Botelo com cascas (não é butelo)

José Quina

BOTELO ou Butelo?
Tenho constatado com alguma perplexidade a referência ao tradicional tipo de enchido regional, de carne com osso, empregando a corruptela do termo butelo em vez da correcta e gramaticalmente sustentada palavra BOTELO.
Porque penso que não é um válido contributo que se vem prestando à cultura em geral e particularmente a este já prestigiado acepipe da gastronomia regional trasmontana, permito-me apresentar e fundamentar a minha discordância. Com efeito a confusão campeia, de tal forma que coexistem as duas formas gráficas e não é raro encontrá-las até no mesmo texto.
BOTELO é um vocábulo correctamente formado, por derivação etimológica de Botellum, (caso acusativo de botellus), compartindo o mesmo radical com inúmeros termos da língua portuguesa tais como: boto, bota, botelho, botelha, botija…
A adulteração do termo, empregando outra grafia que substitui o “O” interconsonântico por “U” não vem acrescentar nada à forma ortodoxa, nem do ponto de vista fonético, já que na dinâmica da praxe linguística regional e nacional ambas as vogais “O” que integram a palavra têm o mesmo valor fonético de “U”, nem do ponto de vista científico, nem, muito menos, do ponto de vista da substância material. Com efeito é sobejamente sabido que no universo da população nordestina, identificada com o acervo cultural transmontano, não haverá quem não reconheça inequivocamente o tão genuíno quanto apreciado acepipe gastronómico BOTELO. Ora tal peça de fumeiro artesanal, legado ancestral de geração para geração, não carece de mais nada, muito menos de alteração da sua grafia, para ser um produto bem logrado, genuíno e bom, enquanto BOTELO.
O fenómeno que outorga à vogal “O” o valor fonético de “U” é comum a centenas, senão milhares de palavras na língua lusa e noutras do seu ramo genealógico, inclusive até mais que uma vez na mesma palavra, como acontece na própria palavra BOTELO. Assim sendo, quase somos levados a perguntar-nos: se pretendemos converter o primeiro “O” em “U”, em prol de uma suposta busca de originalidade, porquê não converter também o segundo, passando, portanto, a escrever butelu, em lugar de BOTELO?
Em má hora (com o devido respeito a quem sustenha outra opinião) a insensibilidade, desleixo e falta de rigor têm permitido o abuso quase generalizado da forma gráfica corrupta butelo, mesmo se supostamente tolerada como sinónimo da forma ortodoxa BOTELO, porquanto tem, a meu ver, falaciosamente, induzido por arreste alguns produtores a empregar a corruptela em lugar da forma gráfica gramaticalmente sustentada, ou seja, BOTELO, para rotular os seus produtos.
Tal prática, já que divulga na forma escrita um erro gráfico, não presta obviamente um bom contributo à objectividade científica, nem um bom serviço à cultura. Nem sequer o móbil do linguajar local sai beneficiado, pois, tal como vimos, na forma gráfica legítima de BOTELO ambas as vogais “o” têm o valor fonético doce, ou seja, “u”.
Com efeito, quem em meados do século passado não conheceu os botos em que se transportavam os líquidos, vinho, azeite? Quem ainda hoje não conhece a bota? Porque será tão difícil relacionar toda esta terminologia de palavras afins com o seu radical Botelum, que significa tripa? Para além de tudo, é contra-natura, por via do fenómeno sonorização, pretender a conversão do O da palavra radical latina em U, quando acontece sempre o contrário, ou seja, U derivar em O. Assim acontece em umerus >ombro, lupus >lobo, ulmus >olmo, ulga >olga, cuniculum>coelho … Porém no caso que nos ocupa nem sequer deste fenómeno se trata, posto que a derivação é directa: botelum >BOTELO, pelo que o fonema O radical nunca derivaria em U.
Cito ainda o Dicionário Estraviz, onde:
“botelo, s.m. (1) Enchido volumoso, feito com o estômago, a bexiga ou o apêndice do intestino grosso do porco, consistente em carne, costela de porco, pimento, alho e loureiro.
(2) Enchido ou tripa.
[lat. botellu]”.
Assim, para bem da nossa cultura regional e não só, proponho e apelo às pessoas e entidades concernentes que este destacado manjar da nossa herança gastronómica seja chamado pelo verdadeiro nome de BOTELO.
José Quina
NB: Texto redigido ao abrigo do acordo ortográfico tradicional.
May be an image of text
  • Like

  • Reply
  • Share
View all 4 replies