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Não são apenas “invasores”, ou Portugal tinha razão
O Islão português que a FRELIMO não quis reconhecer
Por mais que o nosso coração se incline para reduzir e simplificar a situação no norte de Moçambique a um enfrentamento entre a autoridade do Estado e invasores provenientes da Tanzânia, a questão é muito mais complexa e nuançada, pelo que a solução do conflito requererá algo mais do que o triunfo militar sobre a sublevação. Em boa verdade, a invasão só o será marginalmente, pois que no norte de Moçambique se revelam particularismos que merecem especial atenção e estarão certamente na génese de tudo o que por lá acontece. Ali parece estar em curso uma secessão que só pode ser compreendida se atentarmos nas características dos territórios onde está em curso a sublevação.
Quando, em 1894, se riscou o mapa administrativo de Moçambique, foram delegadas funções majestáticas – isto é, de administração – à Companhia do Niassa [e Cabo Delgado], sob cuja
tutela aqueles territórios estiveram até 1929, transitando depois para a responsabilidade directa das autoridades portuguesas. Até 1929, ao governo português apenas cabia a administração da Justiça. Não deixa de ser importante o facto de Cabo Delgado se apresentar então como habitado por “populações civilizadas”; logo, capacitadas para o processo de uniformidade e assimilação ao sistema jurídico português. Por outras palavras, as populações de Cabo Delgado e do Niassa cumpriam todos os requisitos para poderem participar em plenitude no sistema jurídico e social português. Era o mundo islâmico português. A atestá-lo, o facto de, já no início do século XX, a maioria dos funcionários no juízo de direito em Cabo Delgado serem africanos.
Cabo Delgado integra o mundo Swahili exposto à dupla influência do Islão e da civilização árabe, ali tão profundamente ancorados, pelo que sempre mereceu ser encarado por Lisboa como distinta dos então distritos retintamente banto do centro-sul e do sul de Moçambique. Quanto ao Niassa, povoado pelos Yao também muito islamizados, a situação é análoga e pode ser acoplada à de Cabo Delgado. Tais populações participaram intensamente no comércio do Índico e a partir do século XVIII especializaram-se no tráfico negreiro escoado do hinterland para o sultanato de Zanzibar. Em Cabo Delgado, quase 60% da população segue os preceitos do Islão e no Niassa a população muçulmana também é dominante.
Quebrando a continuidade entre muçulmanos da costa e muçulmanos do interior, só os macondes estudados por Jorge Dias ofereceram grande resistência aos caçadores de escravos árabes e afro-islâmicos, pelo a religião de resistência maconde transitou lentamente das chamadas religiões animistas para o catolicismo. Se para dominar a expansão do terrorismo será necessário armar os macondes, o bom senso e a inteligência inclinar-se-iam para o reconhecimento de um Islão moçambicano, compreendido e respeitado pelos portugueses, mas logo perseguido e menosprezado por uma FRELIMO predominantemente banto sulista e muito inclinada para o uso da força. Se a tais populações do norte e da costa Swahili não forem garantidas condições razoáveis de alguma partilha das riquezas naturais agora exploradas [e disputadas] entre franceses, americanos e chineses, temo que o conflito possa chegar a Quelimane, ou seja, em plena Zambézia.
Afinal, a chamada Antropologia dita “colonial” sabia de tudo isto há mais de 100 anos.
