bastardia real

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Bastardia Real – Representações ficcionais de um caso amoroso de D. João VI
© Teresa Martins Marques
O príncipe D. João nasceu para viver na tranquilidade do ócio cortesão e não para assumir as responsabilidades da governação do reino. Tem apenas dez anos, quando morre seu avô, o rei D. José, e não deve ter sido fácil, para a criança, assistir às súbitas mudanças operadas com a subida ao trono de sua Mãe, a rainha D. Maria I, não podendo ainda perceber o significado político da “viradeira”, assistindo ao regresso dos antigos proscritos e vendo depor o poderoso Marquês de Pombal.
A alteração verificada no quadro de valores familiares e sócio-políticos, numa altura do desenvolvimento em que a criança divide o mundo em bons e maus, subvertendo, da noite para o dia, a frágil identificação destas duas categorias, em nada contribuiu para a segurança e auto-confiança, que as suas futuras funções de soberano lhe exigiriam e que nem sempre demonstrou. Pelo contrário, reforçariam as suas potenciais características de indecisão, de hesitação, até de pusilanimidade, segundo alguns. A somar a este complexo quadro, a morte de D. José, seu irmão primogénito, a progressiva loucura de sua mãe, trazendo-lhe responsabilidades políticas acrescidas para que não fora preparado, num clima de profundas convulsões sócio-políticas europeias, nomeadamente o trauma projectivo do assassinato de Luís XVI e de Maria Antonieta, transformam a herança do trono num pesado fardo, sobre os seus ombros.
Se D. João tivesse vivido duzentos anos depois, uma personalidade forte como a de D. Carlota Joaquina poderia ter sido por ele encarada como uma aliada, alguém que ajuda a remar e a conduzir o barco do poder. Mas a longa luta do reconhecimento das mulheres está ainda por fazer e o olhar de D. Carlota só lhe traz rivalidade, insegurança e medo. Sobre a história da inimizade entre os esposos reais os testemunhos repetem-se uns aos outros, em eco. Pinheiro Chagas, encerra o capítulo II da narrativa Os Guerrilheiros da Morte (1872) com afirmações que visam colocar pateticamente o leitor do lado de D. João, em vésperas da partida para o Brasil:
“ Pobre príncipe! Era sua mulher o seu maior inimigo; sua mãe estava louca, já não tinha família; agora arrancam-lhe a pátria.”
Vinte e um anos depois da publicação desta frase, o seu eco é deveras evidente em Alberto Pimentel, na sua obra A Última Corte do Absolutismo em Portugal. :
“ O seu maior inimigo, talvez único, era a própria rainha Carlota. Pois ele foi sofrendo com paciência as rebeldias da esposa, que não chegou nunca a ser punida.”
Facto incontestável é que D. João, deprimido, se afastava longos períodos da governação do reino, refugiando-se em Vila Viçosa ou em Mafra, nomeadamente aquando da Conspiração dos Fidalgos, ou do Alfeite. As cartas que D. Carlota envia, na época, a seus pais revelam profunda preocupação, não apenas com a saúde do Rei, mas com o destino do Reino.
Sobre D. Carlota muito se escreveu, e sobretudo muito se contou no anedotário da tradição, mas sobre a vida privada de D. João, o pouco que se escreveu, de poucos é conhecido.
Refiro-me ao caso da bastarda, que se diz ter tido com uma dama do Paço. Uma das primeiras referências a este caso, chega-nos, logo no ano da morte de D. João VI, pela pena de um beirão, nascido nas faldas da serra da Estrela, o jornalista João Bernardo da Rocha Loureiro (1778-1853), bacharel por Coimbra, fundador do jornal O Portuguez, que se publicou em Londres, numa primeira fase de 1814 a 1822 e, numa segunda, de 1823 a 1826. João Loureiro é um defensor das ideias mais avançadas do constitucionalismo português e deixa-nos este pouco simpático retrato de D. João VI:
“ Em verdade, homem arteiro e ardiloso como esse pobre rei nunca se viu; e bem podia ele ser Lente de Prima numa Universidade, se aí houvesse cadeira de sabedoria da mão esquerda, que é o nome dado por Bacon à velhacaria…” (…) “ Sendo ele tão indiferente ao bem do povo, quanto era amigo só de si”. (…) “ Havendo D. João VI feito uma filha na Dona do Paço, Dona Eugénia, da Casa de Marialva, fez que um seu criado dele se desse por pai da cria e por isso se desterrasse, mas nem a esse fugido nem à mãe nem à filha deu depois nenhum socorro e a todos ele houve por engeitados.”
É uma outra versão desta mesma história, que será retomada em pormenor, no já citado livro A Última Corte do Absolutismo em Portugal, de Alberto Pimentel, votado ao esquecimento, até pelos melhores verbetistas do escritor. Nele se descreve a antiga elegância de costumes palacianos, no reinado de D. Maria I, a família e a corte de D. João VI, a rainha Carlota, na política e na vida familiar, um curioso bouquet de infantas, a infância e mocidade de D. Miguel. Alberto Pimentel subscreve uma ideia, bastante difundida pela historiografia liberal, de D. João seria intelectualmente muito inferior ao malogrado príncipe D. José, cuja inteligência se retemperava por altiva energia de carácter. Todavia, segundo Alexandre Herculano, citado pela mesma fonte, não lhe faltava uma esperteza saloia, que caracterizava os camponeses dos arredores de Lisboa:
“Era, como diz o povo, um caconso, se bem que dotado de boa índole. Enganavam-se tanto os que o presumiam incapaz de pensar por si mesmo, como os que julgavam poder levá-lo, ao sabor das paixões políticas, para qualquer situação extrema. (…) Não foi nunca tão constitucional que não pudesse ser absoluto; nem tão absoluto que se tornasse um flagelo para os constitucionais.”
No retrato de D. João contam-se alguns relâmpagos de respostas prontas, que contrariam a mazombice e antes são reveladoras de vivacidade. Uma das mais saborosas é a que teve lugar no Teatro de S. Carlos, onde cantava o castrado Domingos Caporalini, uma área do segundo acto da Molinara de Paesiello. Um camarista, entuasismado, terá dito: “ Quanto não dava eu para cantar como este homem!” Ao que D. João se apressou a responder: “ Pois eu não dava metade do que ele deu…”
De estatura mediana, de feições vulgares, com o lábio inferior grosso e descaído, D. João não dispunha de irresistíveis encantos pessoais, preferindo cultivar a convivência das saloias, que lhe ofereciam galinhas gordas. Segundo a lição de Alberto Pimentel, uma só vez teve uma paixão alucinante no quadro da aristocracia. A senhora em causa era D. Eugénia José de Menezes, filha dos Condes de Cavalleiros, neta do Marquês de Marialva e dama da princesa D. Carlota Joaquina.
O avô de D. Eugénia de Menezes estava em tal consideração perante D. José, o rei avô de D. João, que este dizia para o Marquês de Pombal: “Procede como julgares mais acertado com toda a outra nobreza, mas não te intrometas com o marquês de Marialva.” Os seus criados serviam-no de joelhos, como se fora um rei, e Beckford refere a sua urbanidade e génio alegre, expressos no olhar, voz e gestos que imediatamente predispõem a seu favor e justificam a popularidade de que gozava.
Os supostos amores de D. João com D. Eugénia ocultaram-se enquanto foi possível, mas a sua gravidez tornaria urgente mascarar o escândalo, nódoa caída sobre o bom pano da família Marialva.
Conta Rodrigues de Gusmão que D. Carlota “ofendida nos sagrados direitos de esposa” se revoltara contra a infidelidade do marido. Não será preciso dizer que a referência a esta revolta de D. Carlota, contribui, evidentemente, para reforçar o seu mau nome. Não contente com prevaricar ainda exigiria exclusividade na prevaricação! Bem sabemos nós que a dita nódoa, de tão frequente e mal lavada, desde tempos imemoriais, em todas as cortes, e perpetrada com real pessoa, em vez de nódoa era considerada honroso selo de garantia, não apenas para a visada com os reais favores, como também para a sua família.
No aperto da situação, o regente terá procurado um amigo que por ele se sacrificará, tomando aparentemente a responsabilidade de raptar D. Eugénia de Menezes, a qual, prestes a ser mãe, não poderia permanecer na corte. Encontrou-se esse amigo na pessoa do Dr. João Francisco de Oliveira, médico do Paço, que na noite de 23 de Maio de 1803 terá fingido raptar D. Eugénia, fugindo com ela do país. Na saída, o médico deixou uma carta para sua mulher legítima, D. Maria Joaquina Farto, que Alberto Pimentel reproduz e de que transcrevo as partes mais significativas, para o caso em apreço:
“ Minha querida consorte. Não é por falta de amizade que parto sem ti; obriga-me a honra a sacrificar-me e a sair sem perda de tempo: a minha pátria, a minha herança, e os meus parentes, e teus vivem na Madeira, parte sem perda de tempo a viver com eles, e lá te mandarei notícias minhas logo que seja possível. Leva contigo os meus filhos, que reunirei a mim logo que possa. Se o Príncipe Nosso Senhor, dando ouvidos à sua natural bondade se dignar conservar-me o que me deu por serviços, que fiz, e dons que me tinha já feito, têm com que passem, aliás viverão, como viveriam se eu lhes faltasse antes de vir ao reino. (…) Cuida da tua vida, que agora mais que tudo me interessa, assim a dos meus filhos, em que cuidarás como mãe e como único apoio, que por agora lhes resta. Nada te digo porque tudo sabes, mas o que não quero que ignores é que te estimo muito, e que respeitarei sempre a tua virtude, e que em tempo algum me esquecerei de ti, seja qual for o lugar do mundo em que eu residir. (…) Torno a recomendar-te, cuida muito na tua saúde, confia-a a pessoa hábil, e acredita que te ama muito o teu João Francisco. Lisboa, 27 de Maio. 7 horas da tarde.
Consta que o Dr. João Francisco de Oliveira e D. Eugénia de Menezes se meteram em Caxias numa embarcação que ali os esperava, em direcção a Cádis, tendo o Dr. Oliveira seguido viagem para Londres e dando entrada D. Eugénia no mosteiro de Tavira. Refere ainda Alberto Pimentel que, para completar o improvisado romance do rapto, D. Eugénia foi exautorada, deserdada e degredada, por alvará de 2 de Junho de 1803, sendo o médico condenado à forca.
Se acreditarmos que o príncipe regente era o pai da criança, o dito alvará representa o cúmulo da hipocrisia . Observemos alguns breves trechos deste alvará:
“ Eu o Príncipe Regente faço saber aos que este Alvará virem: Que tendo-se verificado na Minha Real Presença, que Dona Eugénia José de Menezes, dama da Princesa, Minha sobre todas Muito Amada e Prezada Mulher, esquecida inteiramente da Honra e Decência do Paço, de si mesma, e daqueles de quem vem, se precipitara no crime torpe e abjecto de fugir com um médico; ofendendo assim o respeito e decoro do mesmo Paço e injuriando a Família, e casa em que nasceu, com tanta infâmia própria como escândalo geral. (…) Sou Servido Mandar que a dita Dona Eugénia seja riscada do título de Dama, privada de todas as Mercês e Honras e excluída da sucessão do Bens da Coroa e Ordens, a que tenha ou possa ter algum Direito: e outrossim Ordeno, que seja degradada da Família e Casa, em que nasceu, e de que ficará estranha por si e seus descendentes, se os tiver, para todos os actos de Feito, e de Direito, sem poder suceder em heranças ab intestato, nem em vínculos e prazos familiares, como se houvesse nascido da ínfima plebe, extintos todos os direitos de sangue.“
No que ao médico diz respeito, aqui se transcreve a condenação a que nunca será sujeito:
“Condeno o sobredito réu João Francisco d’Oliveira a que com baraço e pregão seja levado até ao lugar da forca, aonde morrerá de morte natural para sempre.”
“Para sempre”, era tempo excessivo, como se verá. A hipocrisia de todo o processo é atestada pelos factos que se seguiram. Recolhida ao convento de Tavira, D. Eugénia que ali deu à luz uma filha, recebia uma farta pensão, que o regente lhe mandava abonar. Em Londres, o Dr. Oliveira, muito tranquilo pela segurança da sua cabeça tratava da sua família, que lá se lhe foi reunir, estimando como sempre a mulher e cuidando da educação dos filhos. A filha do príncipe e de D. Eugénia recebeu o nome da mãe, e com ela viveu no convento de Tavira, até que, em 1814, se transferiram ambas para o convento de S. Bernardo, em Portalegre. Foi causa desta transferência o facto de Frei Tomé de Castelo de Vide, confessor de D. Eugénia ter passado a exercer o seu ministério em Portalegre.
Morreu D. Eugénia no convento daquela cidade em 21 de Janeiro de 1818. O Dr. Oliveira em 1819 foi ter com D. João VI ao Brasil e o rei mostrou-se-lhe agradecido. Em primeiro lugar, autorizou-o a ir viver para a ilha da Madeira perdoando-lhe a culpa, ou pretensa culpa, por despacho assinado a 15 de Abril de 1820. Em segundo lugar, encarregou-o de negócios importantes na corte de Londres, dando-lhe a comenda de Cristo e a carta de conselho, o que não deixaria de ser estranho se tratasse de um vulgar condenado à forca. Mas esta história estranhíssima não termina aqui. O primogénito do Dr. Oliveira, chamado João Gualberto, que viria a ser o primeiro conde do Tojal, voltando de Londres, enamorou-se da filha de D. Eugénia e quis desposá-la. Ora, se o casamento viesse a realizar-se, tal facto seria a negação da história do rapto, mostrando que os nubentes não eram irmãos. Para assegurar que eles fossem tidos como irmãos o Dr. Oliveira legitima a filha ou suposta filha, em 12 de Novembro de 1822. Tinha sido eleito deputado às constituintes de 1820 e veio a morrer em Lisboa, em 24 de Dezembro de 1829. A filha de D. Eugénia tratou de reabilitar a memória da mãe, o que veio a conseguir em 9 de Setembro de 1849 e só não conseguiu provar a real ascendência paterna. Esta senhora viria a casar com Guilherme Smith, cônsul geral da Grã-Bretanha e, por estranha coincidência, filho natural de George III.
Este caso da bastarda deu origem a uma tradição popular, que tomou corpo em obras de ficção, nomeadamente A Amante de D. João VI de Rocha Martins, inserida numa colecção popular sobre os «Grandes Amores» na História Portuguesa. Mais tarde, Ângelo Pereira, na obra D. João Príncipe e Rei (1953-1958) viria a sustentar uma teoria diferente, contrariando a tese da paternidade de D. João VI. Parece certo que D. Eugénia foi sempre protegida pelo príncipe regente e ao rigor das penas da sentença seguiu-se uma discreta benevolência. Ângelo Pereira argumenta que este era o padrão de benevolência régia relativamente aos membros da primeira nobreza. Recentemente Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa acolhem a tese de Ângelo Pereira, assumindo a velha interpretação do “marido fraco” face à “mulher tenebrosa” sem que, no entanto, sejam acrescentados novos dados argumentativos à questão:
“Parece, pois, não ter fundamento a atribuição da paternidade da filha de D. Eugénia de Menezes ao príncipe D. João. Resta saber por que surgiu esta interpretação. Talvez porque, na composição da imagem de D. João, resultasse particularmente bem, apurando o seu lado mais negativo, o medo de um marido fraco face à fúria de uma mulher tenebrosa perante a evidência do adultério.”
Concluímos que Alberto Pimentel, nos documentos supra citados, relativos à intervenção do médico do Paço, já tinha chegado muito mais longe no esclarecimento factual desta questão. É basicamente a história relatada por Pimentel a que vamos encontrar no entrecho ficcional do romance da argentina Cristina Norton – O Segredo da Bastarda – e também, em versão muito mais livre, no romance do brasileiro Ruy Tapioca – A República dos Bugres .
Cristina Norton assume que o seu romance se baseia em factos reais, conforme consulta de diversos espólios de famílias, bem como de documentos sobre a época. Na realidade uma boa parte da intriga do romance de Norton baseia-se na versão que nos chegou pela mão de Alberto Pimentel, de quem não cita o nome, citando-lhe todavia o título da obra, ainda que com uma modificação. Onde Pimentel escreve Última Corte do Absolutismo Cristina Norton altera para Última Corte absolutista.
No romance de Norton a acção situa-se na ilha da Madeira, na segunda metade do século XIX. Eugénia Maria, filha de D. Eugénia de Menezes, desespera com o estado de saúde de sua filha Isabel, de quinze anos, atingida pela tuberculose. A mãe vai-lhe contando o segredo da sua vida, começando a história muito antes, no dia em que nasceu a avó da menina doente, em Março de 1775, isto é, um mês antes do nascimento de D. Carlota Joaquina. Essa neta do Marquês de Marialva fora educada em Minas Gerais por uma mestra, amiga e companheira dos homens ilustres envolvidos na Inconfidência Mineira. Assistimos à sua paixão gorada por William Beckford, o autor de Vathek, que, como Dante, sabia tudo de infernos, e vemos D. Eugénia seguir para outro inferno, o do ostracismo, sendo obrigada a abandonar o Paço na companhia de um médico e passar o resto da vida a chamar afilhada à sua própria filha, em conventos onde tardam a chegar as notícias das Invasões Francesas.
D. João, de Cristina Norton, apaixona-se por esta Dama da Princesa tão diferente daquela outra açafata de D. Carlota, de seu nome Honorata Guião, que Camilo Castelo Branco nos dá a conhecer em A Brasileira de Prazins. Mas esta é uma estranha paixão, pois o apaixonado nem sequer cura de saber se tal paixão é correspondida. O leitor sabe que não é.
Certa noite D. Eugénia acorda e, sem ser ouvida nem achada, vê um homem no seu quarto:
“ Levantou a cabeça, virando-a na direcção do vulto, e, quando os seus olhos se habituaram à meia-luz, reconheceu o príncipe regente, sentado num cadeirão que arrastara sem fazer barulho para perto da cama a fim de, sem ser visto, poder admirar a beleza da mulher que o transtornava. (…) D. João pediu-lhe com um gesto breve que se calasse. Depois de uns segundos de indecisão, disse-lhe num murmúrio que não lhe queria mal, pelo contrário, que haviam sido as saudades que dela tivera nos dias em que Eugénia não estivera no Paço que o tinham levado a cometer aquela loucura, mas a verdade é que nunca amara assim ninguém. Eugénia, aterrada, leu nos seus olhos uma cobiça de fauno misturada com uma ternura que a emocionou, pois sabia melhor do que ninguém da sua infelicidade conjugal (…). D. João levantou-se vagarosamente do cadeirão, (…) e saiu sem se despedir.”
O amor platónico de D. João foi sol de pouca dura. Numa noite em que D. Eugénia regressa de uma festa de casamento, encontra novamente o príncipe no seu quarto, sem prévio acordo de ambas as partes:
“ Quando entrou nos seus aposentos, achou estranho não ver a criada, que deveria estar acordada à sua espera para a ajudar a tirar o vestido e desfazer o penteado, e dirigiu-se para o seu quarto ainda com a cabeça cheia de compassos de música, que num estante esbarraram uns contra os outros caindo como blocos de gelo, ao ver o príncipe regente recostado na sua cama. Os seus membros ficaram primeiro paralisados com o choque, mas, fazendo um esforço, conseguiu avançar uns passos e inclinar-se com decoro perante o monarca, que lhe estendeu a mão e a quem ela entregou a sua, obediente”.
D. Eugénia é ainda virgem e não recordaria com saudade esta sua primeira vez:
“Não trocaram palavras nem suspiros, e ela deixou que ele lhe rasgasse o seu vestido novo, impávida, como se os gestos do príncipe, sôfregos e impacientes, não a fossem sujar para sempre. Suportou o peso do corpo que cheirava a ranço, e a dor nas entranhas, porque nunca passou pela cabeça do príncipe averiguar se era preciso alguma suavidade para desflorar um donzela, apenas sabia onde buscar o seu prazer, o das mulheres era-lhe indiferente. Na pressa de possuir a única fidalga por quem se apaixonara, não se lembrou de lhe beijar o tal pé pequeno que lhe produzia vertigens: na verdade nem sequer lhe tirou os sapatos. Estava habituado a que as saloias lhe agradecessem por as ter escolhido para satisfazer os seus apetites; as galinhas que lhe ofereciam e o beijo na mão depois do coito, dizendo-lhe ainda muitas vezes obrigada, eram a prova de que os seus favores agradavam. Por isso o príncipe estranhou que, ao levantar-se, Eugénia o tivesse ajudado a vestir os calções de seda amarela com um silêncio que lhe causou arrepios e logo, curvando-se numa reverência de mármore, se quedasse imóvel, à espera que ele saísse do quarto.”
Muitas vezes esta lamentável cena viria ainda a repetir-se no quarto de D. Eugénia, antes que a infeliz senhora ficasse grávida. O resto é o que já sabemos, segundo a lição de Alberto Pimentel. Desterrada, por ter desonrado o nome de sua família.
Ruy Tapioca n’ A República dos Bugres vai muito mais longe no tratamento do tema da bastardia. Com a mais absoluta liberdade ficcional, Tapioca troca a cronologia dos factos, trocando também o sexo do bastardo: Quincas, companheiro de folguedos dos príncipes D. Pedro e D. Miguel, ou seja cumendadô Nhoquinzim Mané, ou seja ainda o senhor Comendador Joaquim Manuel Menezes de Oliveira, mantendo o seu sobrenome referenciado aos mesmos progenitores, os “fidalgarrões” que a tradição aponta para a bastarda do rei D. João VI, sendo aqui protegido de D. Maria da Celestial Ajuda, irónico onomástico com que Tapioca baptizou a prestimosa senhora ama.
Estamos perante um romance histórico em tom picaresco, em que o episódio da bastardia é perfeitamente secundário, se comparado com a importância que detém na obra de Cristina Norton. A República dos Bugres é, fundamentalmente, uma obra que revisita a História do Brasil, desde a chegada da Família Real Portuguesa até à Proclamação da República. O que interessa neste romance é, sobretudo, a história da escravidão, as campanhas abolicionistas centradas na figura do Padre Jacinto, um negro ex-escravo, bem como a guerra do Paraguai. Aqui encontramos a medicina crismada como “lucrativa manufactura de defuntos” que não cura de curar a louca rainha D. Maria, apresentada como Sua Majestade Maluquíssima, que “entrou em benefício de licença mental”, mas que se revela prudentíssima quando diz que não quer ser comida pelos canibais, como o Bispo Sardinha “que foi merendado pelos bugres”.
D. João VI depara-se-nos com as suas proverbiais indecisões, D. Pedro I distingue-se pelos seus ataques de impetuosidade e aqui encontramos também o menino Machado de Assis, na sua qualidade de brilhante aluno de latim do mestre- escola bastardo do rei, que dava a aula régia de retórica e de história na Rua do sabão e que ostentava gravada, em placa de latão, no frontispício do sobrado, a divisa latina: “Disce aut discede! (Aprende ou vai-te embora!)”. Este mestre, depois de tanta convivência com a obtuosidade mental, adoptou para si mesmo a divisa: “Quem dii oderunt paedagogum fecerunt. (A quem os deuses odeiam fazem-no professor.)”
Tudo isto vem apresentado em mangas de camisa, misturando registos de linguagem do passado e da actualidade que produzem momentos de elevada comicidade. É disso exemplo, bem diferente da linguagem de Cristina Norton o decisivo capítulo IV:
“ D. Eugênia José de Menezes, dama do Paço, camarista da princesa D. Carlota Joaquina (não esquecer as três batidas), ainda não contratou marido nem contraiu núpcias, mas já está acrescentada, anda agoadinha de amor, como se diz em Portugal: está de barriga à boca, ficou de menino. Quem a desmoçou não se pode saber pois não são contas do nosso rosário, e além disso é segredo d’ Estado: se a Corte e a Princesa viessem a descobrir, Jesus Maria! Cairia o Carmo e a Trindade! A cachopa andou de casa e pucarinho com um grandalhão do reino, que tem piada e fama de Dona-Maria-pé-de-salsa, mas que em raras e distraídas recaídas, estando pelo beicinho com a rapariga, não lhe falhou o mandrião, prazeirando-se ambos em várias papanças e cambalhotas, às horas em que as galinhas se encontram recolhidas. Raptou -, à capucha – , o suposto sedutor, doutor João Francisco d’ Oliveira, físico-mor dos exércitos, médico da Real Câmara do Príncipe Regente e amigo in pectore de D. João. Fugiram D. Eugênia e seu pretenso raptor em um bergantim, de madrugada, em uma praia próxima ao lugar por Caxias conhecido, nunca mais senso vistos.”
Seguem-se as nossas já conhecidas descrições dos castigos dos supostos infractores e a narração termina com o comentário da vox populi, que faz desacreditar, desde logo o pretenso crime: “ Se fossem à forca condenados todos os alfacinhas que levassem raparigas para debaixo das cameleiras, e as fizessem andar de barrigão, insuficientes seriam as provisões de madeira e cordoalhas do reino para as execuções, tantos seriam os dependurados.” Tapioca justifica até as más relações de D. João e de D. Carlota com saborosa ironia, nesta frase lapidar: “Há muito que não cruzam bigode com buço.”
A bastardia real e plebeia é, pois, uma história tão antiga como o mundo. O termo “bastardo” deriva, segundo algumas fontes, do francês antigo “bastard” (actual “bâtard”), significando aquele que foi engendrado “sur le bât”, sendo este “bât” a sela que se coloca em cima dos animais de carga. Segundo outras fontes, o termo é de origem germânica – “ bansti” com o significado de “granja”, “abegoaria”, lugar em que se guarda o gado e as alfaias domésticas. Em ambos os casos, subjaz ao termo uma origem ligada à rusticidade, à servilidade, que passa, por contaminação semântica, para o campo da impureza, da degenerescência. De um simples “lugar onde”, que também encontramos na sinónima expressão ”filho das ervas”, passa-se para um complexo “ser-porque”, associando, por sua vez, uma metaléptica simbiose de causa e consequência, geradora do interdito, do segredo, de uma insidiosa culpa, que conduz a vítima à vergonha, e, não raro, à vingança.
Porventura um dos mais tenebrosos bastardos da literatura é o hipócrita Edmund, personagem do Rei Lear, filho do conde de Gloucester. Vingativo e criminoso não age por suas próprias mãos, mas instiga os outros cobardemente a executarem a sua própria vingança. Entrega seu pai ao ódio de Regan e do marido, que lhe arrancam os olhos. Instiga para que Cordélia, a filha mais nova do Rei Lear, seja estrangulada e, descobertas as suas infâmias, acabará morto em duelo pelo seu irmão Edgar, filho legítimo do conde, seu pai.
A História de Portugal inicia-se, como se sabe, sob o signo da bastardia. D. Tareja de Léon, mãe de D. Afonso Henriques era filha ilegítima de Alfonso VI, rei de Castela e de D. Ximena Moniz, filha de Munio Moniz, conde de Bierzo. A querela pela independência relativamente a Castela é também a querela da irmã ilegítima Tareja, contra a legítima, D. Urraca, por interpostos sobrinhos. Este rei de Castela, avô de D. Afonso Henriques, teve quatro casamentos e não poucas amantes, entre elas, justamente a avó do nosso primeiro rei. E, assim sendo, desde as origens da nacionalidade, os filhos naturais foram ponteando a primeira dinastia, com a maior das naturalidades.
Nem só em guerras estes senhores gastavam o seu precioso tempo. O slogan make love not war ainda vem muito longe e eles acumulavam confortavelmente a costela belicista com a costela amorosa. Para servir logo de exemplo à novel nação, D. Afonso Henriques presenteou-nos com sete legítimos de D. Mafalda e quatro bastardos de que se não conhecem as mães. Seu filho D. Sancho I, fazendo jus ao cognome de Povoador contribui para onze legítimos de sua mulher, D. Dulce, e ainda nove bastardos, três deles de D. Maria Alves e mais seis de D. Maria Pais, a célebre Ribeirinha, senhora branca e vermelha de que nos fala a Cantiga da Garvaia e que é também uma das mais interessantes personagens criadas por Rebelo da Silva em Ódio Velho não Cansa .
D. Dinis foi o único Rei português casado com uma Santa, D. Isabel de Aragão, que, ainda assim, lhe deu dois filhos, tendo mais sete bastardos, cujas mães foram D. Maria Pires, D. Marinha Gomes e D. Aldonça Telha, genitora do célebre Afonso Sanches, grande rival do legítimo futuro Afonso IV. Seu filho D. Pedro, para além dos legítimos de D. Constança, e dos havidos com D. Inês de Castro, geraria o mais famoso bastardo real, o Mestre de Avis, filho de D. Teresa Lourenço, e que, sob o nome de D. João I, haveria de inaugurar a segunda dinastia. Mas antes disso, o seu irmão legítimo, D. Fernando fez não pouco escândalo ao casar com a ex-mulher de D. João Lourenço da Cunha, Conde de Pombeiro. Refiro-me, é claro, à transmontana “ louça, aposta e de bom corpo”, nas palavras de Fernão Lopes, D. Leonor Teles, a mais afortunada amante de um rei de Portugal, que chegou a rainha, capaz de tudo, eventualmente até de favorecer as intrigas que levaram ao assassinato da sua própria irmã, D. Maria Teles, à punhalada, pelas mãos do marido, o infante D. João, filho da malograda D. Inês de Castro.
A bastardia é assumida como um facto natural e não por acaso os bastardos se designam como filhos naturais, sendo os casamentos reais negócios de conveniência inter-estados. Assim sendo, como poderá justificar-se esta atitude de D. João VI? Mais do que o receio que lhe inspira D. Carlota, talvez devamos procurar as razões da sua atitude no medo que lhe provocam os poderosos Marialvas. Será a cordura, ou será antes a pusilanimidade que, eufemisticamente, lhe ditaram, para a História o cognome de O Clemente?
A História de Portugal é fértil em cognomes eufemísticos e às vezes paradoxais, observados de certos ângulos. Vejamos, por exemplo, o cognome de D. Afonso VI, o traído, desastrado e desventurado monarca, que terminou os seus dias preso em Sintra, que é chamado de Vitorioso. Todavia, D. Pedro II, o seu belicoso irmão, que lhe roubou o trono e a mulher – D. Maria Francisca – , tem por cognome O Pacífico. Em ambos os casos são outras as razões do cognome, mas não deixa de ser irónico o epíteto que prevaleceu.
No fim de contas são estes portugueses belicosos e infiéis, os nossos antepassados comuns, avós longevos do que haveria de dar o futuro grito do Ipiranga e que repousava nos braços imperiais de D. Leolpoldina, e de D. Amélia, mas também nos de D. Domitília, marquesa de Santos, ou em braços democraticamente plebeus. Ângela Dutra de Menezes, neta de transmontanos, na página final do seu saboroso livro O Português que nos Pariu, decreta o que ainda falta a portugueses e brasileiros, quiçá à revelia de Pedro Álvares Cabral:
“Somos ambos maravilhosos. Falta, apenas, descobrirmo-nos.”
Texto publicado na Revista NAVEGAÇÕES, com notas que o facebook não permite.
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  • Teresa Martins Marques

    Pedro Duarte Pinto Bessa, também aqui se fala, en passant, do avô Dinis.
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    Pedro Duarte Pinto Bessa replied
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