para aquilo que em 2019, no encontro lisboeta da Comissão Global, Jorge Sampaio designou como “o começo de uma nova possibilidade.”
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