CAMILO E AS CAUSAS DAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS

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CAMILO E AS CAUSAS DAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS
Todos nós experimentamos, lemos, enfim, sabemos, e (pelo menos alguns de nós) afirmamos e repetimos, que o clima está a mudar, e que tal se deve à intervenção humana. Porém, achamos sempre que isso é coisa de causas recentes – e os fundamentalistas do costume começam logo a montar os devidos esquemas de censura, de proibição e de abaixo isto e mais aquilo.
Como, em geral, as leituras dos fundamentalistas de qualquer causa – não importa qual seja ela, desde que seja uma «causa» – nunca vão além das suas próprias lombadas e das lombadas dos seus correligionários, o mesmo se aplicando aos negacionistas de qualquer espécie e atrevimento, atrevo-me a receitar a todos eles uma leitura atenta dos parágrafos iniciais do romance A SEREIA (1865), de Camilo Castelo Branco, onde se comprova à barda que essa coisa das alterações climáticas já é quase tão velha como a Sé de Braga (pelo menos tal como ela ficou após as grandes obras do século XVIII).
Ei-los então:
«Estamos no dia 15 de Maio de 1762.
Naquele tempo, os dias de Maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores. A Primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava. Ninguém saía da sua casa às cinco horas duma tarde cálida de Maio, com um casaco de reserva no braço para resistir ao frio das sete horas; nem o paralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez, com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante.
O globo, naquele tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinada pelos astrónomos. A gente ditosa, que então viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotação dos planetas; e os sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações. Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em Maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência, e a ciência dos factos repetidos.
Depois, porém, daquela época, desconcertaram-se os sistemas das regiões altas. As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar no fim do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, passado um indeterminado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado, possam ter influído na substância dos sólidos e fluidos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, afinal, acabariam de todo com a Primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias de Maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para o nosso uso em Julho.»
E pronto.
May be an image of text that says "BIBLIOTHECA MORÉ CAMILLO CASTELLO BRANCO A SEREIA ලෙက மወజTOം EM CASA DA VIUVA MORE-EDITORA EDITORA 1865. sn"
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