cabul – saigão

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Cabul, Saigão
A história raramente se repete e este não é por certo um dos casos em que tal se vislumbre. Seria ofensivo comparar os talibãs aos vietcong, ou o regime instaurado por Ho Chi Min com o dos herdeiro do Mulá Omar. Quarenta e seis anos depois da queda de Saigão, a fuga de Cabul, a que agora estamos a assistir, não se lhe compara nem nas circunstâncias históricas, nem nas implicações regionais. O único paralelo, e esse merece reflexão, é que estamos a assistir à segunda derrota do exército mais poderoso do mundo.
Esta foi a guerra mais prolongada de sempre das forças norte-americanas. Foi também a primeira vez em que a Nato foi formalmente envolvida numa operação bélica, ao abrigo de uma claúsula do seu tratado e iniciando uma nova era em que a aliança militar passou a reclamar o direito a intervir em qualquer zona do globo. O fracasso de Washington e da Nato tem por isso consequências gigantescas. A fiabilidade da superioridade militar norte-americana ou da sua capacidade de conduzir uma guerra com uma operação de ocupação, a qualidade da sua informação mesmo depois de controlar o país durante vinte anos, o seu planeamento estratégico, a consistência da sua articulação com os aliados regionais – tudo isso é posto em causa com a fuga de Cabul.
Poder-se-ia dizer que este destino estava escrito, mas seria uma simplificação. Quando os fundos, armas e apoios norte-americanos começaram a ser canalizados para os talibãs, tratava-se inicialmente de desestabilizar uma fronteira da URSS no contexto da guerra fria, pondo em causa a sua ocupação do país. Este jogo de curto prazo acabou por ser catastrófico, abrindo portas a que os talibãs se impusessem a outros senhores de guerra e dominassem o país, albergando Bin Laden e outros grupos do mesmo tipo. O resultado deste jogo sinistro seria sempre duvidoso, tanto mais que uma das potências militares da região, o Paquistão, era o melhor aliado de Washington mas também dos talibãs, e os financiamentos que estes recebiam da Arábia Saudita não tinham fundo. O desenlace não podia ser mais funesto. Depois do fracasso inevitável da estratégia da “construção da nação” pelas botas cardadas ao som de Washington, o Afeganistão viverá de novo sob o regime de terror de um fundamentalismo religioso e opressivo.
Neste contexto, a supremacia norte-americana no mundo sai diminuída desta tragédia de décadas. Militar e politicamente, a sua derrota deixa marcas. Outras potências, como a Rússia, que procura recuperar terreno, e a China, que usa outros instrumentos para a sua expansão e que procura evitar desastres deste tipo, aproveitarão as vagas deste fracasso, o que pode tornar uns e outros mais agressivos. O multilateralismo, se é isto, então deixa-se escoar como um discurso sem consequência. O mundo ficou um lugar mais perigoso com a operação norte-americana apoiando os talibãs primeiro, depois ocupando o Afeganistão e agora chegando a este resultado tão paradoxal de um regresso à idade das trevas. O que é evidente é que, se o poder hegemónico age desta forma, revela que o seu tempo já passou.
(no Expresso)
Chrys Chrystello
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